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Banda larga como serviço público

Não é de hoje que muitos afirmam ser imprescindível a universalização do acesso à banda larga. Universalizar significa garantir a todos os cidadãos – independente das condições econômicas ou localização geográfica – os recursos necessários para o acesso à Internet, o que inclui computadores, conexões com velocidades decentes e, também, o conhecimento necessário para a utilização do pleno potencial da tecnologia.

O tema voltou às capas dos jornais e portais eletrônicos na última semana. Primeiro, em função da publicação do regulamento para a oferta de Internet pela rede elétrica. Segundo, porque o presidente Lula determinou aos seus auxiliares a elaboração de um plano para ampliar o uso pelos brasileiros da rede mundial de computadores.

São boas notícias, mas recomenda-se analisar os fatos com prudência. Assim, evitam-se ilusões e criam-se condições para melhorar as propostas atualmente em debate.

A oferta de Internet pela rede elétrica tem um inegável potencial. Afinal, a capilaridade das redes elétricas é maior do que a das redes das concessionárias de telecomunicações (Oi/Brasil Telecom, Telefônica e Embratel). Além de maior penetração, o uso da rede elétrica poderia ser um forte estímulo à competição na prestação do serviço, hoje monopolizado pelas concessionárias de telefonia fixa – à exceção dos bairros mais ricos dos grandes centros urbanos, onde existe a concorrência das operadoras de TV a cabo – que se aproveitam dessa situação para abusar dos direitos dos consumidores.

A Internet pela rede de energia elétrica, além de ser tecnicamente complexa em função das interferências entre os dois tipos de sinal, carece de um desenho regulatório favorável, que faça com que a exploração seja economicamente viável para quem fornece e acessível para quem consome.

Até agora, esse não parece ser o caso. Não à toa, o próprio governo admite que o uso da rede elétrica para a oferta de Internet não deve se tornar uma realidade nos próximos anos. Falta vontade política para enfrentar os interesses dos grandes grupos de telecomunicações, que não querem nem pensar em novos concorrentes de peso.

Já o Plano Nacional de Banda Larga, nome dado ao projeto em gestação no governo federal, é iniciativa das mais importantes, embora muito – muito mesmo – tardia. Até há alguns meses, o governo parecia convencido que a massificação do acesso à Internet poderia ocorrer pelas mãos do mercado. Mas aconteceu o óbvio: o acesso cresceu e continua a crescer devagar-devarzinho, com velocidades de conexão mais lentas ainda, que na maioria das vezes sequer poderiam ser consideradas "banda larga" caso fossem utilizados como referência os padrões internacionais.

O mercado, como sempre foi e sempre será, busca instalar-se onde há renda. Onde não há renda, não existe mercado. E não esqueçamos que quase 50% da população brasileira ainda pertence às classes D e E, uma barreira colossal para qualquer serviço com preços e tarifas definidos livremente pelas empresas, como é atualmente o caso.

Por isso, o plano em gestação é uma ótima notícia: a importância que essa nova forma de relacionamento com o mundo adquire para os diversos aspectos da vida cultural, social e econômica, tornou a Internet uma ferramenta diária para diferentes tarefas ou funções, do lazer ao trabalho. A não inclusão dos cidadãos nesse novo ambiente virtual reproduzirá ou aumentará a já inaceitável desigualdade socioeconômica existente no Brasil.

Assim, é preciso pensar o acesso à Internet como uma decorrência dos direitos fundamentais à liberdade de expressão, à informação, à cultura e à educação. Universalizar a banda larga é um imperativo ético dos nossos tempos.

Mas, embora seja uma ótima notícia, o desenho inicial do plano é tímido: fontes confiáveis indicam que a intenção é formar uma infra-estrutura pública a partir das redes das empresas estatais (Petrobrás, Furnas, Eletronet, etc) para servir aos órgãos do governo federal e dos governos estaduais e municipais. Não é pouca coisa, mas também está longe de garantir o acesso universal aos milhões de brasileiros que ainda não possuem Internet ou que pagam preços exorbitantes por velocidades tartarugas de conexão.

Corajoso mesmo seria (ou será) a criação de uma empresa pública para ofertar o serviço ao consumidor.

De qualquer forma, em meio às discussões para a formatação do plano, é hora da sociedade brasileira reivindicar que o Estado assuma a responsabilidade por garantir acesso residencial à Internet – afinal, porque os mais pobres devem usar telecentros ou similares e os mais ricos acessar a Internet em casa? -, classificando a banda larga como um serviço público essencial, com status semelhante ao da telefonia fixa e aos fornecimentos de água e energia elétrica. Como serviço público, podem ser impostas obrigações de universalização, de preços e tarifas.

Independente de possíveis variantes regulatórias, uma coisa é certa: a decisão política de universalizar o acesso à banda larga passa por assumi-la como um direito dos cidadãos e, conseqüentemente, um dever do Estado.

JN, 40 anos: Cada um conta o que quer contar

Muitos leitores devem ter notado que a TV Globo passou as duas últimas semanas celebrando o aniversário de 40 anos do Jornal Nacional. Desde a sua criação, o telejornal global é, de longe, a principal fonte de informação de milhões de brasileiros.

Bonner e Fátima Bernardes fizeram questão de nos lembrar das tantas glórias conquistadas pelo JN e pelo jornalismo da emissora. Matérias intermináveis – intermináveis mesmo, de quase 15 minutos – exaltaram os feitos do telejornal. Os mais antigos repórteres (os que certamente melhor cumprem ordens do patrão) foram chamados à bancada e, ao vivo, recordaram as coberturas dos fatos que marcaram a história recente do país.

Telespectadores desavisados, desconhecedores de episódios importantes da vida nacional, talvez até tenham ficado com lágrimas nos olhos.

É fato incontestável que o Jornal Nacional consolidou-se desde a década de 1970 (estreou em 1969) como símbolo do poder das Organizações Globo. Com uma estrutura quatro, cinco ou seis vezes maior do que os telejornais de suas concorrentes, ainda hoje bota medo na maioria dos políticos, que temem ser alvos de abordagens, digamos, pouco simpáticas. Quando as menções são positivas, aí é só festa. Dá até pra pensar em vôos mais altos. Símbolo maior desse poder é o fato de seu lobista-chefe ser chamado de "senador" nos corredores do Congresso Nacional. Sem nunca ter sido candidato nem eleito para cargo algum, desfruta de poderes que nenhum parlamentar possui.

O JN tem todo o direito de comemorar o que bem entender. Aliás, a Globo é perita em se auto-promover. Já fez isso em diversas ocasiões e continua a fazer com competência, posando de defensora da cultura nacional e da liberdade de expressão, além da já manjada face "solidária" que os Crianças Esperanças da vida buscam construir.

O perigo iminente disso tudo é que, em um país pouco conhecedor da biografia de seus meios de comunicação, corre-se o risco de reescrever a história. O temor não se faz em vão: como historiadores cansam de afirmar, a memória coletiva muitas vezes é fruto do legado dos mais fortes.

Mas voltemos ao nosso tema. Como era previsível, o JN tratou de lembrar das tantas ocasiões nas quais noticiou fatos da vida política, econômica, cultural e esportiva do país.

Esqueceu-se, no entanto – e ao acaso isso não pode ser creditado -, de recordar os momentos em que o telejornal global foi ele mesmo sujeito da história.

Ficou de fora da retrospectiva, por exemplo, que o surgimento e fortalecimento da TV Globo deu-se a partir de um acordo ilegal com o grupo estrangeiro Time-Life, que foi inclusive objeto de CPI no Congresso Nacional.

Esqueceram de dizer que a emissora foi criada e se fortaleceu com o apoio decisivo dos sucessivos governos militares. E que seu jornalismo, em especial o JN, ignorou solenemente as torturas, os desaparecimentos e as mortes dos que lutavam contra a ditadura, como se não tivessem acontecido.

O resgate histórico deixou de lado a tentativa de ignorar o movimento pelas eleições diretas nos primeiros anos da década de 1980, assim como a participação da emissora na tentativa mal sucedida de fraude nas eleições para o governo do Rio de Janeiro, com o objetivo de evitar a posse de Leonel Brizola.

A memória seletiva igualmente deu conta de apagar a participação decisiva do JN na eleição de Fernando Collor em 1989, quando a emissora editou de forma canalha o último debate entre Collor e Lula, além de utilizar contra o candidato petista as acusações lunáticas de sua ex-mulher e o seqüestro do empresário Abílio Diniz.

Nos anos seguintes, de forma nem um pouco sutil, foi linha de frente na consolidação da idéia – hoje comprovadamente furada – de que o neoliberalismo e a privatização de empresas estatais eram o único caminho a seguir, impulsionando a eleição e reeleição de FHC à Presidência.

Há ainda uma série infindável de episódios mais recentes que poderiam ser acrescentados à lista, como a cobertura favorável ao tucano Alckmin nas últimas eleições presidenciais. Ao contrário de outras tentativas, a tática não deu certo, graças à multiplicação das fontes de informação e, quem sabe, ao aumento da consciência política das classes menos favorecidas.

Fato é que, ao longo de toda a sua história, a Globo consolidou-se como os olhos e ouvidos da atrasada elite brasileira, cerrando fileiras contra movimentos sociais e quaisquer políticas distributivas. Em Brasília, seu "senador" é sempre recebido com afagos. Tapetes vermelhos se estendem aos seus pés. E assim, políticas que visam democratizar as comunicações do país são enterradas antes mesmo de nascerem.

É normal, compreensível até, que o JN tente recontar a sua própria história. O que não pode acontecer é que a história não contada por ele seja esquecida por nós.

* Diogo Moyses é jornalista e radialista especializado em regulação e políticas de comunicação, pesquisador do Idec – Instituto Brasileira de Defesa do Consumidor e autor de “A convergência tecnológica das telecomunicações e o direito do consumidor”. Também é membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação.

Eleições e Internet: Obama lá e nós aqui

Há um ano, Barack Obama era apenas um senador em primeiro mandato, negro e jovem, que aspirava concorrer à vaga de candidato a presidente da maior potência do planeta pelo partido democrata. Seus adversários, muito mais poderosos, como o senador John Edwards e a senadora Hillary Clinton, não o colocariam como principal adversário. Para compensar essa diferença, Obama investiu em um discurso enfático de mudança, baseado no bordão "Sim! Nós Podemos!" (Yes, We can!) e na rede mundial de computadores. Por isso, venceu as prévias, e agora enfrenta o republicando John McCain para chegar à Casa Branca.

Obama já é o exemplo mais bem-sucedido de uso da internet para fins político-eleitorais. Em "A Conexão Obama", artigo publicado no The New York Times de 26 de maio, o analista Roger Cohen explica esse fenômeno: "É a rede, estúpido!". A frase é uma adaptação livre da citação de James Carville, papa do marketing político que trabalhou na campanha de Bill Clinton e cunhou a expressão "É a economia, estúpido!", norteadora da estratégia bem-sucedida que resultou na vitória de Clinton sobre Bush pai. Obama é sedutor, um grande orador, um sujeito com uma trajetória irrepreensível. Não fosse a internet, porém, ele nada seria.

Para sustentar a tese, Cohen reproduz dados citados por Joshua Green, na The Atlantic. Obama teve 1.276.000 doadores em sua campanha, 750.000 voluntários ativos e 8.000 grupos de afinidade. "Em fevereiro, quando a campanha arrecadou 55 milhões de dólares (45 milhões via Internet), 94% das doações apresentaram valores menores que 200 dólares". São números sem precedentes na história humana. Para efeito de comparação, a planilha de doações do presidente Lula na última eleição, incluindo pessoas físicas, jurídicas, comitês regionais, entre outros itens, tem 1.599 itens. No processo, o Partido dos Trabalhadores (PT) arrecadou R$ 81 milhões.

Como um vírus, o candidato foi se espalhando pelo ciberespaço, que se transformou no ponto de encontro de uma geração inteira, insatisfeita e envergonhada com os descaminhos promovidos por Bush Filho. E essa geração resolveu disputar com seus pais e avós o futuro da nação, usando a seu favor o arsenal democrático de comunicação surgido nos anos 90.

O site de Obama, por exemplo, é uma grande rede social, onde os eleitores trocam informações entre si. O candidato acompanha e usa isso em seu benefício. Nada de notícias ou informações de cima para baixo. O segredo é a interação permanente.

Seus assessores e apoiadores usam o You Tube (para vídeos), Twitter (para mensagens instantâneas), mantém comunidades em sites de relacionamento como Orkut, Facebook e MySpace, conversam diretamente com eleitores por mensageiros instantâneos, como Mesenger ou Google Talk. Tudo de legal que está disponível na rede não lhes é estranho.

Enquanto isso, em Pindorama…

Essa história, no entanto, não seria possível no Brasil, por causa do Tribunal Superior Eleitoral, órgão que disciplina o processo eleitoral no país. Em março, o TSE editou uma resolução, de número 22.718, assinada pelo ministro Ari Pargendler, para tratar de eleições e internet. Com ela, criou uma baita confusão. A norma tem vários pontos criticáveis. O principal deles é enquadrar a internet como mídia eletrônica de massa. Ou seja, como rádio ou televisão, coisa que ela não é nem nunca foi (para ficar só num aspecto, rádio e TV são concessões do Estado, site não).

Outro aspecto incompreensível da lei é o artigo que impõe a cada candidato a prefeito ou vereador o limite de ter um único site "de propaganda" na rede. A idéia dos magistrados seria garantir o "equilíbrio" na disputa eleitoral. Objetivo nobre, que corresponde ao que se espera dessa instituição da democracia brasileira. No entanto, com isso, conseguiram fazer justamente o contrário.

"O que a Justiça deveria garantir era a isonomia de espaço e o controle do poder econômico e estatal. Para tanto é necessário disciplinar o uso da TV, das rádios e da imprensa. Mas, esta isonomia de espaço existe na Internet. Os candidatos utilizando ferramentas gratuitas estão em maior equilíbrio", avalia o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, autor de vários livros sobre internet e cidadania e uma das primeiras vozes da rede a se levantar contra a legislação.

Lá atrás, quando a resolução foi publicada, alguns setores da sociedade protestaram. Outros, incrédulos, achavam que seria mais uma dessas "leis que não pegam". Mas ela pegou.

A primeira vítima do processo foi o candidato à prefeitura do Rio de Janeiro Fernando Gabeira (onde uma contra-resolução do Tribunal Regional Eleitoral tentou amenizar a decisão dos togados de Brasília e permitiu o uso do Orkut e do You Tube, por exemplo).

O ex-guerrilheiro, atual candidato pelo Partido Verde, entrou na disputa depois de um processo de mobilização inspirado pela "Conexão Obama". Futuros eleitores começaram a se organizar na internet e a criar comunidades, em sites de relacionamento e blogs. Um dos idealizadores dessa mobilização foi o blogueiro Pedro Dória, vencedor do Bob Awards como o melhor do Brasil em 2005.

No final de maio, o candidato Gabeira foi notificado pela justiça. Ou tirava do ar todas as "propagandas" indevidas ou corria o risco de ter sua candidatura cassada. Ele correu atrás de Dória, que retirou o banner que estava publicado em seu blog (www.pedrodoria.com.br) e colocou no lugar uma tarja: "censurado". Um processo de varredura teve início.

"Nenhum político paga por este banner. É uma declaração de voto pessoal de minha parte. O banner leva a um argumento pela sua candidatura. É o meu direito como cidadão de manifestar o que penso, qual o caminho que desejo para minha cidade. Ninguém deve ser punido porque exerci meu direito de cidadão em uma democracia de manifestar minha opinião", escreveu Dória no post em que informava sobre a ação da justiça.

Segue a disputa

Esse foi o estopim. A lista de casos, desde então, só fez se multiplicar e tende a aumentar ainda mais com o avanço do processo eleitoral.

No fim de julho, outros dois candidatos a prefeito de grandes cidades foram cerceados. De coloridos políticos completamente distintos, o tucano Geraldo Alckmin e a comunista Manuela D'ávila são dois bons exemplos do que a lei em vigor é capaz de promover.

No caso de Alckmin, o juiz Marco Antonio Martin Vargas, da 1º Zona Eleitoral de São Paulo, determinou que fossem retirados do ar vídeos publicados no You Tube que estavam referenciados em seu site.

Para se ter uma idéia do absurdo em comparação ao que ocorre atualmente nos Estados Unidos, foi justamente por meio do You Tube que muitos eleitores tomaram parte do processo de mobilização em torno da figura de Obama. Em especial, de um vídeo produzido pelo músico do Black Eyed Peas, Will.I.Am, com participação da atriz Scarlet Johanson, no qual eles transformam um "discurso" de Obama em uma "canção". Esse vídeo, em suas diferentes entradas no site de vídeos do Google, tem mais de 20 milhões de visualizações.

É certo que Alckmin e o senador americano não têm nada em comum. Mas os direitos dos eleitores de ambos os candidatos deveriam ser os mesmos.

Outra vítima dessa legislação anacrônica foi a jovem candidata Manuela D'ávila, jornalista de formação, que surgiu para a política justamente usando formas não convencionais de comunicação. Sua eleição para vereadora, quatro anos atrás, mobilizando jovens, a transformou num fenômeno eleitoral gaúcho.

Agora, ela é candidata do PCdoB à prefeitura de Porto Alegre e foi obrigada por liminar judicial a retirar do ar uma comunidade do Orkut e um vídeo do You Tube. A decisão foi tomada com base em uma representação feita pelo Ministério Público Eleitoral. A justiça, no entanto, dias depois, voltou atrás na decisão, embolando ainda mais o meio de campo desse processo.

Na avaliação de Amadeu, essa legislação brasileira foi elaborada para evitar que elementos sem chance no mundo dominado pelas empresas de comunicação passem a participar do jogo pelo poder. Ou seja, para evitar que uma história como a de Barack Obama ocorra por aqui.

"Repare que nenhum partido até agora fez um vigoroso protesto contra a Resolução do TSE. Por que? Porque o uso pleno da rede, da interatividade, do twitter, do youtube interessa somente se for para disseminar mensagens e não para interagir, para compartilhar. Pouca gente nas cúpulas partidárias brasileiras vêem com bons olhos a comunicação sem controle e o debate aberto", afirma.

* Rodrigo Savazoni é jornalista.

2007: Meu Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social

No início deste ano, decidi que 2007 será meu Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social.

Gesto isolado, individual, meio pretensioso, mas que talvez me sirva de alento diante de um novo começo político-administrativo para o Brasil, que, espero, contemplará na pauta desenvolvimentista do governo – de aceleração, crescimento e inclusão -, como a quer o  presidente Luiz Inácio Lula da Silva, novas e diferentes políticas para a comunicação social. 

Mas, por que Roquette-Pinto?

Está é fácil, responderá o graduando em Comunicação, atento ao que lhe ensinamos em nossas faculdades: foi Roquette-Pinto quem inventou o rádio no Brasil.

Errado, responderá o professor mais atento, ainda que sejam poucos os realmente atentos aos detalhes biográficos de Edgard Roquette-Pinto, até porque esse extraordinário brasileiro está entre aquelas grandes expressões da vida nacional que até agora não receberam a atenção de uma biografia. Errado não apenas porque, no arroubo retórico, o graduando, ou graduanda, atribuiu a Roquette-Pinto a façanha de inventar o rádio brasileiro. Talvez porque em uma aula de história da Comunicação, ele ou ela tenha ouvido alguma coisa que ligava aqui o início das transmissões radiofônicas com a Academia Brasileira de Ciências. Errado, acima de tudo, porque Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) foi muito, muito mais do que o fundador, em abril de 1923 da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, hoje Rádio MEC AM. Edgard Roquette-Pinto, nas duas décadas anteriores à criação da Rádio Sociedade protagonizou uma das mais brilhantes carreiras de cientista e educador que este país já conheceu.

Daí sua ligação com a Academia Brasileira de Ciências; daí ele ter convencido Henrique Morize, então presidente da Academia, a acompanhá-lo no desafio de iniciar o rádio no Brasil; daí a sua férrea convicção de que aquela nova tecnologia tinha que ser um instrumento de promoção, mais do que tudo, da educação, da ciência e da cultura.

Roquette-Pinto formou-se médico em 1905, mas trocou logo a prática médica por um interesse científico abrangente. Já na formatura, o trabalho final, intitulado O Exercício da Medicina Entre os Indígenas da América, indicava suas amplas ambições intelectuais; no caso, a Antropologia. Um ano depois, já estava no Rio Grande do Sul, estudando sítios de sambaquis, as jazidas de ossos e outros remanescentes dos primitivos habitantes do nosso litoral. Pouco tempo depois, assumia por concurso a cátedra de etnografia e antropologia do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.

No Museu Nacional, conheceu, em 1911, o então tenente-coronel Cândido Rondon, a quem acompanhou, um ano depois, na expedição ao Mato Grosso, da qual resultou um clássico da literatura científica brasileira: Edgard Roquette-Pinto. Rondônia. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1975, 6ª edição, originalmente publicado em 1916: um minucioso tratado geográfico, etnográfico, antropológico, biológico e cultural que, para Gilberto Freyre, ombreava-se com Os Sertões, de Euclides da Cunha, no desvendamento de aspectos cruciais da cultura, nacionalidade e geografia nacionais.

Mas, insolitamente, como observei acima, esse extraordinário brasileiro permanece até hoje sem uma biografia. Talvez porque, como escreveu Ruy Castro no breve, mas agudo perfil biográfico que fez de Roquette-Pinto, um só volume não seria capaz de apreender toda a complexidade e multiplicidade de tão desafiador personagem. Daí ter intitulado seu ensaio Roquette-Pinto: O Homem Multidão; no subtítulo, a metáfora que julgou apropriada para descrever o personagem  (http://www.soarmec.com.br/ouvinte/roquette.html).

Foi durante a expedição com Rondon que Roquette-Pinto manifestou pela primeira vez seu fascínio com as coisas da comunicação. Em película, ele registrou as primeiras imagens dos Nhambiquaras, documentário pioneiro que doou, em 1912, à recém-inaugurada cinemateca do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Roquette-Pinto foi sempre um brasileiro comprometido com a educação, e ele vira naquela nova tecnologia de comunicação, o cinema, um instrumento decisivo para levar informação e conhecimento às crianças e jovens de todo o país.

Por isso, em uma outra importante etapa de sua vida cívica e profissional, participou, ao lado de brasileiros igualmente extraordinários, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, das primeiras tentativas de reformas estruturais da educação brasileira, processo durante o qual Roquette criou, em 1936, o INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), instituição por meio da qual disseminou projetores e fitas educativas por dezenas de escolas públicas do então Distrito Federal, no que pretendia fosse uma campanha nacional.

Em outras palavras, ninguém mais do que Edgard Roquette-Pinto pensou, nos primórdios do século XX, como fazer convergir educação e as novas tecnologias da comunicação e da informação. Por isso, na década de 20, foi capaz de abandonar quase todo seu múltiplo e extraordinário passado de etnógrafo, antropólogo, geógrafo, pela tecnologia do rádio, dado o impacto que, muito mais do que o cinema, ela poderia ter sobre a educação. Abandonou-o a tal ponto de hoje ter se tornado quase apenas uma curiosidade histórica: ele teria sido o ‘inventor’ do rádio no Brasil. O que é muito pouco reconhecimento para o brasileiro que ele foi, embora o suficiente para nos ensinar a lição preciosa: toda transição tecnológica na comunicação traz com ela a esperança de uma revolução civilizatória; na educação, na informação, na cultura. Mas toda ela, até hoje, resultou no infortúnio da comunicação largamente mercantilizada, alienadora, ainda que aqui e acolá lampejos de suas potencialidades emancipatórias não nos deixem esquecer que outros caminhos, funções e usos seriam possíveis para ela.

Por isso, Edgard Roquette-Pinto, morto há mais de cinqüenta anos, tem tudo a ver com a idéia de democratização da comunicação social; ele é um importante recorte de nossa memória histórica que pode não nos deixar esquecer que as tecnologias da informação e comunicação, cada vez mais sofisticadas e poderosas, são apenas meios, embora tendam, pela força de seu poder técnico e apropriação pelo mercado, e pelo fascínio das suas abundantes possibilidades, a se tornarem fins em si mesmas.

Ontem o cinema e o rádio. E, depois, a televisão. E mais, adiante, o computador. E, mais adiante do computador, a internet. Antes de ontem, o telefone. Hoje a convergência do telefone com o cinema, o rádio e a televisão, tendo como vetor a tecnologia digital originária do computador, agregada na internet.

O que não faria Edgard Roquette-Pinto diante das potencialidades civilizatórias da convergência? O que não diria Roquette-Pinto diante dos quase R$ 5 bilhões de reais que o governo entesoura hoje, oriundos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações? Que novidade seria para ele a idéia aparentemente tão ousada de levar computadores e acesso à internet para todas as escolas públicas, se ele viu fracassar tão rotundamente seus generosos planos de um projetor de cinema em cada escola, para a projeção de filmes educativos e culturais, como viu fracassar seu generoso plano de um rádio não comercial, de serviço público, voltado para a educação e a cultura? Quantos sabemos que o prefixo da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, PRA-2, era disputado por muito dinheiro nos anos 1930, e que Roquette recusou-se a vendê-lo, preferindo doar sua ‘invenção’, a preciosa Rádio Sociedade, ao Ministério da Educação?

Lembremos o que sobre isto escreveu Ruy Castro, e que me seja perdoada a longa transcrição:

“Nadando contra a corrente, Roquette continuava a não admitir propaganda comercial ou política em sua emissora – o que a condenava a um gueto no dial. Mantida, como sempre, apenas pelos “sócios”, a Rádio Sociedade não tinha dinheiro para modernizar o equipamento e ampliar a potência a fim de enfrentar a concorrência. As óperas completas que transmitia (e que atraíram milhares de jovens brasileiros para o canto lírico) estavam sendo sufocadas em volume por “O Teu Cabelo Não Nega”. Roquette desejava apenas que houvesse espaço para todo mundo. Mas, agora, o ideal do rádio educativo no Brasil estava em perigo. Em 1933, convenceu seu amigo, o educador Anísio Teixeira, secretário da Educação, a fundar uma rádio-escola a ser mantida pela prefeitura do Rio, para servir de exemplo a outras no futuro. Anísio topou, Roquette emprestou-lhe equipamento e funcionários da Rádio Sociedade e, com isso, a Rádio Escola Municipal, PRD-5, foi para o ar no ano seguinte. Em troca, Anísio pediu que ele fosse o seu primeiro diretor. Roquette aceitou. Talvez a nova estação do Largo da Carioca (rebatizada em 1945 como Rádio Roquette-Pinto) pudesse escapar ao comercialismo que parecia engolir todas as outras, inclusive a sua.

Para evitar a morte ou a desfiguração da Rádio Sociedade, Roquette só enxergava uma solução: reverter seus canais a um órgão oficial – o Ministério da Educação e Saúde. Em julho de 1936, quando resolveu se desfazer de sua rádio, Roquette-Pinto chamou seus filhos Paulo, de 27 anos, e Beatriz, de 25, à Rua da Carioca. Informou-lhes que, aos 52 anos, era um homem pobre e que a única herança que poderia deixar-lhes era a rádio, para que a dirigissem como uma rádio comercial. Só o prefixo, já então PRA-2, valia uma fortuna. “Mas não quero que ela se transforme numa rádio comercial”, acrescentou. A seu ver, ninguém – nem ele, nem seus filhos – poderia salvá-la desse destino. Somente um órgão oficial teria meios para isso.  

Beatriz entendeu o que seu pai queria dizer. E nem esperou pela opinião do irmão. Antecipou-se e perguntou: ”É esse o seu ideal, papai?” ”É”, respondeu Roquette. ”É tão raro um homem realizar seu ideal, meu Deus. Dá a rádio, papai. Nem se discute”.

Roquette então perguntou por carta a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, se o ministério se interessaria pela rádio com tudo o que havia dentro: instalações, equipamento, biblioteca, laboratório de ensaios científicos, discoteca, instrumentos musicais, partituras, arquivo, móveis e utensílios, além, é óbvio, da estação transmissora em perfeito estado de funcionamento, com seus canais de ondas médias e curtas, e um quadro completo de locutores e técnicos com 13 anos de experiência. Tudo isto sem dívidas ou ônus de espécie alguma para a União e até com dinheiro em caixa. Única e irrevogável condição: a de que a rádio permanecesse fiel ao seu lema cultural e educativo, sem qualquer vinculação comercial, política ou religiosa. Capanema respondeu que o presidente Getúlio Vargas aceitava e agradecia, mas sugeria que a reversão fosse feita através do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Ao ler isso, um alarme tocou na cabeça de Roquette. Ele pareceu adivinhar que, em menos de um ano, o tal departamento se tornaria o infame Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Ora, ninguém o estava obrigando a desfazer-se de sua rádio. Sem hesitar, mandou outra carta a Capanema enfatizando que a reversão seria feita “ao Ministério de Educação do povo, não ao governo”. E só então Capanema entendeu e encerrou a correspondência, garantindo que o ministério a aceitava sem discussões, nos termos em que fora proposta.  

Essas cartas foram os anticorpos que, no futuro, garantiriam a integridade da rádio contra os vários órgãos que tentariam apossar-se dela. A reversão foi sacramentada no dia 7 de setembro de 1936. Na cerimônia oficial, realizada no terceiro andar do prédio da Rua da Carioca, Capanema fez-se acompanhar por seu chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade. Vinte e cinco anos depois, Drummond recordaria numa crônica que a cerimônia “tinha qualquer coisa de casamento no seio de uma família muita unida, que via a filha sair nos braços do rapaz escolhido livremente; sim, um excelente rapaz, tudo estava ótimo, os dois seriam muito felizes – mas… quem sabe?” A imagem lhe ocorrera porque Roquette passara os canais a Capanema com a frase:”Entrego esta rádio com a mesma emoção com que se casa uma filha”.

Roquette saiu dali com Beatriz para um pequeno corredor nos fundos do andar e chorou de antecipada saudade. Com os olhos também molhados, Beatriz voltou para ajudar Drummond a colar os selos do ministério nos móveis e objetos da rádio. Naquele dia, (…), a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro deixava de existir, para que nascesse a Rádio Ministério da Educação.”

Eis aí porque, inspirado por essa maravilhosa história brasileira, justifico 2007 como o meu Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social.

Afinal, lágrima de herói nunca é derramada em vão. Heróis dão exemplos; heróis abrem caminhos.

Heróis são alicerces do futuro; suas histórias de vida são construções de esperanças.

Edgard Roquette-Pinto é o maior, ainda que talvez o mais desconhecido, herói da comunicação brasileira.

Que a sua exemplar história de vida ilumine aqueles que, neste ano, assumirão a responsabilidade pela formulação e debate das políticas de comunicação no Brasil. 

*Artigo originalmente escrito para Terra Magazine
(www.terra.com.br/terramagazine/colunistas/muriloramos