As idéias-organizadoras do jornalismo político

A origem e a disseminação de determinadas catchwords – ou palavras-chave, ou idéias-organizadoras – é um dos objetos de pesquisa mais fascinantes para os interessados nos meandros da comunicação jornalística. São palavras/expressões que pretendem traduzir sinteticamente, de maneira simplificada, questões complexas, ambíguas e de interpretação múltipla e polêmica. Elas buscam reduzir um variado leque de significados a apenas um único "significado guarda-chuva" facilmente assimilável. Uma espécie de rótulo.  

Exaustivamente repetidas na mídia, essas palavras/expressões vão perdendo sua ambigüidade original pela associação continuada a apenas um conjunto de significados e acabam sendo incorporadas ao vocabulário cotidiano do cidadão comum. 

Na crise política de 2005 houve largo uso de um conjunto dessas catchwords pelos partidos de oposição ao governo Lula e pela mídia: mensalão, valerioduto, silêncio dos intelectuais, conexão cubana, operação Paraguai, conexão Lisboa, república de Ribeirão Preto, dança da pizza, dentre outras. 

Chegou para ficar 

O que são exatamente essas idéias-organizadoras? De onde e como elas surgem? Qual o processo que leva à sua consolidação, não só na mídia, como no vocabulário do cidadão comum? Qual o papel que elas desempenham na construção da opinião pública?  

Essas seriam algumas das questões a serem respondidas por um projeto de pesquisa sobre o tema. Aqui vão apenas umas poucas considerações sobre a presença de catchwords na atual cobertura política. 

Creio que Gaye Tuchman, em seu clássico Making News (1978), foi quem primeiro tratou da questão. Apoiada em Goffman e Schutz, ela mostra como as matérias jornalísticas têm a capacidade de "frame" (enquadrar) um determinado tema dentro de um conjunto de referências conhecidas e, portanto, situam o leitor/ouvinte/espectador num mapa cognitivo que faz sentido para ele.  

Os "frames" são idéias-organizadoras para a representação seletiva de aspectos da realidade – e para a saliência de uns em detrimento ou omissão de outros. Eles formam o quadro de referência básico – contexto e significado – na construção das notícias e indicam os caminhos que conduzirão a cobertura no desenvolvimento dos eventos. Consolidados, raramente se modificam.  

No momento em que outra CPI promete manter viva a oposição política, surge uma nova catchword que certamente veio para ficar: "apagão aéreo".  

Uso generalizado 

Já tínhamos no vocabulário midiático o apagão referido à energia elétrica. Esse, literalmente, significou a ausência de iluminação, isto é, uma escuridão geral ocorrida em vários estados brasileiros ainda durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Agora, a CPI capitaneada pelos DEM é da "crise no setor aéreo", que envolve, além dos óbvios interesses partidários, o governo, as empresas aéreas, as seguradoras nacionais e internacionais, a Infraero e, claro, os milhões de usuários dos serviços de transporte aéreo. 

Faz alguma diferença nomear o problema ou a CPI como "apagão aéreo" ou "crise no setor aéreo"? Aparentemente, sim. O "apagão" traria mais conotações negativas de responsabilização do governo pela crise e evocaria a possível corrupção existente em empresas como a Infraero. Já "a crise no setor aéreo" amplia para além do governo as razões que levaram à situação crítica o transporte aéreo no país. 

Um aspecto interessante neste momento é observar o uso praticamente generalizado que a grande mídia já faz da expressão "apagão aéreo". Até mesmo a cobertura da Agência Brasil e do Jornal da Câmara se refere ao "apagão aéreo", e não à crise do setor aéreo. Mas há exceções. 

Enquadramentos distintos 

Veja o leitor as manchetes de abertura de dois telejornais de quarta-feira (25/4), dia em que o Supremo Tribunal Federal determinou a instalação da CPI na Câmara dos Deputados: 

** "O Supremo autoriza a instalação da CPI na Câmara sobre a crise do setor aéreo e o Senado decide abrir outra". 

** "O Supremo Tribunal Federal é a mais alta instância de justiça no Brasil e impôs uma clara derrota ao governo. Obrigou a Câmara dos Deputados a instaurar uma CPI sobre o apagão aéreo que o governo fizera de tudo para evitar. O medo do governo não é tanto que a CPI chegue a algum resultado. É o circo político em torno dela, a distração do Congresso. O circo tornou-se inevitável em grande parte por culpa do próprio governo". 

Um observador desavisado poderia supor que se trata de manchetes de telejornais de diferentes emissoras de televisão. Mas a primeira manchete é do Jornal Nacional e a segunda do Jornal da Globo, ambos da Rede Globo de Televisão.  

Além das manchetes, o tratamento das respectivas reportagens também teve enquadramento distinto: no JN, a expressão "CPI do setor aéreo" foi repetida três vezes e no JG a expressão "CPI do apagão aéreo", duas. E mais: no Bom Dia Brasil do dia seguinte (26/4) a matéria sobre o assunto usou a expressão "apagão aéreo" e no Jornal Hoje (26), "CPI do setor aéreo". 

Oportunidade de estudo 

Quais as razões para os diferentes enquadramentos da questão dentro de telejornais da mesma emissora? 

O que parece claro é que a utilização – ou não – de determinadas catchwords representa uma escolha editorial e obedece ao tratamento da questão dentro de um determinado "frame" que passa, então, a orientar a cobertura dos eventos subseqüentes.  

A cobertura que a grande mídia fará da CPI da crise do setor aéreo – que deve ser instalada nesta semana na Câmara dos Deputados – oferece uma excelente oportunidade para se estudar a importância e o papel das idéias-organizadoras no jornalismo político brasileiro.

 

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