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As idéias-organizadoras do jornalismo político

A origem e a disseminação de determinadas catchwords – ou palavras-chave, ou idéias-organizadoras – é um dos objetos de pesquisa mais fascinantes para os interessados nos meandros da comunicação jornalística. São palavras/expressões que pretendem traduzir sinteticamente, de maneira simplificada, questões complexas, ambíguas e de interpretação múltipla e polêmica. Elas buscam reduzir um variado leque de significados a apenas um único "significado guarda-chuva" facilmente assimilável. Uma espécie de rótulo.  

Exaustivamente repetidas na mídia, essas palavras/expressões vão perdendo sua ambigüidade original pela associação continuada a apenas um conjunto de significados e acabam sendo incorporadas ao vocabulário cotidiano do cidadão comum. 

Na crise política de 2005 houve largo uso de um conjunto dessas catchwords pelos partidos de oposição ao governo Lula e pela mídia: mensalão, valerioduto, silêncio dos intelectuais, conexão cubana, operação Paraguai, conexão Lisboa, república de Ribeirão Preto, dança da pizza, dentre outras. 

Chegou para ficar 

O que são exatamente essas idéias-organizadoras? De onde e como elas surgem? Qual o processo que leva à sua consolidação, não só na mídia, como no vocabulário do cidadão comum? Qual o papel que elas desempenham na construção da opinião pública?  

Essas seriam algumas das questões a serem respondidas por um projeto de pesquisa sobre o tema. Aqui vão apenas umas poucas considerações sobre a presença de catchwords na atual cobertura política. 

Creio que Gaye Tuchman, em seu clássico Making News (1978), foi quem primeiro tratou da questão. Apoiada em Goffman e Schutz, ela mostra como as matérias jornalísticas têm a capacidade de "frame" (enquadrar) um determinado tema dentro de um conjunto de referências conhecidas e, portanto, situam o leitor/ouvinte/espectador num mapa cognitivo que faz sentido para ele.  

Os "frames" são idéias-organizadoras para a representação seletiva de aspectos da realidade – e para a saliência de uns em detrimento ou omissão de outros. Eles formam o quadro de referência básico – contexto e significado – na construção das notícias e indicam os caminhos que conduzirão a cobertura no desenvolvimento dos eventos. Consolidados, raramente se modificam.  

No momento em que outra CPI promete manter viva a oposição política, surge uma nova catchword que certamente veio para ficar: "apagão aéreo".  

Uso generalizado 

Já tínhamos no vocabulário midiático o apagão referido à energia elétrica. Esse, literalmente, significou a ausência de iluminação, isto é, uma escuridão geral ocorrida em vários estados brasileiros ainda durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Agora, a CPI capitaneada pelos DEM é da "crise no setor aéreo", que envolve, além dos óbvios interesses partidários, o governo, as empresas aéreas, as seguradoras nacionais e internacionais, a Infraero e, claro, os milhões de usuários dos serviços de transporte aéreo. 

Faz alguma diferença nomear o problema ou a CPI como "apagão aéreo" ou "crise no setor aéreo"? Aparentemente, sim. O "apagão" traria mais conotações negativas de responsabilização do governo pela crise e evocaria a possível corrupção existente em empresas como a Infraero. Já "a crise no setor aéreo" amplia para além do governo as razões que levaram à situação crítica o transporte aéreo no país. 

Um aspecto interessante neste momento é observar o uso praticamente generalizado que a grande mídia já faz da expressão "apagão aéreo". Até mesmo a cobertura da Agência Brasil e do Jornal da Câmara se refere ao "apagão aéreo", e não à crise do setor aéreo. Mas há exceções. 

Enquadramentos distintos 

Veja o leitor as manchetes de abertura de dois telejornais de quarta-feira (25/4), dia em que o Supremo Tribunal Federal determinou a instalação da CPI na Câmara dos Deputados: 

** "O Supremo autoriza a instalação da CPI na Câmara sobre a crise do setor aéreo e o Senado decide abrir outra". 

** "O Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância de justiça no Brasil e impôs uma clara derrota ao governo. Obrigou a Câmara dos Deputados a instaurar uma CPI sobre o apagão aéreo que o governo fizera de tudo para evitar. O medo do governo não é tanto que a CPI chegue a algum resultado. É o circo político em torno dela, a distração do Congresso. O circo tornou-se inevitável em grande parte por culpa do próprio governo". 

Um observador desavisado poderia supor que se trata de manchetes de telejornais de diferentes emissoras de televisão. Mas a primeira manchete é do Jornal Nacional e a segunda do Jornal da Globo, ambos da Rede Globo de Televisão.  

Além das manchetes, o tratamento das respectivas reportagens também teve enquadramento distinto: no JN, a expressão "CPI do setor aéreo" foi repetida três vezes e no JG a expressão "CPI do apagão aéreo", duas. E mais: no Bom Dia Brasil do dia seguinte (26/4) a matéria sobre o assunto usou a expressão "apagão aéreo" e no Jornal Hoje (26), "CPI do setor aéreo". 

Oportunidade de estudo 

Quais as razões para os diferentes enquadramentos da questão dentro de telejornais da mesma emissora? 

O que parece claro é que a utilização – ou não – de determinadas catchwords representa uma escolha editorial e obedece ao tratamento da questão dentro de um determinado "frame" que passa, então, a orientar a cobertura dos eventos subseqüentes.  

A cobertura que a grande mídia fará da CPI da crise do setor aéreo – que deve ser instalada nesta semana na Câmara dos Deputados – oferece uma excelente oportunidade para se estudar a importância e o papel das idéias-organizadoras no jornalismo político brasileiro.

 

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Por trás das telas, concentração em mercados rentáveis

Dada a força da propaganda dos grandes lançamentos e a importância relativa que o setor cinematográfico recebe com leis próprias de incentivo, linhas de fomento e apoio de bancos públicos, seria de se esperar que o Brasil tivesse uma estrutura bem desenvolvida, em quantidade e distribuição, de salas de cinema, responsável por impulsionar toda a cadeia de produção audiovisual nacional. Mas não é bem o que ocorre. 

No país eram 2095 salas de cinema até o final de 2006, de acordo com dados da Ancine, para aproximadamente 180 milhões de brasileiros. Começamos a ter idéia do que este número significa quando, a partir da base do IBGE, descobrimos que menos de 10% dos municípios do país tem salas, e que nos Estados Unidos, maior mercado, são algo em torno de 37 mil. 

A distribuição também não ajuda: 1016 salas, quase 48% do total, estão somente nos estados do RJ e de SP. Outros 38% estão espalhados entre MG, BA, PE, GO, DF e os estados da região Sul. Sobram, para os outros 17 Estados do país, 298 salas. Alguns, como o Amapá, contam com menos de dez salas, geralmente localizadas na capital e com estrutura muito aquém da dos multiplex ou das salas com som e imagem digitais do Sudeste. Vão para as telas, porém, os mesmos filmes. E os filmes nacionais costumam não passar muito do mínimo exigido pela cota de tela. 

A concentração de locais de exibição se reflete também na distribuição das empresas que detém as salas, com raras exceções. Das onze maiores empresas, responsáveis por 1100 salas, quatro tem sede em São Paulo, três no Rio e uma em Minas Gerais. Aqui começam as exceções, com a Arco-íris, de Santa Catarina, quinta maior do país, e a AFA (ES) e a Cinesystem (PR), empatadas em décimo lugar, com 35 salas. 

Entre as empresas ainda, a maioria avassaladora está localizada nas regiões sudeste, detendo 1233 salas, e sul, com 183 salas. As demais salas ou estão ligadas a “independentes”, como salas alternativas e empresas pequenas, diversas ainda no Sudeste e Sul, ou às empresas Majestic (GO), com sete salas, Orient (BA), com 19 salas, ou a já citada AFA (ES). 

Quem são as grandes distribuidoras 

Não bastasse a concentração geográfica de salas e empresas, há ainda algumas poucas “gigantes” do ramo no país. 694 salas estavam nas mãos de apenas quatro empresas, respectivamente Cinemark, com sede em SP e 321 salas, Grupo Severiano Ribeiro (GSR), com sede no RJ e 164 salas, Grupo UCI, também do RJ e com 111 salas, e grupo Moviecom, com sede em SP e 98 salas. 

Neste pequeno grupo alguns fatos chamam a atenção: UCI e Cinemark são empresas internacionais, a menos de 15 anos no mercado local; GSR e Moviecom tiveram origem em metrópoles regionais, respectivamente Fortaleza e Botucatu; Todas exibem predominantemente filmes dos grandes estúdios estadunidenses, investem na digitalização das salas e em parcerias e outras formas de arrecadar mais capital, até para completar o processo de digitalização.  

O Cinemark, que no mundo tem um total de 4506 salas, na maioria no formato multiplex (complexos de salas, geralmente em shopping centers), atua no país desde 1997, especialmente nas regiões Sul e Sudeste e no Distrito Federal, com um total de 38 complexos, a maior parte na região metropolitana de São Paulo. Tal hegemonia se reflete nos lucros: a empresa divulga ter obtido, em 2006, renda bruta de R$ 330 milhões. O setor faturou, no ano passado, R$ 694,9, segundo estimativas do Filme B, entidade privada que recolhe dados e gera estatísticas e estudos do setor, independente da Ancine. Para captar recursos o grupo procura este ano lançar ações no mercado, e a assessoria de imprensa do Cinemark alegou que por este motivo não poderia ceder mais detalhes sobre os planos de expansão. 

Maior grupo de capital nacional, o Severiano Ribeiro começou em 1917, em Fortaleza, praça que logo dominou, expandindo seus negócios para Recife. Com a chegada das distribuidoras americanas no país, na década de 1920, o grupo migrou para o Rio de Janeiro, onde se expandiu e começou uma série de parcerias, primeiramente com as americanas Metro e Fox Films, nas décadas de 20 e 50, respectivamente, e depois com a Paris Filmes (1987), com o Grupo Estação, com quem administra cinemas em prédios históricos ou os chamados cinemas de rua, fora de shoppings, no Rio de Janeiro, e em 1997 firmou parceria com a americana UCI, com quem administrava até 2006 30 salas. Investindo em sua versão das multiplex, com o selo Kinoplex, o GSR tem utilizado salas com tecnologia digital, uma delas no padrão DCI, recém inaugurada em parceria com a UCI. 

A exemplo do GSR e do Kinoplex, os executivos da UCI não atenderam nossa reportagem. De capital estadunidense, a empresa opera principalmente através da parceria com o GSR, recentemente mobilizando recursos para viabilizar o empreendimento no Rio de Janeiro, onde somente no Norte Shopping terão 2.436 lugares. A empresa detém ainda investimentos em outras capitais, como São Paulo, onde tem pouco mais de 20 salas em dois complexos. 

A quarta exibidora, a Moviecom, teve um começo um tanto familiar, em Botucatu, fato que seu supervisor, Gustavo Ballarin, coloca com um certo orgulho: até o começo dos anos 90, ainda com o nome de Cinematográfica Passos, a empresa foi reestruturada, só então mudando sua estrutura empresarial. Com a mudança, começaram os investimentos em praças mais rentáveis, como São Paulo, mas sem abandonar o foco do grupo: o interior paulista e algumas capitais do Norte e Nordeste, como o complexo que inaugurará em Belém este ano. 

De Ballarin vem uma constatação: é difícil competir com os estrangeiros: “o setor enfrenta uma grande crise desde 2004. Vem daí uma retração no mercado dos pequenos grupos e uma concentração das salas para os grandes estrangeiros, capazes de investir”. Por esta e outras causas, a empresa estuda abrir participação em leis de incentivo fiscal para 2008. Atualmente o grupo investe apenas recursos próprios. 

Crise, aculturação e lucros
 

É fato que a “crise” atinge hoje o setor de forma desigual. De acordo com César Silva, diretor geral da distribuidora Paramount Brasil, entre 1997 a 2004 o mercado nacional cresceu seguidamente, e o número de salas mais que dobrou, resultado também dos investimentos dos estúdios estadunidenses, seguindo os lucros crescentes de seus filmes no período. Em 2005 e 2006 ocorreu algo que para Silva é uma “acomodação”, apesar do crescimento de 3,2% do faturamento do setor. Salas foram abertas, mas em ritmo bem menor. Para o primeiro semestre de 2007, porém, há previsão de construção de tantas salas quanto no ano de 2006, especialmente com capital internacional, no que talvez seja um último impulso antes dos investimentos na digitalização dos projetores. 

Para o professor e pesquisador André Piero Gatti, autor do livro A distribuição e a exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003), de fato o momento é de crise e não se sabe a real duração da mesma, mas é natural que haja certa retração depois do investimento feito no setor [entre 1997 e 2004], pois público não chegou aos patamares esperados pelos planejadores do mercado. “Mas a inserção [de empresas estrangeiras] no mercado nacional provocou um novo rearranjo do regime de desenvolvimento econômico do setor. Esta nova realidade reagrupou interesses e modificou hábitos anteriormente arraigados. Isto se deu tanto na recepção dos filmes quanto nos aspectos de comercialização e organização da própria indústria de produção de filmes”, pontua o acadêmico. 

E aqui a “bagunça” na legislação ajuda os investimentos, em especial dos produtores de filmes americanos, em distribuição e exibição. “[o caso brasileiro] trata-se de um verdadeiro campo descampado para a inserção indiscriminada dos produtos da indústria hegemônica do cinema contemporâneo. Sobre o fato de haver uma política casada entre estes interesses, ela me parece óbvia, mas não é alardeada para não provocar ações das mais variadas contra estas empresas. Isto porque a lei anti-trust nos EUA não permite tal casamento e outros atos legais impedem que isto também seja feito no exterior”. 

Este monopólio, pelos motivos já colocados, não está claro nos contratos, mas nas práticas comerciais. “Homem-Aranha I entrou em mais de 500 salas no Brasil, ocupando quase 1/3 do total do circuito de exibição. Isto não aconteceria nos EUA, por exemplo. O cinema no Brasil historicamente sempre funcionou como moeda de troca nos acordos comerciais que o país mantinha com os EUA”, completa Gatti. Para a pesquisadora e doutoranda do Prolam/USP Ignez Gurgel, esta ampliação do parque exibidor, contínua desde 1997, exerce um impacto cultural importante, ao mesmo tempo em que representa um acesso maior às linguagens audiovisuais. 

Para a pesquisadora, “os impactos advêm da absorção de outra(s) cultura(s), de ser educado por imagens visuais e verbais que narram histórias e que nos educam dentro de um processo de educação da memória e do olhar pela realidade em movimento, que é o cinema”. E completa: “o entendimento de um filme se dá através da história do filme e a história do espectador. É nesse intervalo, nesse vazio, que é construído o significado do filme. A educação visual é construída em forma, técnica e ideologia, num processo de aculturação”.

 

Active Image Autorizada a publicação desde que citada a fonte original.

Fragmentação versus convergência

Há algum tempo parece haver uma contradição entre a inevitável convergência tecnológica nas comunicações e a crescente fragmentação que tem ocorrido na pesquisa e na formação profissional do campo da Comunicação no Brasil. 

É fato conhecido e estudado que a chamada revolução digital diluiu as fronteiras entre as telecomunicações, a comunicação de massa e a informática, provocando uma convergência tecnológica que está tendo repercussões importantes na economia política, na legislação e no amplo espaço de formação e exercício profissional do setor.  

A própria definição conceitual do campo parece ser melhor expressa pelo plural comunicações que reuniria, numa única palavra, áreas hoje integradas que até há pouco tempo estavam diferenciadas pelas antigas tecnologias.  

É no quadro de referência dessa convergência tecnológica que se postula a necessidade de um novo marco regulatório, de um novo modelo de negócios e, por conseqüência, de uma rediscussão das formas tradicionais de formação profissional – em boa parte ainda orientadas pela clivagem das antigas tecnologias. 

Sentido oposto 

Uma rápida panorâmica sobre o ensino e a pesquisa da Comunicação, no entanto, revela uma ausência de sintonia com o que está a ocorrer na economia política, na legislação e nas profissões do setor. 

A principal entidade científica de Comunicação, a Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, inclui entre os objetos de seus núcleos de pesquisa conteúdos que vão desde a ficção seriada até o turismo e a hospitalidade. 

Já a Compós – Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, lista em seu sítio na internet cerca de duas dúzias de programas de pós-graduação surgidos no país da década de 1970 até hoje. Há informação de que, pelo menos, 25 desses programas estão em funcionamento. Talvez não seja exagero afirmar que a característica principal deles é a diversidade de seu conteúdo e de suas linhas de pesquisa, que vão da semiótica às tecnologias da informação.  

Tanto os núcleos de pesquisa quanto os programas de pós-graduação em Comunicação padecem da ausência de uma "convergência" em torno de um objeto que os articule e os identifique como constituidores de um campo específico de estudo e pesquisa. 

Os últimos anos assistiram também ao surgimento de diversas associações que reúnem pesquisadores em subáreas autodefinidoras de seus respectivos interesses e objetos de pesquisa: Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor); Fórum Nacional de Professores de Jornalismo; Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Cibercultura; Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação e Política; e a Unión Latina de Economía Política de la Información, la Comunicación y la Cultura, que embora não seja exclusivamente brasileira, reúne pesquisadores brasileiros identificados com esta área. 

Numa importante instituição de ensino e pesquisa – a Universidade Federal da Bahia – houve até mesmo a separação formal entre os estudos da comunicação e da cultura com a criação do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. Esse foi um movimento, registre-se, em sentido oposto ao que deu origem ao importante Center for Contemporary Cultural Studies, na Inglaterra dos anos 1960, até hoje uma referência para os estudos do campo. 

Políticas públicas 

Claro que essa fragmentação revela o estado de efervescência do campo da Comunicação. Anualmente há um sem-número de congressos, encontros, seminários e, consequentemente, centenas de trabalhos e relatos de pesquisa podem ser apresentados e discutidos. Há novas publicações e novos sítios na internet dessas diferentes entidades e programas.  

A primeira conseqüência desse quadro de fragmentação e ausência de identidade, todavia, aparece na qualidade da formação profissional que predomina na Comunicação. A revista Caros Amigos nº 121 traz longa matéria sobre o que pensam os estudantes brasileiros de jornalismo. A reportagem deveria servir de alerta não só para as muitas centenas de responsáveis pelos cursos de graduação em comunicação (jornalismo) – públicos e privados –, como para todos aqueles que se interessam pelo futuro do jornalismo no país.  

Sem jornalistas com formação humanística sólida e consciência crítica, como avançar em questões – como, por exemplo, a credibilidade – com que se defronta o jornalismo brasileiro?  

A segunda conseqüência, aliás já sentida faz tempo, é a impressionante ausência institucional dos programas e entidades de Comunicação do debate sobre as definições de políticas públicas por que passa o setor. Onde está a contribuição que anos e anos de estudo e pesquisa acumuladas têm a oferecer ao país? 

Formação profissional e participação na formulação de políticas públicas são questões sabidamente complexas e polêmicas. Uma reflexão se impõe, sobretudo no momento em que se discute o futuro do setor e a sociedade brasileira precisa, por isso, da contribuição de todos para fazer avançar a democratização das comunicações.  

É hora de cada um colocar na mesa o que tem e pode oferecer.

 

Active Image publicação autorizada, desde que citada a fonte original.

Mulheres, comunicação e a construção da Reforma Política

É preciso lutar para reverter os quadros de invisibilidade, sub-representação e estereotipagem das mulheres que permeiam tanto o conteúdo quanto as políticas de comunicação no Brasil. Este artigo busca explorar limites e possibilidades de intervenção nestes dois âmbitos, considerando que o sistema político tal qual existe é viciado e a mídia, por sua vez, reflete e reproduz este sistema (cuja manutenção, de alguma forma, beneficia quem está no comando do poder midiático), construindo um debate restrito sobre a sua Reforma.

Nesse sentido, a proposta que tramita no Congresso e é noticiada pela mídia se reduz ao debate político-partidário e responde aos interesses de quem quer manter o poder. É preciso que as mulheres ajudem a construir uma outra Reforma Política (que discuta a democracia também em suas vertentes participativa e direta), oportunidade para avançarmos também na construção de uma outra comunicação para o país. 

O Direito à Comunicação 

Quando se afirma a comunicação como direito, extrapolam-se conceitos como os de liberdade de expressão e democratização da mídia. Afirma-se que cada indivíduo tem direito de ter acesso, receber informações de qualidade e de forma diversa e plural, de produzir e veicular comunicação, e de participar dos processos de tomada de decisão políticos que envolvem esta esfera.

Toma-se a comunicação sob a forma de conteúdos (mensagens), mas também sob a forma de esfera pública por onde trafegam estas mensagens, onde se conformam valores e onde fruem os demais direitos. Por isso, afirma-se que, para existir uma sociedade efetivamente democrática, é condição haver comunicação democrática, tanto no que diz respeito às políticas, quanto no que diz respeito aos conteúdos.

Definitivamente, este não é o cenário no Brasil hoje. No campo dos conteúdos, uma das maiores barreiras para a diversidade de conteúdo e pluralidade de meios é a concentração. No campo das políticas, o maior entrave é a falta de entendimento da comunicação como direito e, portanto, a falta de reconhecimento da necessidade de políticas que regulem o setor, o que permite seu uso como moeda de troca política.

A concentração inibe as diversidades e estabelece uma espécie de monólogo, sem direito a um contra discurso. A grande mídia (comercial) conservadora e machista reproduz estereótipos, discrimina, sub-representa e usa um espaço que é público (o espectro eletromagnético, por onde trafegam os sinais de radiodifusão) para reproduzir preconceitos e passar visões distorcidas da realidade, que obviamente respondem a seus interesses. O fato de as mulheres serem maioria nas novelas e séries não significa que elas estão bem representadas. Muito pelo contrário, estão sendo exploradas, tendo seus direitos violados e tendo seus corpos transformados em mercadoria em grande parte das vezes. Basta lembrar de um comercial de cerveja recente que produzia loiras em série para serem consumidas assim como a cerveja. Esta representatividade é uma contradição histórica da democracia e se reproduz na comunicação enquanto conteúdo e ambiente político.  

Em relação aos jornais e à mídia impressa, é mais complicado afirmar uma possibilidade de intervenção em relação ao conteúdo, a não ser pensando na existência de ombudsman autônomo ou mesmo de um conselho de leitores e leitoras, porque estas são atividades privadas (ainda que devam necessariamente estar submetidas ao interesse público e que tenham como limite a dignidade, neste caso, das mulheres; e ainda que sua violação seja passível de direitos de resposta e outras reações).  

No entanto, quando o assunto é radiodifusão (televisão e rádio), que são as mídias mais influentes no nosso país (mais de 90% dos lares brasileiros têm televisão, número maior do que os lares com geladeiras), fica mais claro o papel que estes veículos deveriam ter e a responsabilidade que lhes é delegada enquanto concessionários de serviços públicos.

Ora, então, por que motivos os conteúdos veiculados nestes espaços públicos respondem aos interesses do que (de maneira equivocada), são considerados donos das emissoras de televisão? Por que, muitas vezes, o preconceito e os estereótipos são reproduzidos para justificar a audiência e o lucro?

No campo da política, o problema talvez seja ainda mais complicado. A comunicação não vista como direito permite que processos e serviços sejam usados como moeda de troca. Servem para prestar favores políticos, são alvo de lobby de grandes radiodifusores e empresários de megacorporações do campo das comunicações.

Alguém já ouviu falar em conselhos municipais de comunicação? Em mídias efetivamente públicas, com conselhos de gestão de programação e gestão financeira compostos por integrantes da sociedade civil? Ou mesmo em centrais públicas de produção de mídia que possibilitem que mais vozes se projetem na esfera pública?

A falta de regulamentação da legislação de comunicação é uma das causas deste cenário confuso que, na realidade, responde aos interesses de quem opera o poder comunicacional no país. A Constituição brasileira prevê um sistema público de comunicação, barreiras à propriedade e ao monopólio, concessões outorgadas pelo Congresso entre outras coisas. No entanto, pouco ou quase nada é posto em prática.

Enquanto o Estado se omite, nove famílias falam e 180 milhões de pessoas se calam. São estas nove famílias que decidem o que vamos ver na nossa televisão, sob o argumento de que democracia na TV é controle remoto e controle público dos meios é censura. São eles que decide que vamos assistir a programas como Zorra Total e às humilhantes “pegadinhas”, além dos absurdos “testes de fidelidade”.

É preciso pensar a participação das mulheres neste cenário como proposição de um lugar para este sujeito político. É preciso pensar a participação das mulheres como construção de uma comunicação contra-hegemônica, porque pensá-la somente nos espaços de poder tal qual eles hoje se constituem (inclusive no campo das comunicações) restringe a abrangência da transformação que queremos.
 

Como reverter distorções e discriminações que permeiam tanto o conteúdo quanto as políticas e comunicação no Brasil? A chave para a virada deste jogo está na luta pela participação das mulheres, tanto nos conteúdos midiáticos (produzindo, veiculando e circulando comunicação), quanto na valorização e ocupação de espaços políticos do campo da comunicação.  

Desequilíbrio na política 

Em pesquisa da União Inter-Parlamentar (UIP), uma organização de fomento à cooperação entre as câmaras nacionais de mais de 140 países realizada em 2006 e divulgada no site da BBC Brasil, o Brasil ficou em 107º lugar em um ranking sobre a percentagem de mulheres nas câmaras de deputados de 187 países até o fim de 2005. A lista foi elaborada a partir dos dados das últimas eleições em cada país (no Brasil, as de 2002). Ruanda aparece em primeiro lugar.

Segundo o levantamento, os países nórdicos, reconhecidos pela igualdade de gênero, ocupam as posições seguintes: em segundo, a Suécia (45,3%); em terceiro, a Noruega (37,9%); em quarto, a Finlândia (37,5%); em quinto, a Dinamarca (36,9%). Holanda (36,7%), Cuba (36%), Espanha (36%), Costa Rica (35,1%), Argentina (35%) e Moçambique (34,8%) completam os dez países com maior número de legisladoras.

O Brasil, assim como os Estados Unidos, ficaram abaixo da média mundial de 16,6% de mulheres na composição da câmara dos representantes, com apenas 8,6% brasileiras e 15,2% americanas. A média brasileira é pouco superior à de países árabes, que têm 6,8% de mulheres nos parlamentos.

Ruanda, o primeiro da lista, tem uma participação de 48,8% de mulheres, seguida de perto pela Suécia, com 45,3%. O Brasil é o país sul-americano pior colocado na lista, atrás de Argentina (9º), Guiana (17º), Suriname (26º), Peru (55º), Venezuela (59º), Bolívia (63º), Equador (66º), Chile (70º), Colômbia (86º), Uruguai (92º) e Paraguai (99º). A proporção de mulheres no Senado brasileiro é um pouco mais alta, de 12,3%, mas como vários países não têm uma estrutura semelhante, não foi elaborado um ranking específico. 

Invisibilidade na mídia 

Além do desequilíbrio na ocupação dos espaços políticos, em todo o mundo, as mulheres seguem invisíveis na mídia. A cada ano, o Dia Internacional da Mulher é um momento para contabilizar o progresso e os desafios a serem enfrentados em relação à permanente desigualdade de gênero que existe no mundo. Mas o que faz a imprensa no restante do ano? Como os veículos de comunicação contribuem para a igualdade de gênero ou para o reforço de preconceitos?

Desde 1995, a cada cinco anos, a WACC (World Association for Christian Communication), uma organização internacional que promove a comunicação como fator de transformação social, realiza um projeto global de monitoramento da mídia, onde mapeia a representação de mulheres e homens na imprensa do mundo inteiro. É o maior estudo sobre gênero no noticiário já realizado. O último levantamento aconteceu no ano passado, quando, durante um dia, em 76 países, cerca de 13 mil notícias publicadas em jornais e veiculadas na televisão e no rádio foram analisadas. Nelas, 25.671 fontes foram ouvidas ou citadas, por 14.273 jornalistas ou apresentadores.

Pela primeira vez, reportagens brasileiras entraram no estudo, numa parceria com a Universidade Metodista de São Paulo e a Rede Mulher de Educação.  O estudo mostrou que, mesmo constituindo 52% da população mundial, as mulheres aparecem em apenas 21% das notícias. Ou seja, para cada mulher que aparece no noticiário, cinco homens são retratados. No rádio, este percentual é ainda menor: 17%.  

Em dez anos, apesar de toda a revolução no mundo das telecomunicações, este total evoluiu muito pouco, aumentando somente em três pontos. Quando é feita uma análise qualitativa da presença de mulheres como fontes em reportagens, o estudo mostra que a opinião feminina é retratada em somente 14% dos artigos sobre política e em 20% sobre economia, os dois temas que dominam a agenda dos países. Mesmo em Ruanda, o país que tem a maior proporção de mulheres no mundo político (49%), elas aparecem em apenas 13% das notícias sobre o tema. Até em histórias que afetam profundamente as mulheres, como a questão da violência doméstica, globalmente é a voz do homem que prevalece, em 64% dos casos.

A voz feminina também é preterida quando se trata de ouvir a opinião de especialistas. 83% deles são homens. As mulheres, ao contrário, aparecem para relatar experiências pessoais (31% dos casos), como exemplos da opinião popular (33%) ou quando são celebridades (42%). E são duas vezes mais retratadas como vítimas do que os homens, mesmo em casos que afetam da mesma forma os dois gêneros, como acidentes e conflitos armados. Apesar da emancipação feminina e do brutal crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho, as mulheres continuam sendo identificadas pela imprensa como esposas, mães ou filhas. Mesmo quando aparecem desempenhando algum papel profissional, como especialistas de alguma área, as mulheres não escapam da relação com o contexto familiar.  

Outro dado interessante é o que revela que as mulheres dificilmente são o foco central de uma matéria. Apenas 10% das notícias mundiais – apesar de em países como Estados Unidos e Canadá chegarem a 20% – as colocam como o centro do acontecimento a ser destacado. A proporção varia de acordo com a pauta. Mulheres são centrais em 17% das notícias consideradas “leves”, e em apenas 3% das notícias sobre economia.  

Parte deste quadro de ausência da visão feminina na imprensa é resultado do fato de que as notícias ainda são relatadas e apresentadas principalmente por homens. A única exceção é a apresentação televisiva, onde as mulheres representam 57%. Na reportagem, no entanto, as mulheres só são maioria na cobertura de assuntos sobre pobreza e bem-estar social e nas previsões meteorológicas. Em outros meios, elas são minoria, e o desequilíbrio fica mais evidente em jornais, onde apenas 28% dos artigos são escritos por repórteres femininas. Mesmo neste caso, a tendência é a das mulheres cobrirem temas sociais, como educação e saúde. Apenas 32% das notícias sobre política e governo são relatadas por jornalistas mulheres. De 1995 pra cá, este percentual tem aumentado. Cresceu de 28 para 37%, mas ainda apresenta desafios. Na televisão, por exemplo, as mulheres desaparecem conforme ficam mais velhas.

Na profissão, a aparência jovem em muitos casos é mais valorizada do que a experiência. Até a idade de 34 anos, as mulheres são maioria na TV tanto no posto de apresentadoras como de repórteres. Depois dos 50 anos, somente 17% dos repórteres mulheres, e 7% dos apresentadores. 

Ocupar a mídia e a política 

Além de ocupar os espaços comunicativos e políticos para dar início ao processo de alteração deste quadro de sub-representação e distorção, há outras formas de atuação que vêm sendo levadas a cabo pelo movimento feminista para reparação deste cenário.

A Agência Carta Maior noticiou recentemente que um abaixo assinado proposto pelo Observatório da Mulher e contendo mais de 500 assinaturas de ONGs, grupos feministas, sindicalistas e outras organizações da sociedade civil foi entregue ao Ministério Público Federal. Dirigido aos acionistas e diretores das diversas emissoras da TV brasileiras e ao Fórum pela Ética na TV, o documento requer espaço na programação da TV comercial para apresentar uma imagem da mulher brasileira diferente da que é veiculada de maneira geral pelas emissoras. "A TV é uma concessão pública e, por isso, é legítimo considerar que as concessionárias têm, no mínimo, como contra partida, a responsabilidade de atender os mais altos anseios e interesses do público que pretendem representar", diz o documento.

O manifesto afirma ainda que “a relativa invisibilidade das mulheres trabalhadoras, intelectuais, especialistas, profissionais liberais e outras, a falta de espaço para a discussão de nossas reivindicações e ideais, bem como de nossas conquistas e das mudanças que conseguimos introduzir no mundo, perpetua a reprodução dos estereótipos limitantes que influem na formação de uma subjetividade empobrecida e resultam no rebaixamento da auto-estima das mulheres e na busca de sua afirmação através da perseguição dos modelos, valores e produtos veiculados”. 

Reforma política: uma oportunidade de criar espaços a serem ocupados 

A entrada em pauta da Reforma Política e os debates que estão sendo realizados sobre ela no âmbito da sociedade civil conformam uma oportunidade de se discutir as possibilidades de reparação deste quadro de sub-representação da mulher na mídia e nas políticas de comunicação.  

Em documento chamado de Plataforma dos movimentos sociais por uma Reforma Política Ampla, Democrática e Participativa*, uma articulação de diversos movimentos, organizações e setores da sociedade propõe que a reforma não se restrinja à reforma do sistema político e eleitoral, que tramita no Congresso e é noticiada pela grande mídia.  

As organizações exigem que a reforma contemple as diversas formas de democracia: participativa, direta e representativa, além de democratização da comunicação e da transparência do judiciário.  

No eixo que trata da comunicação, as organizações propõem – entre outras coisas – a criação de um sistema público de comunicação e incentivo a mecanismos de controle público, tanto dos meios de comunicação (em relação aos conteúdos), quanto das políticas, para que sejam criadas e executadas com participação e monitoradas pela sociedade. Se na educação, na saúde e em outros campos de direitos humanos consolidados, estes espaços de intervenção estão construídos (ainda que precisem ser reestruturados) e precisam ser ocupados pelas mulheres, na comunicação, é preciso participar da luta para construí-los, para, em seguida ocupá-los.  

* Resumo da apresentação no Seminário “Democratizar a democracia: a reforma política e a participação das mulheres”, realizado em Brasília, em 28 de Março de 2007. 

** Michelle Prazeres é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, assessora de comunicação da ONG Ação Educativa e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. 

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Leia mais sobre a plataforma e veja o documento completo em www.participacaopopular.org.br 

 

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O efeito-dominó das imagens do massacre de Blackburg

A imprensa noticiou – sem muita ênfase, é verdade – que professores norte-americanos vêm fazendo sérias ressalvas à cobertura televisiva do massacre na universidade da Vírgínia. Consideram que a disseminação livre ou "descontrolada" das imagens do acontecimento poderia suscitar novos comportamentos anômicos dessa mesma natureza, uma espécie de efeito-dominó da catástrofe. 

É difícil estabelecer relações de causa e efeito quando se trata da coexistência do mundo virtual com a realidade sócio-histórica, mas o fato é que a nação norte-americana, ainda traumatizada pelo massacre na Virgínia, assistiu quatro dias depois ao episódio do engenheiro espacial da Nasa que se entrincheirou num prédio, em Houston, para fazer dois reféns, matar um deles e se suicidar. Na verdade, segundo os jornais, este foi apenas o caso mais grave de um dia marcado por ameaças de bombas e de ataques a tiros contra escolas em Nova York, Nova Jersey, Minnesota, Califórnia, Washington, Arizona e Texas. 

O temor quanto ao efeito-dominó parece, assim, ter alguma razão de ser. Há algum tempo, a pesquisadora francesa Marie-José Mondzain, indagando-se sobre a possibilidade de que um crime tenha encontrado o seu modelo nas ficções audiovisuais, dizia que, em sua realidade sensível e suas operações ficcionais, as imagens "se colocam a meio-caminho das coisas e dos sonhos, num entre-mundo, um quase-mundo, onde se dispõem talvez as nossas servidões e as nossas liberdades". 

"Ponto de existência" 

Situar-se a meio caminho entre a representação e o real é propriamente a condição da mídia contemporânea, onde tudo é da ordem do quase: quase-presença, quase-verdade, quase-real e, por que não, quase-mente. O conceito acadêmico de quase-mente parece materializar-se na tecnologia avançada da comunicação, constituída por máquinas de computar e de representar. 

Uma hipótese instigante para isso tudo é a do sistema nervoso central funcionando fora do corpo humano. Algo parece "pensar" fora da subjetividade clássica (tanto a televisão quanto a informática operam processos dinâmicos, análogos a operações mentais), ao mesmo tempo em que se organiza uma realidade feita de imagens táteis, capazes de repetir com verossimilhança as rotinas do cotidiano tradicional e, assim, produzir uma forte sensação de realidade. 

Por esse caminho de uma humanidade artificial se orienta o padrão comunicacional em que a imersão – envolvimento dos sentidos na simulação de um ambiente tridimensional – do indivíduo é a regra principal. Trata-se de algo mais do que um mero tecnicismo do contato entre a mídia e seu público. É uma absorção que leva o indivíduo a viver virtualmente no espaço imaterial das redes de informação, teleguiado pelo mercado. Mais do que simplesmente visual, o contato que se estabelece é tátil, entendido como interação dos sentidos a partir de imagens simuladoras do mundo. 

Vem daí a sensação de se ocupar um ponto qualquer numa ambiência ou numa "paisagem" feita de "matéria" audiovisual ou de compressão numérica em altíssima velocidade. Esta é a idéia do "ponto de existência" (em vez do "ponto de vista"), que permitiria ao indivíduo encontrar uma posição física em meio aos sentidos tecnologicamente prolongados. 

Efeito da falta de convivência 

A sociedade norte-americana é aquela que, em nossa contemporaneidade, mais se aproxima dessa descrição de uma realidade recoberta por mídia e mercado. E tal modelagem tecnológica do mundo não é impermeável, muito pelo contrário, às características históricas e psicossociais de constituição do povo norte-americano – um povo de guerreiros e comerciantes, com aspirações hegemônicas sobre o resto do mundo.  

A instilação coletiva do medo (tida por Hobbes como a emoção fundamental) ao Outro (seja o estrangeiro ou o vizinho) faz parte de estratégias contemporâneas de controle de comportamentos que baseiam seus recursos retóricos na cultura da velha propaganda política. São claros exemplos disto os filmes de catástrofe norte-americanos, assim como toda uma literatura de grande consumo voltada para a acentuação paroxística dos temores sociais e, ao mesmo tempo, o culto às armas que, nos Estados Unidos, se associa à violência física e mental. 

A retórica do bode expiatório (cuja fonte de conhecimento mais antiga é o Levítico, no Antigo Testamento), isto é, a invenção de alguém a quem se atribuam as culpas latentes e manifestas no grupo social, é atualíssima para os grandes demagogos no mundo inteiro, mas é um mecanismo forte nos Estados Unidos, onde a extrema-direita elege como alvos os cidadãos não-brancos, em especial negros e hispânicos.  

Nada impede, porém, o reverso da moeda, ou seja, que a minoria constitua objetos idealizados (a plenitude da cidadania branca, o paraíso artificial do campus escolar etc.) como objeto coletivo da expiação. Este último é investido por emoções negativas, de modo a que se configure como um "Outro" em que se cristaliza a incerteza ou o Mal.  

A violência é o efeito natural da falta de convivência (a democracia define-se aí como o respeito jurídico às diferenças, mas não como aproximação real entre elas) entre os numerosos grupos diferenciados, em geral conotados como guetos. 

O contágio "virótico" das imagens 

Cho Seung-Hui, o autor do massacre na Virgínia, era filho de coreanos, logo, membro de um grupo existencialmente guetificado, embora juridicamente respeitado. A imprensa pode representá-lo como psicótico, mas também é possível concebê-lo, além da hipótese de psicopatia, como uma presa do sofrimento típico de alguém cujas únicas identificações reais se fazem com a mídia. Seu "ponto de existência" transportava-o da incomunicação do gueto à comunicabilidade livre das imagens ficcionais dos videogames e da televisão.  

É possível que se visse como um loser (perdedor), e nada pior do que isto numa sociedade em que mídia e mercado divide o mundo entre perdedores e vencedores. A arma fácil, ao alcance da mão na esquina mais próxima, é o argumento extremo. 

É certo que, como frisamos, tudo isso diz respeito aos traços da sociedade norte-americana. Mas no tocante ao contágio "virótico" das imagens televisivas, ou mesmo à cobertura sensacionalista dos jornais, vale a pena começarmos a botar as barbas de molho. Já se vem observando que comportamentos violentos ocorridos no Rio de Janeiro e transmitidos tais e quais pela mídia instantânea são replicados com a mesma crueza por parte de pequenos marginais em outras cidades do país.

 

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