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A tecnologia como ferramenta de inclusão

Numa conversa elucidativa, Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia da Fundação Getúlio Vargas e do Creative Commons no Brasil, além de sócio-fundador do inovador portal Overmundo, faz uma radiografia completa da nova revolução da informação e explica por que ela não será televisionada.  

Por Daniel Benevides
 

O que é o Creative Commons?
O Creative Commons é um modelo de licenciamento, um jeito de um criador intelectual, na internet ou fora dela, de qualquer tipo de obra – filme, foto, vídeo – dizer para a sociedade que ele não se importa com alguns usos da obra. Cabe a cada um escolher quais são esses usos. Um aspecto importante do CC é ser voluntário, só o utiliza quem vê sentido nisso. Nesses quatro anos de projeto há mais de 145 milhões de obras licenciadas em CC. O site www.soundclick.com, por exemplo, tem 300 mil músicas licenciadas em CC. Podem distribuí-las à vontade, colocar em rede pier to pier, site, com graus de autorização que permitem remixar, reconstruir, colocar num filme e até vendê-las. Um músico, para lançar um disco, tem de ceder a música a um intermediário. Doar todos os seus direitos a uma gravadora. Em troca, ela paga um adiantamento e dá um percentual sobre a gravação do CD. A empresa investe em marketing e vende o produto. Mas a propriedade intelectual fica na mão do intermediário. O CC elimina o intermediário. É errôneo pensar que o direito autoral favorece o artista. 

Quando Surgiu o CC?
A partir de 2001, nos EUA. No final da década de 90, mudou-se a lei americana para proteger o Mickey Mouse. A lei do direito autoral protege qualquer obra por prazo limitado e depois cai em domínio público. Mickey Mouse caiu em domínio público em 1998. Por pressão da Disney e de outras empresas, a lei americana foi mudada, aumentando o prazo de proteção de direito autoral por mais vinte anos. A lei foi então questionada na Justiça dos EUA por Lawrence Lessing e um grupo de advogados como inconstitucional. Perderam, mas, diante da derrota, um número expressivo de criadores passou a querer jogar com outras regras, e Lessing elaborou a idéia do CC, que no início era um projeto pequeno, apenas nos EUA. O Brasil foi o terceiro país a aderir, depois do Japão e da Finlândia. Ao final do primeiro ano comemoramos 1 milhão de obras licenciadas no CC. Atualmente, o CC está em cinqüenta países e tem 145 milhões de obras. 

O site dominiopublico.gov.br tem a ver com esse movimento?
Tem. O Domínio Público do Ministério da Educação e vários sites governamentais usam o CC. A Agência Brasil, por exemplo, usa a licença mais abrangente possível. A única exigência é o crédito. 

O que ganha o autor que utiliza a licença CC? Além da veiculação, visibilidade, como ele pode viver da arte se não a vende?
A transformação do modelo dos negócios que envolve a cultura passa pelo modelo CC. Fala-se em web colaborativa, Web 2.0, que é só uma ponta do iceberg de uma transformação muito mais profunda, em que teremos novos modelos de negócio. Por exemplo, em música está cada vez mais claro que o artista não ganha dinheiro com a venda de CD. Seja Gilberto Gil, Caetano ou um artista independente. Os independentes gravam um CD, imprimem 5 mil cópias e não vendem nada porque não conseguem distribuir. Marcelo Camelo (Los Hermanos) disse que o primeiro álbum do grupo (Ana Júlia) vendeu 250 mil cópias, quando a banda não era ninguém, e o segundo vendeu absurdamente menos. Eles continuam com muito sucesso e a venda de CDs nunca foi tão pequena. Um sintoma claro disso é o fechamento das lojas de CDs. Para sobreviver, qualquer artista precisa construir uma relação com o público. Para isso, tem de ser visto, ouvido, tem de divulgar seu trabalho. O americano Tim O’Reilly (criador do conceito Web 2.0) diz que a pirataria é melhor que o anonimato. E ele tem razão. Uma vez que o modelo de negócios definitivo ainda não surgiu, fica a constatação de que é preciso construir uma relação com o público para ser viável  economicamente. A verdadeira música brasileira, que está sendo ouvida no país, não é mais distribuída pela Sony, BMG, Warner e Universal, está sendo distribuída autonomamente. Como é o caso da Banda Calypso, que vende os CDs em camelôs e, com isso, atinge o Brasil inteiro. 

E qual é o retorno que eles têm?
O camelô é um meio de divulgação, não rende um tostão, mas, em compensação, em qualquer lugar que fizerem show ganham dinheiro. Hoje acontece a multiplicação de modelos de negócios, os ringtones de celular, os DVDs, licenciamentos, shows, DJ sets. A mistura desses modelos é o que dá sustentabilidade econômica para os artistas. E o compartilhamento da obra não afeta praticamente nenhum desses novos modelos de negócios. 

Isso em relação à música e em relação a outras mídias?
O mercado de audiovisual tem pluralidade de visões. Como competir com Hollywood, que detém 85% do mercado mundial de cinema? Poucos países tem produção local para competir, China, Coréia, Índia e Nigéria – maior produtor de filmes do mundo. O cinema nigeriano surgiu na periferia, é distribuído pelo camelô e produz 1.200 filmes por ano, enquanto os EUA produzem cerca de 600 e a Índia 900. São filmes de histórias e atores locais, vendidos em DVDs. Não existe cinema na Nigéria, mas as pessoas têm aparelhos de DVD como na periferia do Brasil – na Cidade de Deus, na Rocinha… No final da década de 90, quando o mercado estava numa fase pré-evolutiva, os filmes eram vendidos em cestos no sinal de trânsito. Eram de vinte a trinta lançamentos por semana. Há quatro feiras de audiovisual semanalmente na Nigéria em que lançam os filmes novos. 

A indústria cinematográfica compete com a televisão na Nigéria?
Compete. As pessoas perguntam como fazer isso no Brasil, se temos a Globo e seu padrão de qualidade? A Nigéria compra as novelas da Globo e também exibe no horário nobre; e a qualidade técnica dos filmes nigerianos está subindo de forma impressionante, porque a tecnologia se barateia, filmam em alta definição. Os nigerianos nos disseram que Hollywood usa uma tecnologia obsoleta, que é o celulóide, e não consegue se livrar dele porque tem de obedecer às regras dos lobbies. As telas do futuro serão cada vez menores, vamos assistir a filmes num dispositivo portátil; o cinema vai continuar existindo, mas será o lugar em que o menor número de pessoas verá filmes. E, quando sua tela é pequena, não interessa se seu filme foi filmado por uma Panavision 90mm ou câmera de celular, a qualidade e a definição de imagem são as mesmas. 

Mas continua sendo cinema?
É uma grande questão. Falei do cinema nigeriano para um conhecido documentarista brasileiro e ele me disse: “Não é cinema, é outra coisa”. Em um texto de 1969, Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa, escreve que o verdadeiro cinema só vai surgir quando as periferias descobrirem o acesso técnico aos meios de produção cinematográfico e começarem a contar as próprias histórias. Então, a definição do que é  cinema é política. Quando se diz que o nigeriano não é cinema se está favorecendo o modelo que precisa de US$ 7 milhões para ser produzido, com celulóide, com distribuição em sala, DVD e televisão, mantendo o estado de coisas da indústria do audiovisual. 

Com as afirmações de Langlois, o exemplo da Nigéria e a força da periferia no Brasil, é  possível uma mudança?
Esperamos. Estamos investigando modelos de produção nigeriano para trazer ao Brasil. O pessoal da Cidade de Deus produz audiovisual, tem seus filmes vistos por cem, duzentas pessoas, com três, quatro cópias em DVD e apenas passavam em festivais. Não tinham pensando em uma parceria com um pirateiro. Estavam fazendo filmes aos quais a própria comunidade não tinha acesso porque passavam em Ipanema. 

E o que tudo isso tem a ver com o CC?
Cacá Diegues disse que é importante para qualquer país possuir uma filmografia permanente, documentando espaços históricos, geográficos, arquitetônicos. Se a justificativa que legitima o sistema atual de cinema não é fomentar uma indústria, mas realizar uma filmografia permanente, então a questão do acesso é fundamental. Se o filme já nasce pago, com dinheiro público, o que justifica ser restrito e explorado num regime comercial que pouquíssimas pessoas vêem? Por que não criar um regime em que, por exemplo, o filme tenha um tempo de exploração comercial e depois seja licenciado em CC, fique disponível online, fomentando mídias novas? 

Como no Brasil pouca gente ainda tem acesso à internet, esse não é um trabalho que deveria ser feito junto com a inclusão digital?
Tem de cuidar da inclusão digital e do acesso ao conteúdo ao mesmo tempo. A inclusão digital vai acabar acontecendo. No ano passado pela primeira vez se vendeu computador tanto quanto televisão no Brasil, 10 milhões. Também foi o primeiro na história do Brasil em que se venderam mais computadores legais do que ilegais, graças ao programa PC Conectado. O grande risco é o regime de acesso ao conteúdo não avançar em nada. Há quatro requisitos para que a tecnologia seja efetivamente uma ferramenta de transformação social: conteúdo livre, que é o objetivo do CC; o software livre; espectro livre, que é o espectro radioelétrico; e hardware livre que são aparelhos que obedecem às ordens do usuário. Por exemplo: o projeto de TV digital do Brasil está discutindo a implementação de um sistema automático de proteção à cópia do conteúdo. Na prática significa acabar com a tecla REC do videocassete. A TV digital vai criptografar o sinal de modo que quem quiser gravar a programação vai precisar pedir uma permissão especial e até pagar. A experiência mais importante de inclusão digital no Brasil não veio do Estado, mas da sociedade. O lugar onde as pessoas acessam computador é na lan house. Na Rocinha hoje há pelo menos cinqüenta; na Cidade de Deus, vinte; em Copacabana, quarenta. É um fenômeno que nasce de baixo para cima graças ao  empreendedorismo isolado. Nelas, uma hora de acesso à internet ou a jogos custa de R$ 0,50 a R$ 1,50 e, mesmo pagas, são mais cheias do que os locais dos programas do governo de acesso à internet. Porque na lan house pode acessar Orkut, Flogão, Fotolog, e no telecentro, não. A última pesquisa do Ibope com a NetRatings constatou que dos 6 milhões de pessoas que acessam a Internet de lugares públicos no Brasil, 1,6milhão são de lugares governamentais, 4,4 milhões são das lan houses. 

A periferia está on-line?
No Orkut há a comunidade do Complexo do Alemão. O fotolog do pessoal pobre é o Flogão. Eles têm email, MP3 player e carregam as músicas na lan house. Falta alguém aproveitar o potencial que isso tem para a cidadania, serviços públicos… 

O governo?
Governo, ONGs, de forma não “intrusiva”, é claro. Nas lan houses da Rocinha, por exemplo, muita gente da comunidade procura por curso para aprender a mexer em computador. Por que não aproveitar para a cidadania, curso, reunião de bairro etc? O Commons é a ferramenta jurídica para reconstruir o que essas mudanças da propriedade intelectual nos últimos quinze anos desconstruíram, o aspecto colaborativo da cultura. E há esse outro tipo de Commons que já existe na sociedade, pronto e operando em regime de compartilhamento, que são a música que emerge das periferias, o cinema nigeriano, os fenômenos de empreendedorismo solidário, como as lan houses. É uma discussão única, em que o jurídico e o social são indissociáveis, com o objetivo de dar autonomia para a sociedade se tornar produtora de cultura, informação. Esse tipo de atividade abre um novo tipo de sociedade, na qual a barreira entre produção e recepção de cultura foi por terra, e isso tem conseqüências brutais para a democracia, para a idéia de governabilidade, de Estado. Tudo isso está sendo posto em xeque e, do meu ponto de vista, de uma forma transformadora positiva. Meu discurso parece otimista, mas vejo toda essa  possibilidade ser abortada, pois os interesses que serão abalados nesse processo estão atacando com toda a força. Tenho a impressão de que a tecnologia vence quando dá lucro aos grandes meios de produção. Até os anos 80, a tecnologia vencia os detentores de conteúdo, a partir da década de 90 a situação se inverte. O caso Napster versus indústria musical – Napster perde. O caso dos DRMs da Apple – por enquanto a Apple está ganhando. E por aí vai.  Uma das formas de controlar o conteúdo é usar tecnologia que diz às pessoas o que elas podem ou não fazer. Um arquivo de música comprado na loja da Apple só toca no iPod, que é da Apple. Se o tocador for da Microsoft ou genérico, não toca. Então existe um problema que chama interoperabilidade. Se comprar uma música no UOL, não consegue ouvi-la no iPod, porque ela só toca no player compatível com a Microsoft. É uma compartimentalização de mercados. Você pode dizer: “Quebro essa medida tecnológica, transformo a música em MP3 e toco onde quiser”. Em 1999 foi aprovada uma lei nos EUA que criminaliza a quebra dessa medida de proteção tecnológica. Mais uma derrota. A Associação Brasileira da Propriedade Intelectual quer que o Brasil faça o mesmo. 

Estaríamos vivendo sob uma espécie de tirania das grandes corporações?
Trata-se de um lobby bem organizado e histórico. Hollywood e a indústria musical estão entre os maiores lobbies americanos, provavelmente comparáveis aos das armas e do tabaco. E não há instituição organizada que represente os interesses coletivos. 

Você não vê esse movimento do CC ou similares quebrando essa barreira?

Não. O próprio movimento CC corre perigo. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual está  discutindo o Tratado de Radiodifusão, que cria um meta direito autoral, que é dado ao transmissor da informação. Isso é de interesse das cadeias de televisão, por exemplo, e destrói o CC. Imagine que lhe envio uma obra licenciada em CC. Se ela for transmitida, de alguma forma, o transmissor adquire o direito sobre ela, reprivatiza. Tudo isso sugere que a economia da cultura política tem um poder transformador…A dimensão econômica da cultura sempre foi menosprezada. Há quatro ou cinco anos a idéia de economia da cultura começou a se manifestar com mais força e talvez seja a que tem maior potencial de transformação social.A cultura leva ao colaborativismo, fomenta outros tipos de relação social e econômica e a educação. Ao fomentar atividades que envolvem economia da cultura, fomenta-se autonomia informacional, autodidatismo. Qualquer programa de inclusão digital mostra que as crianças aprendem a usar o computador em menos de dez minutos. A ligação entre a economia da cultura, colaborativismo, mais revolução educacional pela autonomia informacional é o coquetel transformador. Se fosse responsável por políticas públicas, faria uma revolução pela informação. A única possibilidade econômica que o Brasil tem de se inserir no mercado global de forma competitiva é por meio da revolução informacional. O país hoje tem condições de competir no mercado de novas mídias. 

E o programa de Pontos de Cultura?
É um dos poucos programas públicos no mundo que conjuga essa idéia da tecnologia digital como forma de emancipação de comunidades locais. O CC está dentro dos princípios que criaram o Ponto de Cultura. A maioria das pessoas nos Pontos de Cultura ouve falar no CC antes de ouvir falar em direito autoral. As produções dos Pontos de Cultura estão sendo licenciadas em CC. Em Salvador eles gravam os jovens músicos locais, todos CC, e vendem o CD no sinal, igual na Nigéria, “Eletrocooperativa – CC”.  

E a experiência de Olinda, que é tida como um exemplo?
Olinda é um caso muito bacana, mas foi submetido a uma intempérie política, o secretário de Cultura saiu e o projeto morreu, embora a base social do projeto permaneça. A idéia era ressaltar cinco áreas de cultura – festas populares, teatro popular, música, patrimônio histórico e artes plásticas – e bombardear esse conteúdo on-line a partir de licenças livres, criar lugares e produtos culturais que pudessem ser compartilhados, dando visibilidade para a cidade. Olinda e Recife ainda são os pontos mais fortes do país em se tratando de colaborativismo. Há bandas licenciando músicas, pessoas criando conteúdos livres e colocando on-line. 

Como é o diálogo com o governo federal, com o ministro da Cultura?
Com o Ministério da Cultura, o melhor dos diálogos. No New York Times saiu uma matéria em março com o título “Gilberto Gil vê o futuro e ele é CC”. A reportagem mostra a aliança dele com o CC e como ele enxerga a indústria cultural e a propriedade intelectual. A relação com o ministério é a melhor possível, mas ainda há o que fazer. Há várias iniciativas e áreas em que o governo federal vem trabalhando que não são ligadas especificamente ao Ministério da Cultura e têm potencial de desenvolvimento de políticas públicas que estimulam a autonomia cultural. 

E em termos educacionais?
Hoje a escola enfrenta o desafio de integrar o sistema educacional de origem greco-germânica às tecnologias digitais novas, que põem tudo à prova. É fundamental, possível e barato ligar a escola. É só querer. 

Gostaria que você explicasse o 2.0, que tem a ver com a Wikipedia, e apresentasse o projeto Overmundo.
A Wikipedia é um exemplo de que é possível milhares de pessoas descentralizadas, colaborando  individualmente, conceberem um trabalho gigantesco. A Wikipedia empata com a Enciclopédia Britânica em número de erros. A vantagem da Wikipedia é que toda página é atrelada a uma lista de discussão. A crítica vem do americano Jeroen Wijering, que diz que ela empobrece a informação na medida em que retira a autoria, pois “a autoria é informação”. Um artigo da Britânica assinado por um Prêmio Nobel dá uma respeitabilidade quanto à origem. Isso realmente é um problema. A Web 2.0, que é uma fórmula inventada pelo americano Tim O’Reilly, são ferramentas que possibilitam que o cidadão se torne um repórter, o moleque se torne um fotógrafo, um músico se torne um jornalista musical, e por aí vai. O Overmundo é um projeto de Web 2.0 que tem a missão de funcionar como ferramenta para a emergência da cultura brasileira em todos os seus aspectos geográficos, em toda a sua complexidade e diversidade. É uma missão ambiciosa, mas específica. 

E quem controla? Como funciona na prática?
É a própria comunidade do Overmundo quem decide o que é publicado ou não. Cem por cento do conteúdo é gerado pelos usuários. Eles têm todos os recursos para publicar, por exemplo, um texto jornalístico, podendo ilustrá-lo com música, foto, áudio, filme… Criamos um sistema de votação em que a comunidade vota no que deve ser publicado. Todo conteúdo que entra no Overmundo vai para a “fila de edição”, onde por 48 horas recebe sugestões. Passadas as 48 horas, o conteúdo vai para a “fila de votação” e, por mais 48 horas, fica à espera de receber votos de quem gostou. 

Há iniciativas semelhantes em outros países?
Não. O Overmundo tem um aspecto simbólico muito importante e resolve o problema de a cultura brasileira estar muito centrada em Rio e São Paulo. Para esses estados a cultura do resto do Brasil não interessa. O que é de fora do eixo é exótico, diferente ou irrelevante. O Overmundo põe em igualdade de condições quem está publicando em São Paulo e no Acre. E o número de colaborações fora do eixo Rio–São Paulo é muito maior. Chego a suspeitar que a idéia colaborativa funciona melhor nos lugares em que as circunstâncias socioeconômicas são mais difíceis. Hoje, com um ano de projeto, há 12 mil usuários ativos, que contribuem com artigos. Os que lêem o Overmundo chegam a 17 mil por dia e temos notado um crescimento consistente, desde o primeiro mês, de 20%. É uma nova forma de se relacionar com a cultura jovem. O Overmundo faz o seu papel.  

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A TV digital e a oportunidade perdida

Hoje mais do que nunca a transformação necessária ao desenvolvimento e consolidação da democracia brasileira passa por uma ampla reforma no setor das Comunicações. Isso se dá pelo fato da produção e difusão de informação e cultura envolverem direitos e liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, o direito à informação, a liberdade de imprensa, o direito à privacidade e, e englobando todos eles, o direito humano à comunicação. 

O reconhecimento desses direitos (e o Brasil o faz, pelo menos em seus princípios constitucionais e tratados internacionais do qual é signatário) deveria imputar ao Estado brasileiro e aos poderes da República responsabilidades diversas materializadas na forma de normas infra-constitucionais e políticas públicas capazes de equilibrar, naquilo que chamamos de mídia, a circulação de informações de maneira que este processo reflita tanto o conjunto da sociedade brasileira quanto suas especificidades de classe, etnias, raças, regiões, gêneros, ideologias e valores morais e éticos. 

Harmonizar estas responsabilidades não é tarefa fácil, correndo-se sempre o risco de abusos por parte do Estado, que pode exercer um poder arbitrário, como ainda o fazem de forma sistemática alguns países totalitários. No Brasil, apesar de existirem ainda focos inaceitáveis de violações (especialmente onde impera o coronelismo), a liberdade de opinião e imprensa, nos últimos anos, dá demonstração de solidez. E, a despeito da tentativa dos setores que detêm a hegemonia na circulação de informações de imputar ao governo Lula tentações autoritárias, os fatos provam que os últimos quatro anos foram de ampliação das liberdades civis. Hoje, o maior impeditivo ao exercício destas liberdades é de outra ordem: a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos e sua finalidade majoritariamente comercial, ambas a maior forma de censura dos nossos tempos. 

Violação permanente

Este quadro se materializa em diversas formas e atinge em cheio o meio de comunicação mais importante do Brasil, a televisão. A fragilidade da legislação, datada da década de 60, e a sua má implementação geram diversas distorções. Exemplo claro é a aprovação e renovação das concessões, feitas muitas vezes por parlamentares donos de emissoras de Rádio e TV em um processo automático, sem critérios de avaliação, sem a participação da sociedade e ferindo a regra constitucional. Sem este controle, os atuais concessionários seguem abusando da publicidade ou da prática de estelionato (muitas vezes pouco sutil, diga-se), cometendo ilegalidades flagrantes como a sublocação de espaço nas grades de programação. 

Não bastasse, como uma cereja no bolo do quadro caótico, o capítulo de Comunicação Social da Constituição de 1988 ainda não foi regulamentado (após 19 anos), deixando sem efetivação princípios como a proibição ao monopólio, a prioridade aos conteúdos informativos, educacionais e culturais, a promoção da cultura regional e independente e a complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal. 

Num quadro onde a violação ao direito humano à comunicação é regra e não exceção, a migração para a plataforma digital da transmissão e recepção dos sinais de televisão aberta, por suas diversas características, inaugurou uma janela de oportunidades para que o Estado brasileiro reorientasse as políticas de comunicação, agora sob a perspectiva do interesse público. Em primeiro lugar, porque a TV digital necessariamente demanda a reorganização do espectro de freqüências (por onde trafegam os sinais de rádio e televisão), permitindo que mais programações sejam transmitidas (até seis vezes mais do que as existentes hoje). Em segundo, porque possibilita o oferecimento de serviços interativos de relevância social hoje só disponíveis pela Internet. Em terceiro, porque induzirá um processo econômico de grande escala que pode ser usado como um indutor do desenvolvimento tecnológico e científico do país. 

A televisão digital, entretanto, apesar de suas potencialidades, não é uma dádiva que, necessariamente, trará benefícios à sociedade. Seus resultados dependem de decisões políticas. Algumas delas já foram tomadas. Outras, tão essenciais quanto, ainda não estão consolidadas, especialmente em função da incapacidade do marco regulatório vigente de absorver a migração para a televisão digital. 

A história recente da TV digital no Brasil

O Decreto Presidencial (4.901/2003) que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) possuía méritos inegáveis. Mencionava princípios como o desenvolvimento científico-tecnológico, a inclusão social, educação à distância e a democratização da informação. A partir dele, foram criados consórcios de universidades e centros de pesquisa que receberam recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico para as Telecomunicações (Funttel) a fim de  produzirem tecnologias nacionais que pudessem ser utilizadas na TV digital. Ao mesmo tempo, a sociedade civil foi chamada a participar do processo, através da criação de um Conselho Consultivo. 

O desenrolar das atividades previstas no Decreto 4.901, porém, se mostrou bem aquém das expectativas dos movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação. Houve pouco dinheiro para as pesquisas e seus repasses sofreram vários atrasos. O Conselho Consultivo não contou com infra-estrutura para seu funcionamento, até que finalmente deixou de ser convocado sem que a sociedade civil pudesse se pronunciar sobre os diversos assuntos envolvidos com a TV digital. Por fim, a posse do ministro Hélio Costa, em um momento onde o governo Lula sofria forte perseguição da grande mídia privada, significou a consolidação dos interesses dos radiodifusores privados (em especial as Organizações Globo), que conseguiram emplacar toda as suas reivindicações. 

O ápice desta “virada” no processo foi o Decreto Presidencial 5.820/2006, promulgado em 29 de junho de 2006 durante a realização da Copa do Mundo da Alemanha, quando todas as atenções estavam voltadas para o futebol. Ele sacramentou a adoção da tecnologia japonesa na constituição da TV digital terrestre brasileira (aquela que irá substituir o serviço de TV prestado atualmente em sinal aberto).

Para a implantação do novo sistema, o Decreto estabeleceu as diretrizes do processo de transição. Nele, a norma concedeu a cada emissora que já possuía outorga para um canal analógico um novo canal digital, em caráter de consignação. A figura da consignação é inédita em se tratando de concessões públicas e permitiu que o governo entregasse novos canais para os atuais radiodifusores sem levar o assunto para deliberação do Congresso Nacional, como determina nossa Constituição. A previsão é que o processo ocorra das maiores para as menores cidades mas nenhuma consignação foi feita ainda pelo fato da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estar procedendo estudos sobre a melhor ocupação do espectro.

Aqui começam os primeiros problemas. Na TV digital, um único canal de televisão passa a comportar a transmissão de várias programações simultâneas, variando a quantidade de acordo com a definição da imagem. Se optarmos pela qualidade de um DVD, no espaço hoje ocupado por uma única programação, é possível colocar pelo menos quatro. Frente a esta possibilidade, por que entregar este espaço todo para os atuais radiodifusores e não fragmentar as faixas, permitindo a entrada de novas emissoras (privadas, estatais e públicas)? A perdurar a escolha atual, esta segunda opção estará comprometida, pois haverá pouquíssimo espaço disponível para novas emissoras no período de transição, especialmente nos grandes centros urbanos. Ao invés de democratização teremos uma concentração ainda maior do espectro reservado à TV aberta. 

Contraditoriamente, o Decreto não otimiza o uso do espectro para incluir mais fontes de informação mas prevê que as atuais emissoras transmitam várias programações simultaneamente, entrando em conflito com o Decreto-Lei 236, de 1967. Esta norma impede um mesmo concessionário de possuir mais de um único canal por estado, numa clara restrição à concentração de propriedade dos meios de comunicação. Também está prevista na norma a possibilidade de haver interatividade, contrariando o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que define a radiodifusão como um serviço unidirecional. Porém, mais preocupante é o fato do governo permitir que a interatividade seja usada exclusivamente de acordo com os planos comerciais das emissoras. Ou seja, a TV interativa estará disponível apenas para quem puder pagar por um “canal de retorno” (banda larga) e comprar um terminal de acesso com modem, memória, HD, etc. Estaremos criando a categoria dos excluídos da TV interativa. Ao mesmo tempo em que deixaremos de usar os recursos interativos para prover diversos serviços de utilidade pública. 

Outro conflito presente no Decreto é de caráter político e ético. O Ministério das Comunicações é o responsável por definir quais emissoras estarão com a sua documentação atualizada, para que possam receber a consignação do novo canal. Ocorre que o titular da pasta, Hélio Costa, foi durante anos empregado das Organizações Globo, é dono de uma emissora de rádio em Barbacena e seu suplente (que financiou parte de sua campanha ao Senado) é dono das retransmissoras da Bandeirantes em Goiânia e do SBT em regiões do interior de Minas Gerais.

Por fim, o Decreto cria problemas também na definição do prazo de 10 anos para que as a finalização da transição do analógico para o digital, embora tudo indicar que o tempo necessário para que todos os usuários comprem os conversores ou troquem seus aparelhos televisores será maior.

As pesquisas brasileiras

Em paralelo à adoção da tecnologia japonesa para a TV digital (nome fantasia: ISDB) foi firmado um acordo com o governo japonês que visa definir como será a parceria entre as empresas brasileiras e nipônicas. Tal acordo, que deveria ter passado pelo Congresso Nacional, como define nossa Constituição, é vago, não imputando qualquer responsabilidade aos japoneses, não ficando claro em momento algum o nível da parceria ou se haverá ou não transferência de tecnologias. Ao não definir tais critérios e a obrigatoriedade da formação de mão-de-obra qualificada, a implantação da TV digital abre a possibilidade da instalação de meras montadoras, mantendo nossa histórica dependência de tecnologias importadas. Também há o risco do isolamento. Até agora, o Brasil é o único país do mundo, além do próprio Japão, a adotar o ISDB.

Mais recentemente, o governo criou um fórum para confecção das regras técnicas de implantação do ISDB no Brasil. Para participar deste fórum é preciso pagar (sic) e dele fazem parte apenas as empresas de equipamentos e radiodifusores, além de duas vagas para universidades. O primeiro problema é que o próprio governo tem presença consultiva em um órgão que definirá uma parte importante de uma política pública. O segundo é o veto à participação da sociedade civil. E, pela pouca informação disponível (quase tudo obtido em conversas informais), o que se sabe é que teremos a utilização de apenas duas tecnologias nacionais: o middleware Ginga e a implantação, no ISDB, do codec H264.

Canais da União

No Decreto 5.820/2006 consta que “poderá haver” a criação de quatro canais da União, um para o Poder Executivo, outro para educação, um para cultura e um último para a cidadania. É importante destacar que estes canais serão geridos pela União, sendo estatais e não públicos. Inversamente, não há nenhuma menção sobre levar para a TV aberta os canais de acesso público já existentes na TV a cabo (TV Câmara, TV Senado, TVs de assembléias legislativas e câmaras de vereadores, TV Justiça, canais comunitários e canais universitários).

Para ir ao ar, os canais da União deverão ocupar o espaço final do UHF (60-69). Mas, antes será preciso retirar de lá o serviço de link entre as geradoras analógicas e as suas estações repetidoras e retransmissoras (Serviço de Repetição de TV – RpTV), o que implicará em custos para os radiodifusores. Isso sem contar que tais canais são os que geram mais custos para a sua ocupação, o que implica na necessidade de utilizar uma maior potência (requerida pelos canais mais altos), aumentando os custos de transmissão. Assim, o Decreto preservou os canais mais baixos (e de transmissão mais barata) para as emissoras privadas, deixando os maiores desembolsos com a União.

Mudança necessária

Se a ampliação de fontes de informação e cultura não foi até agora uma opção política dos governantes brasileiros, com a tecnologia digital há poucos motivos cabíveis para não realizá-la. A tecnologia permite que isso aconteça, mas, sendo esta apenas um instrumento, é preciso que as autoridades responsáveis, especialmente o presidente da República, inovem frente aos seus antecessores. Se a história do Brasil é marcada pela atuação do Estado em prol dos grupos privados de mídia, um governo que se anuncia popular deve necessariamente adotar outro rumo. 

A democratização das comunicações é compromisso assumido pelo próprio presidente de forma explícita em seu programa de governo: “O governo deve assumir o compromisso com um plano vigoroso e específico de democratização da comunicação social no Brasil como uma de suas principais propostas para um segundo mandato e de fortalecimento da democracia” (Programa setorial de Comunicação e Democracia, disponível no sítio do PT). 

O mesmo programa cita explicitamente a necessidade de encarar a chegada da convergência tecnológica como oportunidade para “dar novas soluções a velhos e novos problemas” apontando que o novo modelo setorial “deverá corrigir as atuais distorções existentes na organização e no funcionamento destes serviços e orientar as profundas transformações que estão sendo introduzidas pela tecnologia digital”. 

A correção destas distorções passa, como afirmamos anteriormente, por um conjunto de políticas que coloque a comunicação a serviço das maiorias e que respeite o espectro eletromagnético como bem público. Nesse sentido, o próprio programa de governo para o segundo mandato aponta duas prioridades para levar a cabo este objetivo. A primeira é a reformulação do marco regulatório das comunicações em coerência  com o  direito humano à comunicação. A segunda é o fortalecimento dos sistemas democráticos de mídia, especialmente de um sistema público forte, com autonomia editorial, financiamento público e estável, e gestão participativa. 

Mais do que uma obrigação do governo frente aos compromissos assumidos durante a campanha, o projeto de democratizar a mídia no país é de responsabilidade de todos aqueles que defendem uma sociedade justa e democrática, especialmente dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais. Frente à dura disputa de projetos que já está em curso para os próximos anos, estas forças políticas não podem prescindir de buscar transformações radicais neste que é um dos campos mais importantes da luta ideológica da atualidade.  

Diogo Moyses, Gustavo Gindre e Jonas Valente são coordenadores do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social