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Vai sair o Canal da Educação. Mas não era um canal público?

Por Veridiana Alimonti*

No último dia 14 de maio, foi lançado o Canal da Educação, um dos canais públicos previstos no Decreto 5.820/2006, que definiu o padrão de TV digital no Brasil e estabeleceu diretrizes para a transição do sistema analógico. A Portaria que regulamenta o canal (2.098/2015) foi assinada entre Ministério da Educação e Ministério das Comunicações. Contudo, o que deveria ser concebido como um canal público parece inaugurar outro capítulo de confusões com o sistema estatal na televisão brasileira.

A previsão de novos canais públicos foi uma das poucas boas notícias que vieram com o decreto da TV digital. A definição do padrão japonês, ainda que com o Ginga brasileiro, e a consignação às emissoras existentes de uma faixa adicional do espectro com tamanho que, na tecnologia digital, permitiria a transmissão de bem mais do que uma programação, marcaram a escolha do governo federal pela alta definição em detrimento de maior pluralidade na televisão. Apesar disso, o decreto de 2006 estabeleceu a criação de ao menos quatro novos canais digitais: do Poder Executivo, da Cidadania, da Cultura e da Educação.

Embora a exploração desses canais tenha sido atribuída ao Poder Público federal, desde aquele momento os canais da Cidadania, da Cultura e da Educação foram compreendidos como parte do sistema público de radiodifusão. Isso está explícito numa portaria de 2009 que reserva canais digitais para o que passou a ser chamado de Serviço de Televisão Pública Digital. A portaria veio depois da edição da Lei 11.652/2008, que criou a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e instituiu princípios e objetivos à radiodifusão pública.

Qual o problema, afinal?

A recente regulamentação do Canal da Educação indica que tanto sua gestão quanto a definição de sua programação serão essencialmente estatais – como ocorre hoje com os canais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A Portaria Interministerial que o regulamenta estabelece que o canal será consignado ao Ministério da Educação, com a difusão de até cinco faixas diferentes de programação no sistema digital. O conteúdo de todas elas, ainda não está definido mas se sabe que uma das faixas será voltada para a educação básica, com a exibição de programação da TV Escola, produzida diretamente pelo MEC, e de secretarias estaduais e municipais de educação. Outra faixa terá como prioridade o ensino superior, cuja programação será gerada principalmente por universidades e centros de formação federais, que nem sempre gozam de autonomia em relação à administração pública.

Ainda não há definição sobre o uso das demais faixas, mas tal tendência é preocupante quando consideramos o que deveria ser entendido como uma televisão pública. Num sistema como o previsto pela Constituição brasileira, que divide a comunicação entre estatal, pública e privada, a comunicação pública não é aquela feita diretamente pelo Estado, mas pela sociedade, com diversidade e autonomia na sua gestão. A participação social e a independência em relação ao Estado estão no cerne dessa definição.

Não à toa, a Lei 11.652/2008 consagrou como princípios da radiodifusão pública, mesmo quando prestada por órgãos ligados ao Poder Executivo:

– a autonomia em relação ao governo federal para definir sua produção, programação e distribuição de conteúdo;
– e a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira.

A portaria que regulamenta o Canal da Educação prevê a criação de uma Ouvidoria e de um Conselho, de natureza consultiva, para o canal. Ele deve ter participação do governo federal, do Poder Legislativo e de representantes da sociedade civil. Ainda que estas sejam garantias formais importantes, em si elas não asseguram a efetividade do canal como veículo da sociedade. Tudo dependerá de como serão definidas suas instâncias de gestão, de como serão escolhidos os integrantes da Ouvidoria e do Conselho e de como será decidida a sua produção e programação.

Nesse sentido, o Canal da Cidadania, também previsto no decreto da TV Digital, já regulamentado e em fase mais avançada de consignação de canais, apresenta um modelo mais interessante. Ele está igualmente planejado para se dividir em diferentes faixas de programação. Parte delas será destinada à veiculação das atividades dos Poderes Públicos municipal e estadual, podendo incluir, ainda, uma faixa para União e serviços de governo eletrônico. Todavia, já foi definido que duas de suas faixas serão destinada à veiculação de programas produzidos pela comunidade do município ou que tratem de questões relativas à realidade local. A responsabilidade por essa operação será de associações comunitárias definidas em processo seletivo.

No caso do Canal da Educação, a destinação de suas faixas adicionais ainda não está definida. Nada se fala também quanto ao aproveitamento desse espaço para potencializar iniciativas importantes de comunicação já em funcionamento, como o Canal Saúde, emissora de TV do Sistema Público de Saúde (SUS), acessível por antena parabólica digital. Enquanto iniciativas como essa são desprezadas nos planos dos canais dito públicos, as emissoras comerciais investem em transmitir esse tipo de informação, como se vê na faixa matinal da Rede Globo.

O exemplo reforça a necessidade de se discutir com a sociedade os rumos do Canal da Educação. Sua concepção até agora ficou restrita a órgãos de governo, como as secretarias de educação e associações ligadas à direção das instituições de ensino, não havendo um debate mais amplo sobre o tema dentro do próprio campo da educação.

Financiamento

Outra questão colocada é o financiamento do Canal. Na faixa de educação superior, por exemplo, quais os recursos disponíveis para as universidades públicas federais produzirem a programação considerando os inúmeros problemas de repasse de recursos do MEC para a manutenção das instituições federais?

A questão do financiamento não para por aí. Ela atinge os canais públicos de maneira geral. Atualmente, a infraestrutura para a migração para a transmissão digital representa um pesado investimento na instalação de antenas e torres por todo o país. O governo federal chegou a dar os primeiros passos para a construção de uma infraestrutura única de transmissão para a televisão pública digital, o chamado de Operador de Rede. Porém, o projeto foi abandonado – em princípio por falta de recursos – e não há notícias de que algo semelhante venha a ser desenvolvido. Isso compromete seriamente a qualidade e a penetração dos canais públicos no sistema digital.

O Canal da Educação é, portanto, apenas mais um intrincado capítulo da novela que é a consolidação de um sistema público de radiodifusão no país. Nela, sucedem-se momentos críticos que envolvem a ausência de um projeto coordenado para a comunicação pública, a recorrente confusão entre sistema estatal e público, e entraves e desafios ligados ao financiamento. Em verdade, esses problemas refletem algo anterior e mais profundo – a histórica indefinição do que seria o sistema público brasileiro e o fato de sua consolidação nunca ter realmente entrado na ordem do dia das políticas de comunicação do país.

Sem dúvida, o lançamento do Canal da Educação é uma boa nova em termos da veiculação de programações voltadas à formação crítica do indivíduo, para sua qualificação para o trabalho e para a universalização dos direitos à educação, à informação, à comunicação e à cultura. No entanto, ele só cumprirá o seu papel se estiver fundamentado nos parâmetros centrais da comunicação pública: efetiva participação social e autonomia de gestão e de recursos. Será melhor se pudermos escrever o roteiro do que ainda vem pela frente com mais e mais diversas mãos.

* Veridiana Alimonti é advogada e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Sociedade civil e MPF ganham prêmio por fazer o trabalho do governo

Por Pedro Ekman*

No início deste mês, a Associação Nacional dos Procuradores da República entregou o Prêmio República, categoria Direito Constitucional, para o Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac). O fórum é composto por quatro procuradores do Ministério Público Federal de São Paulo e quatro organizações da sociedade civil: Intervozes, Artigo 19, Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e Núcleo de Estudos de Violência da USP.

Não precisa ser advogado ou jurista para perceber as ilegalidades cometidas e divulgadas ao vento, via rádio ou TV, pelos donos da mídia. No entanto, as violações são ignoradas pelos órgãos que deveriam fiscalizá-las. Diante disso, o prêmio é o reconhecimento da atuação do Findac no setor de comunicação social e das vitórias do interesse público e republicano sobre os interesses privados e corporativos. Duas ações recentes exemplificam isso: as recomendações de fiscalização de rádios comerciais na cidade de São Paulo e as ações civis públicas contra o aluguel de tempo de programação para igrejas.

O Findac pediu para que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fiscalizasse 16 rádios comerciais em São Paulo que não tinham licença para atuar na capital, mas sim em cidades próximas. Isso porque a empresa ganhava a licitação para ter uma rádio em Mogi das Cruzes, por exemplo, mas acabava operando em São Paulo. Pode isso, Arnaldo? Pelo regulamento, pode. A empresa pode solicitar o deslocamento da antena para outro município se for para a rádio pegar melhor na cidade original. Assim, caso exista uma montanha na cidade vizinha que ajude na colocar a antena em um ponto mais alto isso poderia se justificar. Mas a regra detalha mais: o estúdio principal da rádio deve ficar na cidade de origem; a maior parte da programação também tem que ser feita nela e, obviamente, a rádio tem a obrigação de pegar na localidade de origem.

Vejam vocês que, das 16 rádios fiscalizadas, 16 estavam irregulares e algumas ainda tentaram impedir a realização da fiscalização. Mas como descobrimos essas irregularidades? Meses de intensa investigação e elaboradas operações policiais? Não, o próprio site da Anatel informava que as 16 rádios tinham licença para operar em cidades distintas das que de fato operavam. Se você ligasse o rádio, por exemplo, da Rádio Sulamérica Trânsito, que é do grupo Bandeirantes e tinha licença para operar em Mogi das Cruzes, iria facilmente perceber que as 24 horas de programação sobre o trânsito da cidade de São Paulo produzidas no bairro do Morumbi pareciam não respeitar o regulamento.

Como a Anatel e o Ministério das Comunicações, que têm a obrigação de fiscalizar o setor, nunca perceberam essas irregularidades tão “esculhambadamente” evidentes, se eles estão acostumados a caçar e descobrir rádios comunitárias nos lugares mais remotos, apreender e destruir seus equipamentos, perseguindo e criminalizando os comunicadores populares? Evidentemente, a conduta do governo e de seus órgãos de fiscalização trata com dois pesos e duas medidas a mídia comercial e a comunitária. O que o Ministério Público Federal (MPF) fez foi simplesmente aplicar para os ricos a lei que, até então, era exclusivamente reservada aos pobres. Isso de fato merece ser premiado.

O MPF também ajuizou três ações contra o aluguel de programação de rádio e TV para igrejas. A regra é clara: se uma empresa privada vence uma licitação pública para explorar um serviço público, como o de uma estrada, de transporte coletivo, de limpeza urbana ou de comunicação social eletrônica, ela não pode terceirizar sua atividade fim para outra empresa, pois não foi essa outra empresa que venceu a licitação. Mas a empresa pode vender até 25% do seu tempo de programação na exploração do serviço, o que significa que, das 24 horas do dia, ela poderia colocar no máximo 6 horas de propagandas, merchandising e outros conteúdos pagos no ar.

Regra fácil de entender, mas ao que parece difícil de ser cumprida. Pois bem, o ex-vereador de São Paulo Carlos Apolinário, que também foi pego na fiscalização das 16 rádios, havia resolvido alugar toda a programação da Rádio Vida para a Comunidade Cristão da Paz. A prática pode fazer com que Apolinário tenha que pagar 20 milhões de reais, valor estabelecido na ação civil pública.

A Justiça bloqueou os bens do ex-vereador e suspendeu a programação da rádio, que está longe de ser a única a terceirizar boa parte da sua programação. Assim como ela, a TV CNT aluga 22 horas da concessão que possui para a Igreja Universal do Reino de Deus. O Canal 21, do grupo Bandeirantes, faz o mesmo, repassando 22 horas para a mesma igreja. Outras emissoras como a Record, a Rede TV! e a própria Band cometem a mesma ilegalidade em números não tão absolutos, por isso o Findac fez a opção de levar à Justiça primeiramente os casos de descumprimentos mais gritantes.

A simples atuação do MPF na pauta já movimentou o setor de forma nunca antes vista. Grandes emissoras que têm boa parte de sua receita gerada pelo aluguel irregular aguardam desesperadamente pelo desfecho judicial das primeiras ações. A pergunta que fica é: por que o Ministério das Comunicações permitiu, por tanto tempo, que o setor se consolidasse com tantas irregularidades? Se o governo não faz o seu papel, a partir das ações ele agora está sendo obrigado, como réu, a ter que defender o interesse público.

Prevendo uma derrota judicial em relação aos alugueis, a Igreja Universal já anunciou – alô ministro, está na imprensa, não precisa investigar muito – que pretende comprar a CNT. Mas como uma licença que foi conquistada por licitação pública pode ser vendida no mercado? Pode isso, Arnaldo? Não pode. Isso burla a lei de licitações, a qual obriga o serviço a retornar à União para ser licitado novamente. E por que não se pode vender um bem público no mercado?

Poderíamos elencar os motivos:

– Desrespeita a Constituição Federal;

– Causa prejuízo ao patrimônio público e promove o enriquecimento ilícito;

– Prejudica outros concorrentes que podem ter interesse em obter a outorga pelo procedimento público aberto a todos, com isonomia e impessoalidade.

Caso a empresa tenha conseguido a licença antes de 1995, teríamos ainda o agravante do fato dela nem sequer ter pagado pela licença. Esse é o caso da MTV, que foi vendida por módicos R$ 200 milhões pelo Grupo Abril para a Igreja Mundial, do apóstolo Valdomiro Santiago. Perguntado pelo MPF, o Ministério das Comunicações afirmou que não há autorização para a venda da MTV, mas ele certamente já deve ter percebido que a programação de clips musicais deu lugar aos cultos religiosos. Também já deve saber que o Grupo Abril declarou a venda no seu balanço financeiro. É, Arnaldo, não está fácil. E tem mais.

Nos últimos dias, o Estadão anunciou, também na imprensa, que pretende vender sua rádio para o pastor R.R. Soares, que já aluga a programação no horário nobre da TV Bandeirantes. Não é possível que não se esteja percebendo que a radiodifusão brasileira a passos largos vai deixando de ter conteúdo informativo e cultural para se tornar um reduto religioso (e de determinadas religiões, o que gera outros problemas). Boa parte da colonização evangélica dos espaços antes dominados por grupos jornalísticos se deve ao fato deste mercado ser extremamente concentrado, com uma única empresa abocanhando 70% do mercado publicitário, o que também contraria os preceitos constitucionais. Mas esse é um capítulo à parte.

Com tamanha omissão do governo em relação à defesa do interesse público no que diz respeito ao setor comercial da comunicação brasileira, dar um prêmio a um grupo que está fazendo o trabalho que ninguém quer fazer é não apenas reconhecer o esforço quase histórico, mas também enviar um recado aos envolvidos: não dá mais para fechar os olhos às irregularidades da mídia. Agora, o governo federal precisa decidir se quer continuar atuando na pauta desde o banco dos réus ou se vai adotar como conduta os dizeres da frase do governo petista, inclusive, da Prefeitura de São Paulo: “Fazendo o que precisa ser feito”.

* Pedro Ekman é integrante da Coordenação Executiva do Intervozes

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Na tevê e nas ruas, gatilho contra jovens negros é disparado todo dia

Por Ana Carolina Westrup*

Neste momento em que se discute o aumento da violência e possíveis soluções para enfrentar esse cenário, uma importante publicação traz à tona informações que elucidam quem são as reais vitimas das mortes violentas e em quais circunstâncias esses fatos ocorrem.

Lançado na última quinta-feira (14), o Mapa da Violência no Brasil 2015: mortes matadas por armas de fogo traduz a cruel realidade escondida como migalha embaixo do tapete, longe das reuniões de pauta dos grandes meios de comunicação: o crescimento do número de mortes por armas de fogo na população em geral e, de forma alarmante, da juventude brasileira entre 15 a 29 anos, sobretudo quando se trata de pessoas negras.

Segundo a pesquisa, a arma de fogo mata quase cinco pessoas por hora, no Brasil. Apenas em 2012, foram 42,4 mil pessoas vítimas de homicídios, suicídios ou acidentes. Coordenado pelas Secretarias da Juventude da Presidência da República e da Igualdade Racial, em cooperação com a Unesco e com apoio da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso) e do Centro Brasileiro de Estudos Latino Americanos (Cebela), o mapa é desenvolvido desde 1998 com o objetivo de contribuir com dados sobre as formas de violência.

Atualizado, ela agora disponibiliza um panorama geral sobre a incidência de morte violenta nas diferentes regiões do país, com recortes de gênero, raça e faixa etária, até o ano de 2012.

O estudo aponta o crescimento de 556% no número de homicídios provocados por arma de fogo na população total, entre 1980 a 2012, sendo a juventude a maior vítima desse aumento. passando de 4,5 mil vítimas no ano de 1980 para 24.882 em 2012.

Outra situação reveladora está relacionada às taxas de mortalidade por arma de fogo, quando analisado a faixa etária entre 0 a 70 anos. O maior número de vitimização se dá, justamente, nas idades de 17, 18, 19 e 20 anos, tendo como pico os 19 anos de idade, com quase 63 mortes para 100 mil jovens, sendo 95% do sexo masculino.

Aterrorizadores, os números destacam a existência de um recorte racial claro. Enquanto as taxas de homicídios de brancos por armas de fogo caíram de 14,5 para 11,8 em 100 mil brancos no período analisado, as taxas de homicídios de negros aumentaram de 24,9 para 28,5.

O mesmo ocorre com o público feminino, em que as taxas de mulheres brancas vítimas caem 18,7% e as negras aumentam 14,1%. Também no caso das mulheres, a incidência de 95% dos casos recai sobre as jovens.

Em síntese, os números relatados no Mapa da Violência 2015 são claros no diagnóstico: a população jovem e negra é a maior vítima das mortes por armas de fogo, um cenário que não coincide com o que vemos, de forma sistemática, nos programas “policialescos” na grade de programação da TV aberta de todo o Brasil.

Basta assistirmos a cinco minutos de qualquer tipo de programa deste calibre – sem ser redundante – para termos a definição de cor, classe e faixa etária daqueles apontados como marginais e assassinos.

Não é difícil ouvir um discurso como o propagado por um programa em Fortaleza, capital do Ceará, ainda em 2011: “três bandidos armados, entre eles um pivete com um 38, mataram um policial rodoviário que ia ser pai dentro de poucos dias. O que fazer com esses bandidos? Hotel e três refeições por dia? Não precisa prender, é só cegar, principalmente o menor. Duvido que ele mate mais alguém”.

Ou mesmo o conhecido caso da repórter do Brasil Urgente, veiculado na TV Bandeirante da Bahia, em 2014, que, entre outras coisas, constrange um jovem negro, acusado de ter praticado estupro, que é condenado, ao vivo, sem direito a julgamento, e ainda por cima, em meio a uma série de humilhações.

São os programas policialescos responsáveis por reproduzir os jargões mais preconceituosos que acabam entrando no gosto popular, virando piadas e formas de abordagem que não só reproduzem o preconceito, mas, de forma proposital, distorcem a realidade de violência que jovens negros e negras vivenciam diariamente.

São também os programas policialescos a mercadoria cada vez mais interessante para as empresas de comunicações, dado o nível de audiência alimentado pela abordagem sensacionalista. Isso, por si só, já explica a proliferação deste tipo de programação em todas as regiões do Brasil, com formato e horários praticamente iguais. A fórmula está pronta, basta aplicar e lucrar com ela.

Diante desse cenário, não é difícil termos, como fruto de programas “policialescos” e da mediação que constroem com o público, a pauta da redução da maioridade penal como uma das principais discussões envolvendo a juventude brasileira, ao invés de estarmos discutindo como aplacar a nítida seletividade de promoção da violência no Brasil. Ou seja, na televisão e nas ruas, a arma já está apontada para os jovens negros brasileiros. E o gatilho é disparado todo dia.

* Ana Carolina Westrup é integrante do Intervozes, jornalista e mestranda em Comunicação Social pela UFS.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Para Conar, regular até mesmo a publicidade infantil é censura

Por Bia Barbosa*

O mundo todo celebrou esta semana, no dia 3 de maio, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. A data, como todos os anos, foi marcada pelo lançamento de relatórios que revelam os desafios do jornalismo nas sociedades contemporâneas. Entre eles, a violência que segue acometendo profissionais e comunicadores populares nas mais diferentes regiões do planeta. Para quem quiser conferir como anda a situação no Brasil, fica a sugestão de leitura da publicação lançada pela Artigo19, que relata 15 homicídios, 11 tentativas de assassinatos e 28 ameaças de morte no País motivadas pelo exercício da liberdade de expressão.

Todos os anos, também a Imprensa Editorial, responsável pelo Portal Imprensa, organiza na mesma data o Fórum Liberdade de Imprensa & Democracia. O evento tem sido marcado pela reunião de “eminentes nomes do jornalismo brasileiro” que, invariavelmente, compreendem que qualquer regulação dos meios de comunicação é prática de censura. Este ano, o apresentador do Jornal Nacional, Heraldo Pereira, soltou a pérola: “Ainda bem que temos o PMDB, que já disse que é contrário à Lei da Censura que o PT quer aprovar. Não adianta falar que é regulação, por que não é”.

A novidade de 2015, cuja edição foi patrocinada pelo Grupo Globo, com o apoio de diversas entidades empresariais, foi incluir, no hall dos temas a serem debatidos, a questão da publicidade. Sim, o Portal Imprensa embarcou na onda de que as propagandas comerciais também são manifestações de liberdade de expressão – e que, por isso, devem ser protegidas pelo mesmo princípio constitucional que impede que manifestações de pensamento sofram quaisquer restrições. Num painel intitulado “Limites na criação publicitária: liberdade de consumo X controle e regulamentação”, três profissionais da propaganda se revezaram para defender “o direito da população ser informada pela publicidade”, e para atacar principalmente iniciativas de proteção das crianças em relação à publicidade infantil.

Um dos alvos foi a Resolução n. 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), aprovada em março de 2014, que considera abusivas a publicidade e a comunicação mercadológica dirigidas às crianças de até 12 anos. Por ser um ato normativo primário previsto no Art. 59 da Constituição Federal, as Resoluções do Conanda possuem poder vinculante e devem ser seguidas e consideradas por todos os agentes sociais e estatais. Ou seja, desde o ano passado, a publicidade dirigida à criança é considerada ilegal segundo o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria Constituição. Mas continua sendo sistematicamente empregada tanto pelos anunciantes quanto pelas agências de publicidade, com a conivência dos veículos de comunicação, que lucram com tais anúncios.

Observando essas ilegalidades, o Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, enviou, em abril passado, cinco representações para os Ministérios Públicos de São Paulo e Paraná e para os Procons de São Paulo e do Espírito Santo. O objetivo não é acabar com a publicidade, mas garantir seu direcionamento para os adultos e não mais para as crianças.

Para Mônica Spada e Souza, diretora executiva da Maurício de Souza Produções, que esteve no evento do Portal Imprensa, restringir a publicidade infantil é “subjulgar a inteligência das crianças”, que, na sua avaliação, tem todas as condições para compreender a diferença entre realidade e fantasia e também tem “direito ao acesso à informação”. Mônica é defensora da tese de que são os pais que tem que definir o que seus filhos podem ver – mesmo que, em grande parte das vezes, as crianças estejam sozinhas diante da televisão.

Edney Narchi, vice-presidente executivo do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar), outro convidado do Fórum, concorda plenamente que “o Conanda quer restringir o direito de acesso à informação pela publicidade”. Para ele “espécies de pessoas e de ONGs são contra porque são contra a propaganda mercadológica”, assim como a “Anvisa é contra porque é contra a publicidade de medicamentos e de determinados alimentos”.

Ou seja, para o Conar, não há qualquer motivo para que a sociedade se preocupe com o bombardeio publicitário sofrido pelas crianças ou para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária se preocupe com os índices crescentes de automedicação da população brasileira.

Reportagem do próprio Jornal Nacional veiculada nesta terça-feira 5, sobre o Dia Nacional do Uso Racional de Medicamentos, mostrou que mais de 39 mil pessoas foram intoxicadas por remédios no ano passado e destacou os riscos do consumo sem receita de medicamentos. Mas, para o mercado publicitário, restringir este tipo de anúncio, com buscou fazer a Anvisa, é “ser contra por ser contra”.

“A comunicação é algo tão sensível que não deve ser motivo de lei”, cravou Edney Narchi, ignorando que, no mundo todo – sobretudo em democracias mais antigas que a nossa –, a banda não toca desse jeito. Para o Conar, nossa Constituição Federal é autoritária e a autorregulamentação é o que deve existir em termos de regras para o funcionamento do setor. O resto é censura!

O terceiro convidado do painel, Carlos André Eyer, diretor de criação da NBS, reforçou o mesmo ponto de vista desta discussão bastante plural, como deveria se esperar de um evento organizado por uma empresa jornalística e que leva a palavra “democracia” no título. “Estamos terceirizando a educação das pessoas ao vilanizar a publicidade e os produtores de conteúdo. Temos é que dar estrutura para as famílias educarem seus filhos em vez de acharmos que é preciso privar as crianças de algumas coisas”, disse Eyer. E encerrou com mais uma pérola do encontro: “Todos os departamentos de marketing das cervejarias estão tentando fazer propaganda com menos mulher gostosa no vídeo, mas não dá certo. O bebedor médio de cerveja gosta é disso. Então a culpa não é da propaganda, é do consumidor”.

Precisa dizer algo mais?

Para quem quiser conhecer melhor o debate sobre publicidade infantil, visite o site do projeto Criança & Consumo, do Instituto Alana.

* Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos e integra a Coordenação Executiva do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O governo enterrou de novo o debate da regulação da mídia?

Por Pedro Ekman*

No segundo turno da campanha eleitoral do ano passado, Dilma Rousseff sinalizou que, finalmente, levaria ao debate público o tema da regulação da comunicação. Afirmou, inclusive, que faria a “regulação econômica da mídia”. Logo no início do novo governo, o novo ministro da pasta, Ricardo Berzoini, reiterou a proposta e chamou a sociedade civil para dialogar. Então, disse que as ações em torno do tema começariam em março. Mas parece que o que era um compromisso político mais uma vez foi abandonado.

Nesta quarta (29/04), o ministro participou de audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados. Por mais de duas horas, discursou sobre a agenda do Ministério das Comunicações. Ao ser questionado sobre a necessidade de um novo marco regulatório, o ministro respondeu apenas que a liberdade de expressão deve ser exercida em equilíbrio com os demais direitos consagrados na Constituição Federal. Ele não tocou no tema da abertura do debate com a sociedade, ausência que confirma o que a própria presidenta Dilma havia sinalizado no início deste mês. Então, em entrevista coletiva a blogueiros, ela afirmou que “não há a menor condição de abrirmos essa discussão neste momento, por conta de toda a situação”. A frase, registrada pela jornalista Cynara Menezes, foi seguida pela seguinte pérola: “Me disseram que vocês estão para apresentar um projeto de lei de iniciativa popular, que estão colhendo assinaturas. Não sei como ele é, nunca vi mais gordo, mas acho que pode ser interessante”.

Pelo visto, mais uma vez, o governo abriu mão de travar o debate e promover políticas em uma área fundamental para qualquer sociedade democrática.

Ao mesmo tempo em que continuaremos cobrando os compromissos firmados anteriormente pelo governo, seguiremos a pautar a necessidade de regulação da mídia. Isso porque os meios de comunicação ocupam no sistema democrático, hoje, o lugar importante do debate sobre temas de interesse público. Em uma sociedade como a em que se vive em 2015, tomar decisões em praça pública com centenas de milhões de pessoas ao mesmo tempo não é algo factível. A Internet talvez um dia permita isso, mas, com o nível de exclusão digital que temos, este cenário continua distante. O papel de mediação ainda é desempenhado pelos meios tradicionais, como a televisão.

Aliás, foi para enfrentar o problema da impossibilidade de reunir todos fisicamente em um espaço público comum que inventamos dois instrumentos: o sistema de representação política e a comunicação social eletrônica, ambos descritos e definidos na Constituição Federal. O Congresso Nacional passa a ser o lugar central dos debates, do qual participam com direito a voto os representantes eleitos da sociedade. Já por meio do rádio e da TV, a sociedade obtém o conhecimento de informações para tomar suas decisões, como eleger representantes ou sair às ruas para protestar contra o que percebe estar errado.

Vale notar que tanto o Congresso como os canais de rádio e TV são espaços públicos. A Constituição Federal fez questão de defini-los assim, pois eles são estruturantes do sistema democrático representativo. O problema é que a política brasileira privatizou o espaço público ao longo de sua história, favorecendo os interesses privados em detrimento dos interesses públicos e republicanos. Os representantes do nosso Parlamento são eleitos com campanhas milionárias, financiadas por corporações que passam a ter seus interesses verdadeiramente representados no Congresso. As cédulas de dólares e reais substituem as de votação em importância, corrompendo a estrutura do sistema. Da mesma forma, os canais de rádio e TV são entregues a poucas empresas privadas, que definem o debate político e cultural do país.

Para termos ideia do impacto da concentração de mercado no debate público, podemos analisar a discussão que ocorre neste momento sobre a possibilidade da redução da maioridade penal. Como será a reação de uma sociedade que é bombardeada diariamente por programas policialescos e telejornais que veiculam crimes cruéis supostamente cometidos apenas por adolescentes? Com adolescentes condenados na praça pública da TV, sem sequer ter o direito constitucional da presunção da inocência, a sociedade se vê impelida a apoiar a redução da maioridade penal, já que esse é o caminho mostrado como razoável diante dos fatos que foram selecionados para serem levados ao debate.

Não à toa, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados que discute a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93, que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, aprovou esta semana a convocação dos jornalistas Marcelo Rezende (TV Record), José Luiz Datena (Bandeirantes), Rachel Sheherazade (SBT) e Caco Barcellos (Globo) para uma audiência pública sobre o tema. Os três primeiros são recorrentes defensores da mudança e usam a televisão para divulgar suas ideias com veemência. Isso sem que o Ministério das Comunicações, por exemplo, os puna por, entre outros casos, incitar à violência, como feito por Sheherazade ao comentar ação de “justiceiros”, no ano passado. A falta de vontade política do governo, aliás, se dá não apenas quando ele se nega a travar o debate estrutural da comunicação, mas também quando se nega a fazer o que deveria e já pode ser feito com as leis existentes no país.

Diante desse cenário, a democracia existe no papel, mas não se realiza na prática. O artigo 220 da Constituição define que não pode haver monopólio ou oligopólio na comunicação social eletrônica. A Globo, no entanto, controla 70% do mercado, faturando sozinha mais do que todas as demais empresas de comunicação. Isso acontece porque o Congresso Nacional nunca elaborou leis definindo mecanismos que impedissem a formação de monopólio. Por que o Congresso tem sido omisso nas suas obrigações? O artigo 54 da mesma Carta Magna determina que deputados e senadores não podem ser donos de concessionárias de serviço público (o que inclui canais de rádio e TV). No entanto, a família Sarney, os senadores Fernando Collor, Aécio Neves, Agripino Maia e Edson Lobão Filho são apenas exemplos das dezenas parlamentares que controlam inúmeras emissoras em seus estados.

Criar leis que tornem viáveis os objetivos constitucionais é justamente o que se chama de regulamentar a Constituição, um passo fundamental para a regulação do sistema de comunicações do país, para que o jogo democrático possa ser justo e equilibrado. No entanto, congressistas e grandes emissoras de TV definem a regulação da mídia como cerceamento da liberdade de expressão e como um ataque de um suposto governo autoritário, que quer impedir críticas à sua gestão. Isso acontece porque as corporações de mídia, ao reconhecerem a possibilidade de um cenário em que terão que dividir o bolo que sempre comeram sozinhas, atacam a proposta e provocam medo na sociedade, para que ela também reaja contra a medida.

“Podemos tirar, se achar melhor”

Muitas vezes, o mais importante não é o que se comunica, mas aquilo que se deixa de comunicar. Recentemente, as redes sociais foram surpreendidas por uma notícia que foi ao ar com uma nota do jornalista ao editor que dizia: “Podemos tirar, se achar melhor”. A frase estava inserida após um trecho da reportagem que ligava o esquema de corrupção da Petrobras ao governo FHC. O diálogo entre um jornalista e um editor é algo absolutamente trivial mas, ao expor a preferência de se levar ao debate público algumas informações e não outras, ele provocou a reflexão sobre quantas notas não foram tornadas públicas e quantas informações foram simplesmente retiradas do debate. O fato de que a mídia tem lado, posicionamento e opinião contraria o discurso corrente de que os meios são técnicos e sempre optam pela melhor forma de informar. Tendo isso claro, fica fácil perceber que um cenário de mercado altamente concentrado, onde apenas poucos empresários decidem o que toda a sociedade vai debater, é algo mortal para uma sociedade que se pretende democrática.

Regular a mídia não é censura e nem coisa de comunista. Países não comunistas como a Inglaterra, a França, a Alemanha e até os Estados Unidos regulam as comunicações de maneira mais determinada que o Brasil. Enquanto os donos do The New York Times não podem ser os mesmos donos de uma emissora de TV, em Nova York, porque a regulação americana coloca limites à propriedade cruzada dos meios de comunicação, aqui os donos da Globo podem ter canais de TV, rádio, jornais, editoras, gravadoras e outros tantos veículos, sem qualquer limite. Se, no Brasil, as emissoras de TV questionam na Justiça a Classificação Indicativa (mecanismo de regulação de conteúdo para proteger as crianças de cenas impróprias), na Suécia a publicidade infantil é absolutamente proibida. Estados Unidos e Suécia estão longe do projeto comunista e nem por isso definem regulação como censura.

Entendendo que a solução para esse problema não virá espontaneamente do Congresso Nacional e cansada de esperar por um governo que decida enfrentar a questão de fato, a sociedade civil brasileira elaborou e colhe assinaturas para o Projeto de Lei da Mídia Democrática (aquele que a Presidenta disse desconhecer). Vários meios alternativos e outras iniciativas de comunicação, além de ações diversas das organizações sociais, buscam fomentar esse debate. Se, com todo o esforço da sociedade em pautar o assunto, ele não aparece na TV e no rádio, é porque certamente alguém achou melhor tirar. E isso sim é praticar censura.

* Pedro Ekman é membro da Coordenação Executiva do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.