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Em busca de agendas perdidas e direitos nunca conquistados

Com uma variedade de atores atuando em diferentes frentes e um cenário político contraditório (e, especialmente no campo da comunicação, beirando a esquizofrenia), a luta pela democratização da comunicação no Brasil enfrenta desafios hercúleos. Embora possa haver a impressão – à primeira vista e comparando com países em situações similares – de que há aqui um campo propício para a batalha pelo direito à comunicação, o fato é que o país ainda parece longe de ter um movimento de comunicação organizado como tal.

É certo que nunca se discutiu tanto comunicação como se discute hoje no país. O cenário, no entanto, não pode ser considerado favorável para aqueles que lutam pelo direito à comunicação. Ele pode ser resumido nas seguintes características:

1) Ausência de regulação e políticas de comunicação: o cenário legal e institucional da defesa do direito à comunicação no Brasil é de terra arrasada. Não há legislação atualizada sobre a radiodifusão (a atual data de 1962), não há limites à propriedade cruzada, não há sistema público de comunicação, as rádios comunitárias são reprimidas diariamente (fecham-se mais rádios do que se autoriza) e o setor privado dita as suas próprias regras. Além disso, não há nenhum tipo de política de incentivo à pluralidade e à diversidade de mídias. Nessas condições, sem a regulação do século XX, o país ainda se vê na necessidade de estabelecer a regulação do século XXI, num cenário de convergência tecnológica e empresarial.

2) Esquizofrenia governamental: desde a entrada de Lula na presidência da República, mas especialmente depois da entrada de Hélio Costa no Ministério das Comunicações, vive-se uma realidade esquizofrênica nas políticas de comunicação. Enquanto o ministério de Costa trabalha com políticas conservadoras em sintonia com o interesse dos radiodifusores, outros órgãos do governo, como o Ministério da Cultura, de Gilberto Gil, e a Radiobrás, presidida até o início de 2007 por Eugênio Bucci, busca a implementação de políticas democráticas. Ainda assim, até o final do mandato, as “bolas divididas” sobraram para o lado do Ministério das Comunicações e dos radiodifusores.

3) Ofensiva da mídia conservadora: do ponto de vista do conteúdo, a grande mídia, que se posicionou contra o Governo Lula nas eleições, continua operando para determinar a sua pauta política, confirmando seu papel como o grande partido político organizador da agenda da direita. A agenda recente inclui, entre outros pontos: o apoio a flexibilização dos direitos trabalhistas, a defesa do corte de gastos públicos e das reformas da previdência, além do embate constante com os movimentos do campo (agravado pela recente ofensiva contra os quilombolas). No último período, acentuou-se a ação reacionária nos temas da comunicação, numa campanha contra as rádios comunitárias e contra a não renovação da concessão da RCTV venezuelana.

4) Isolamento da pauta: os movimentos de comunicação não têm conseguido fazer de sua agenda democrática uma luta de todos os movimentos sociais. Como veremos mais à frente, isso é fruto de uma combinação de características, entre elas a dispersão dos próprios movimentos da comunicação e a ausência de direitos consolidados que permita a defesa de uma pauta unitária.

Assim, o momento atual da luta pela democratização das comunicações no Brasil é hoje marcado por três desafios principais: 1) busca de convergências entre movimentos com características e prioridades diferentes, em vez de privilegiar as divergências; 2) a necessidade, em um momento de ofensiva conservadora da grande mídia, de viabilizar a implantação da agenda do século XXI ao mesmo tempo em que luta pela agenda não realizada do século XX; e, ligado a esse segundo ponto, 3) a imposição de se trabalhar por uma agenda positiva em um cenário de terra arrasada, em que não há direitos a serem defendidos, com o agravante de que os movimentos sociais vivem um momento de descenso.

Esses desafios não necessariamente constituem a agenda política dos movimentos, mas são os principais nós críticos a serem desatados. Para examiná-los, este texto irá se focar menos no detalhamento da conjuntura política, e mais na diversidade de atores que lutam pela democratização da comunicação (ou pelo direito à comunicação) no Brasil, buscando compreender suas propostas, lutas, pontos de convergência, logros e retrocessos e as articulações. Para isso, é fundamental fazer um repasse rápido da história desses movimentos no Brasil.

Um breve histórico
A origem da luta pela democratização da comunicação no Brasil está ligada ao momento político em que o mundo discutia, na década de 1970, as propostas discutidas no âmbito da UNESCO – propostas, que, alguns anos depois, apareceriam no Relatório McBride. Até ali, a pauta do combate à censura e a defesa da liberdade de expressão ocupavam um espaço central na luta dos diversos movimentos anti-diatatoriais, mas não existia uma ação organizada pela democratização da comunicação.

Naquele momento, entidades como a União Cristã Brasileira de Comunicação Social (UCBC) e um setor da academia brasileira impulsionaram no país a discussão sobre a necessidade de políticas democráticas de comunicação. O país vivia uma ditadura militar e os impérios privados, especialmente a Rede Globo, cresciam em aliança com os governos ditatoriais. Ali, as propostas não encontrariam nenhuma reverberação no governo, mas pautariam o tema nos setores progressistas, indicando que a democratização da sociedade e a democratização da comunicação eram (como seguem sendo) mutuamente dependentes. Surgem nessa época dezenas de iniciativas de comunicação alternativa, especialmente jornais, que chegam a atingir grandes tiragens.

Na década de 80, o movimentos de rádios livres e comunitárias e a perspectiva de uma nova Constituição (aprovada finalmente em 1988) impulsionam o movimento e fazem ele se organizar, tanto local como nacionalmente. Em 1984, durante a transição do regime ditatorial para o regime democrático, foi formada a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação, que reunia a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec) e várias universidades. A criação da Frente marcava a migração de um movimento que antes trabalhava pela mobilização popular e criação de uma rede de comunicação alternativa para um movimento que passava a atacar pelas vias institucionais centrais, tentando atingir os grandes meios.

Esse movimento, com altos e baixos, seguiria organizado até a Constituição de 1988. Naquele ano, travou-se uma verdadeira batalha na definição do capítulo sobre Comunicação, em que o movimento teve alguns avanços, mas amargou derrotas significativas, como a não aprovação de um Conselho Nacional de Comunicação com caráter deliberativo e os limites impostos para a não-renovação de concessões ou para o cancelamento de outorgas de rádio e TV.

Em 1991, fruto da articulação da Frente, surge o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que abarcou entidades acadêmicas, profissionais, estudantis e representações de outros segmentos, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tendo, durante todo esse período, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) capitaneado a organização da sociedade civil.

Na década de 90, o Fórum se marcaria como o principal ator na luta institucional pela democratização das comunicações no Brasil. A despeito do fortalecimento do neoliberalismo no país, nesse momento a luta institucional lograria alguns êxitos importantes, como a lei da TV a cabo, em 1995, que garantiu espaço para canais de acesso público – comunitários e universitários – e propôs a infra-estrutura baseada em uma rede pública e única.

Logo após essa pequena esperança, o movimento se desarticulou. No Brasil, as políticas neoliberais tiveram na segunda metade da década de 1990 o seu auge, e a privatização das telecomunicações deu mais munição e contingente para o lado do empresariado (com o tempo, as contradições do sistema de produção capitalista levariam ao embate entre empresas de telecomunicações e radiodifusores, que permanece hoje, ainda que eles cultivem interesses comuns). O FNDC passou alguns anos desestruturado, e a agenda “século XX” começou a se mostrar insuficiente para enfrentar as novas questões.

O final dos anos 90 e começo dos 2000 viu a retomada do movimento a partir da reorganização do FNDC e do surgimento de iniciativas sob diferentes perspectivas, como a Campanha pela Ética na TV – que passou a trabalhar a denúncia dos telespectadores sobre a violação de direitos humanos na mídia –, diversas entidades políticas e acadêmicas que retomaram a bandeira do direito à comunicação[1], ampliando a pauta da democratização da comunicação, e iniciativas de produção independente e autônoma, em especial o Centro de Mídia Independente (Indymedia).

Ao final de 2002, a chegada de Lula à presidência criou uma situação de difícil manejo para os movimentos. Ao mesmo tempo em que a eleição alimentou uma enorme esperança (as propostas do programa de governo e do programa de transição foram desenvolvidas em boa parte por pessoas com ligação com os movimentos), o início do governo criou uma situação de impasse, na qual os movimentos de comunicação tiveram dificuldades para encontrar o seu papel na nova conjuntura.

O quadro atual
A esquizofrenia do governo Lula na área da comunicação acabou levando a uma reorganização do movimento e de iniciativas conjuntas, mas encontrou uma resistência conservadora igualmente fortalecida. Frente a esse quadro, é relevante localizar as diferentes iniciativas e relacioná-las com os desafios e nós críticos listados no início a fim de compreender a atual agenda dos movimentos do campo da comunicação.

O papel histórico do FNDC faz dele uma referência fundamental, embora nos últimos anos a articulação não tenha demonstrado a mesma capacidade de mobilização de anos anteriores. Formado em grande parte por entidades sindicais e representativas, o Fórum depende da mobilização desses setores para dar impulso a suas lutas, e tem enfrentado o mesmo problema de desmobilização que afeta movimentos da mesma natureza. Além disso, com a ampliação da pauta, o FNDC passou a não abarcar toda a diversidade do campo que se mobiliza pela democratização da comunicação. Nos últimos anos, a pauta central da articulação foi o processo de digitalização, e ao final de 2006 apontou-se a realização de uma Conferência Nacional de Comunicação[2] como o principal objetivo a ser trabalhado em 2007.

Desde o início da década, tem ganhado força movimentos não representativos, que organizam militantes na luta pelo direito à comunicação. Nesse campo, tem destaque o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que reúne ativistas de 14 dos 27 estados brasileiros e grupos de atuação mais local, como o Comunicativistas, no Rio de Janeiro, e o Fopecom, em Pernambuco. Esses grupos têm se caracterizado pela retomada do direito à comunicação como mote, com a concepção de que a comunicação não deve ser um espaço apenas de especialistas. Nesse sentido, sua luta busca viabilizar a apropriação social da comunicação. Mesmo sem “base de representação”, eles têm se firmado como atores fundamentais no campo, combinando capacidade de formulação e de mobilização.

Também têm se fortalecido processos de acompanhamento da programação e controle público da mídia, especialmente com a denúncia de violações sistemáticas de direitos humanos na mídia. A principal iniciativa nesse sentido é a Campanha pela Ética na TV, que reúne a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e entidades da sociedade civil, como o Conselho Federal de Psicologia. A Campanha, conhecida como “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” elabora um ranking mensal com as denúncias recebidas, e tenta atuar diretamente com os anunciantes dos programas, visando convencê-los a não apoiar programas de baixaria ou que violem direitos humanos. Embora tenha perdido um pouco de sua força com a não eleição de Orlando Fantazzini (deputado criador da campanha e membro da Comissão de Direitos Humanos), a campanha permanece tendo importância central.

Já o movimento de rádios comunitárias sofre de uma enorme dispersão, com várias entidades representando diferentes perspectivas e com dificuldades para trabalhar em conjunto. A principal delas é a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço). Sua principal pauta segue sendo o combate à repressão, já que, durante o Governo Lula, o fechamento de rádios comunitárias aumentou, ao invés de arrefecer, como seria esperado. Da mesma forma, buscam-se condições de sustentação e sobrevivência, uma vez que a lei brasileira é extremamente restritiva: proíbe publicidade comercial e cria uma luta fratricida entre as rádios ao estabelecer o limite de uma rádio comunitária por localidade. Para este setor, o desafio se situa na dificuldade em estabelecer uma agenda estratégica de luta em meio a ataques da Polícia Federal e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e dos diferentes interesses que convivem entre as rádios.

Além dessas iniciativas, várias outras se juntaram ao campo que luta pela democratização das comunicações por conta do processo de convergência tecnológica, num processo que cria novas questões e demandas. Nesse campo situam-se entidades da área de inclusão digital, como a Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), da cultura, como o Congresso Brasileiro de Cinema e a Associação Brasileira de Produtores Independentes e de propriedade intelectual, como o Centro de Tecnologia Social da Fundação Getúlio Vargas, que representa o Creative Commons no Brasil. Além disso, multiplicam-se coletivos de iniciativas autônomas, como o Centro de Mídia Independente, que foca na produção colaborativa e compartilhada e vários outros pequenos grupos com a mesma filosofia, ainda que com temáticas distintas.

Os desafios da atuação convergente
Nos últimos anos, o processo de implementação da TV digital no Brasil possibilitou a retomada de iniciativas convergentes entre as diversas iniciativas. No momento em que a pauta passou a ocupar lugar central na agenda do governo, foi criada a Frente por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, reunindo mais de uma centena de entidades, entre elas praticamente todas as com atuação na área da comunicação. A Frente conseguiu pautar o debate na sociedade, fazendo com que o debate não ficasse restrito a questões tecnológicas. Ainda assim, um ponto forte da Frente foi justamente a participação de entidades com perfil técnico, com participação de sindicatos da área, como a Federação Interestadual de Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel), que possibilitou que se travasse uma batalha técnica de igual para igual com os radiodifusores. Depois da publicação do decreto que definiu pelo padrão japonês, a Frente perdeu fôlego, por conta da ausência de um horizonte estratégico de curto prazo.

Ainda assim, independentemente do tema da digitalização ter perdido força, nos últimos meses tem havido vários esforços para que as entidades não se dispersem e trabalhem em conjunto. Neste ano de 2007, ganhou força a pauta do sistema público de radiodifusão e da Conferência Nacional de Comunicações, reivindicações históricas do movimento. Nos dois casos, as diversas entidades têm conseguido trabalhar em conjunto, definindo pautas e estratégias comuns de atuação. Está claro, entretanto, que essas iniciativas ganharam fôlego porque setores do Executivo (no caso do sistema público) ou do Legislativo (no caso da Conferência) compraram a briga e impulsionaram iniciativas estatais nesse sentido. Sem parceiros com visões parecidas no governo ainda é muito difícil para o movimento de comunicação estabelecer sua agenda positiva.

Já o envolvimento dos movimentos de massa com a pauta da comunicação continua tímido. Embora os principais movimentos (em especial o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) dediquem vários esforços à construção de meios próprios de comunicação, eles ainda não dão peso à luta por políticas democráticas. Esse fato se deve especialmente a duas questões, de naturezas distintas:

1) A primeira é que o próprio movimento de comunicação não tem tão clara uma pauta comum, o que dificulta a apropriação dessa agenda pelos movimentos que não têm na comunicação sua principal ação. Isso não exime os movimentos sociais de responsabilidade, mas cria um quadro mais difícil para que essa apropriação da pauta se efetiva.

2) A segunda e maior dificuldade para que essa pauta seja apropriada pelos movimentos parece estar no conjunto de algumas características do campo da comunicação e no momento político que vivemos. A Via Campesina avalia que tem havido na história brasileira ciclos de ascensos e descensos no movimento de massas, que em geral antecipam os ciclos de ascensos e descensos da esquerda. Para eles, desde o final da década de 80, estamos numa etapa de descenso dos movimentos, momento em que os movimentos ou lutam contra a redução de direitos (em relação às reformas trabalhista e previdenciária, por exemplo) ou se baseiam em leis atuais satisfatórias para exigir sua aplicação (reforma agrária e questão indígena, por exemplo). O grande desafio na comunicação é que o cenário é de terra arrasada, e simplesmente não há direito sendo atacado porque não há nenhum direito garantido. Nesse cenário, a pauta é a briga pela positivação do direito e por políticas públicas que viabilizem a sua fruição, enfrentando os gargalos econômicos, políticos, sociais e culturais que impedem sua realização. Entretanto, no momento em que os movimentos estão tendo que se agarrar no que já têm garantido, trabalhar ‘pela positiva’ se torna muito difícil. Uma das poucas lutas ‘de resistência’ possível hoje é a das rádios comunitárias, que têm sido fechadas em ritmo acelerado, e que sobrevivem a despeito da lei limitante.

Esses dois fatores – em especial o segundo – explicam a dificuldade de a pauta do direito à comunicação ganhar a sociedade. Isso não significa que ela não continue sendo central. Apenas indica que, enquanto durar esse período de descenso no Brasil, é provável que não haja engajamento efetivo dos movimentos sociais na luta por políticas democráticas. De qualquer forma, a perspectiva deve ser de manter essa luta e manter o diálogo permanente com os movimentos no sentido de intercambiar pautas e construir ações conjuntas, buscando impulsionar também as lutas sociais gerais.

Para o próximo período, define-se para o movimento de comunicação brasileiro uma agenda que inclui pontos como a necessidade uma nova regulação para as comunicações – que dê conta da agenda perdida do século XX e da nova agenda da convergência do século XXI –, a defesa e o incentivo aos veículos comunitários, a implantação de um sistema público de TV e rádio, a digitalização (especialmente a questão do rádio, ainda em aberto), a democratização do processo de concessão e renovação de outorgas, a constituição de espaços de participação popular na definição das políticas públicas (como uma Conferência Nacional de Comunicações), e a classificação indicativa da programação, além de temas como inclusão digital e flexibilização da propriedade intelectual. Motivos de sobra para o movimento dar conta de suas diferenças e trabalhar de maneira convergente sobre o nós críticos que se apresentam.

 

 

* João Brant é coordenador do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

 

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Classificação Indicativa: TV Globo enquadra o governo Lula

As poderosas emissoras de TV do Brasil, que manipulam as informações e deformam o comportamento, acabam de obter mais uma vitória diante do governo Lula. Após um intenso bombardeio, que contou com vários artistas globais – tendo a frente o “anarquista-tucano” Jô Soares –, com milionários anúncios e com uma cobertura parcial e agressiva da própria mídia hegemônica, o Ministério da Justiça anunciou na semana passada alterações na portaria que normatiza a classificação indicativa para os programas de TV. O projeto inicial, editado pelo ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, previa mecanismos de classificação da programação das emissoras – e não de censura, como elas alardearam de maneira terrorista e maldosa.

No final da contenda, o governo Lula é que acabou novamente sendo enquadrado pelos “donos da mídia”. Na portaria anterior (264), a exemplo do que ocorre na maioria dos países, caberia ao ministério a análise prévia para a classificação indicativa de um determinado programa. Já na nova (1.220), esse papel caberá exclusivamente às redes privadas, que deverão realizar uma pretensa “autoclassificação” e terão o prazo de 60 dias – no qual o programa já poderá ser exibido com todas as suas deformações – para que a Justiça “monitore” o seu conteúdo. Na prática, as TVs privadas, que usam gratuitamente uma concessão pública, é que definirão arbitrariamente a programação – com todos os seus valores mercantis apodrecidos.

Recuo não sacia o apetite

Apesar desta “estrondosa vitória”, conforme noticiado pela imprensa, as emissoras de televisão ainda não estão satisfeitas com este inexplicável recuo do governo Lula e querem mais. O jornal O Globo publicou quatro artigos, em duas páginas, para criticar a nova portaria: “Classificação: governo continua com poder de veto”, “Nova classificação não convence os artistas”, “Pela Constituição não pode haver censura” e “Portaria exclui noticiário jornalístico”. Numa manipulação grosseira, a famiglia Marinho insiste na tese de que a última palavra na classificação ainda caberá ao governo, o que é uma escancarada mentira. A TV Globo, na sua arrogância imperial, não aceita nem sequer a fiscalização do Poder Judiciário.

Pela portaria, as emissoras ficarão livres de qualquer sanção, caso não respeitem uma eventual revisão da classificação, e qualquer reavaliação só poderá ser feita pelo Ministério Público e pela Justiça. O governo, responsável pela concessão pública, foi totalmente alijado. Nem sequer a portaria anterior, mais afinada com o Estado de Direito, impunha alguma forma de censura. De maneira explícita, ela determinava que a classificação seria apenas indicativa, e não impositiva, e que as TVs que a desrespeitassem só poderiam ser punidas pela Justiça. Mesmo assim, as poderosas emissoras, com o apoio mesquinho e individualista de alguns artistas, carimbaram no governo a pecha de autoritário, responsável pelo “retorno da censura”.

O jogo pesado das emissoras

A batalha da classificação indicativa foi dura e o povo nem teve chance de conhecer a sua real dimensão, já que ficou exposto à execrável manipulação da mídia. Até Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, reconheceu “o jogo pesado adotado pelas empresas de TV, capitaneadas pela Globo. Anúncios de página inteira nos principais jornais reproduzindo o manifestado assinado por astros e estrelas das telinhas contra a classificação que existe em todos os países mostra que as concessionárias de radiodifusão estão somente interessadas em servir aos seus próprios interesses, e não ao interesse público. Esta orquestração serviu para escancarar a imperiosa necessidade do debate sobre a concentração da mídia no país. Se adotássemos aqui as normas vigentes nos EUA, a cruzada contra a classificação teria sido menos autoritária”.   

Já o professor Laurindo Lalo Leal Filho, um incansável lutador pela democratização da mídia, avalia que a pressão das empresas para barrar a classificação indicativa na TV aberta é uma demonstração do poder da mídia no país. “As emissoras de televisão no Brasil, concessionárias de um serviço público (é sempre bom lembrar), não admitem qualquer tipo de regras ao seu funcionamento. Trabalham no vácuo legal e pretendem continuar assim”. Para ele, a nova portaria permitirá que, mesmo a programação classificada como imprópria para crianças e adolescentes, possa ir ao ar no horário livre – antes das 20 horas. “É inadmissível que algo tão delicado, como é a exposição de crianças e jovens a cenas incompatíveis com os respectivos desenvolvimentos físico e mental, fique a critério exclusivo dos empresários da mídia”.

Abert emplaca 18 exigências

O próprio secretário nacional de Justiça, Antônio Carlos Biscaia, confessou que foram atendidas 18 das 24 reivindicações da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que congrega a máfia da mídia. Entre outras imposições, a Abert rechaçou a expressão “terminantemente vedada”, que constava da portaria anterior ao se referir à programação por faixa etária e horário. Segundo a colunista Mônica Bergamo, “pressionado pelas TVs, o governo Lula decidiu ‘limpar’ partes do texto da lei da classificação indicativa… Assessores do ministro Tarso Genro se esforçaram para que ele mantivesse no texto ao menos a indicação de horários para os programas apropriados às crianças”, o que não vingou.

O jogo de pressão da mídia foi violento. A mesma Mônica Bergamo, sempre bem informada, revelou que “diretores da TV Globo se empenharam pessoalmente na coleta de assinaturas de artistas para o manifesto publicado nos jornais contra o que definiram como ‘classificação impositiva’… O artista plástico Siron Franco foi procurado pela equipe de Luis Erlanger (porta-voz da Globo). Erlanger diz que participou do ‘mutirão’ de coleta, que envolveu cineastas e atores de teatro. A atriz Fernanda Torres diz que não foi procurada, mas que provavelmente ‘não assinaria’ o manifesto. Diz não ser a favor do ‘vale-tudo’ na TV, mas afirma que leu pareceres que diziam que a proposta abria brechas para o governo ‘punir as TVs’”.

Manipulação vergonhosa

Neste processo vergonhoso de manipulação, que cooptou vários artistas, as emissoras ouviram somente o lado contrário à portaria 264, que determinava a análise prévia do conteúdo dos programas. Elas inclusive apresentaram a medida como autoritária, elaborada de forma arbitrária pelo governo. Não informaram aos telespectadores que o Ministério da Justiça promoveu audiências públicas nas principais capitais, que uma consulta pública recebeu mais de 11 mil sugestões, que ocorreu um seminário internacional em Brasília, que um livro foi publicado e que a Agência Nacional dos Direitos da Infância foi contratada para realizar um estudo comparativo sobre a legislação de vários países, incluindo os EUA e a Europa.

“A cobertura da grande imprensa escondeu o fato de que a portaria do Ministério da Justiça foi precedida por muitos estudos e amplo debate. Infelizmente, quem se recusou a participar do debate foi a Abert. Sem contar com um noticiário isento, a população foi levada a acreditar que o Brasil estava próximo de adotar uma política totalitária, desconhecendo que quase toda a União Européia já usa critérios de classificação etária. A cobertura da imprensa também não informou que a classificação não incide sobre a TV paga, os tele-jornais e documentários, sobre a propaganda e os programas ao vivo e esportivos. E, tampouco, ela mencionou que há anos convivemos com a classificação etária nas salas de cinema, sem que nenhum produtor, diretor ou ator tenha reclamado”, denuncia Gustavo Gindre, integrante do Coletivo Intervozes.

Num atentado à democracia e ao próprio jornalismo, as TVs só entrevistaram artistas e diretores famosos, a maior parte da Rede Globo, que compararam a classificação à censura. “Segundo essa posição, o Estado não tem o direito de cobrar que um concessionário de serviço público tenha preocupação com a formação de nossa infância e adolescência. Por essa versão, alterar a exibição de um programa de televisão, baseado na quantidade das cenas de sexo e violência, seria censura”, contesta Gindre. Ele também critica alguns “artistas famosos”, que assinaram o manifesto contra a censura, mas nunca lutaram contra “a censura que já existe nos meios de comunicação privados (tanto no jornalismo quanto na dramaturgia). Onde estavam quando a TV Globo escondeu das telas os comícios das Diretas-Já ou quando, mais recentemente, a Vênus Prateada determinou que o casal de lésbicas da nova ‘Torre de Babel’ morresse numa explosão?”.

* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

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Auto-regulamentação: o Conar não funciona para o álcool

A Auto-regulamentação da propaganda, no Brasil exercida pelo Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), é a estratégia defendida pelas indústrias de bebidas alcoólicas como efetiva para regulamentar a promoção de seus produtos. As vantagens presumidas seriam: eficiência, maiores incentivos para obediência e custo reduzido. Esses argumentos têm sido defendidos em vários artigos recentes na mídia. É possível que a auto-regulamentação seja ‘mais eficiente do que a atuação do Estado’ em algumas áreas, mas, certamente, essa lógica não se aplica à área das bebidas alcoólicas.

Existem evidências científicas de que a exposição de crianças à promoção de bebidas alcoólicas aumenta a probabilidade de que elas iniciem um consumo precoce e bebam mais. Isso acontece em adição a outras variáveis, como baixo preço dos produtos e facilidade do acesso, mas é independente delas. Ou seja, a promoção não é o único fator que causa impacto no consumo de álcool, mas certamente é um deles. Embora inúmeras pesquisas tenham demonstrado de forma inequívoca esse fato, tal verdade não é aceita pela indústria do álcool.

Mas esse não é o único fator importante. A propaganda do álcool, principalmente a que é apreciada pelas crianças, em especial a que contém humor, se relaciona com suas atitudes e expectativas positivas quanto às bebidas alcoólicas. Isso significa que a propaganda é um fator de estruturação de atitudes das crianças em relação às bebidas alcoólicas -atitudes e crenças que não são mudadas do dia para a noite. Esse processo se dá com um acúmulo de mensagens atraentes e exclusivamente positivas e bem-humoradas em relação às bebidas alcoólicas.

Pesquisa nacional financiada pela Senad (Secretaria Nacional Antidrogas) mostra que cerca de 60% dos adolescentes brasileiros estão expostos a algum tipo de promoção de álcool (televisão, rádio, revista ou outdoor) diariamente.

Portanto, do ponto de vista da saúde pública, é fundamental que possamos exercer influência não somente no tipo de propaganda a que nossas crianças são expostas mas também -e principalmente- na quantidade de exposição. Pelo simples motivo de que, quanto maior é a exposição, maior é o consumo do álcool. É o que as pesquisas mostram.

Mas voltemos à auto-regulamentação. Os códigos relacionam-se principalmente com questões de conteúdo das mensagens, basicamente restringindo mensagens direcionadas aos menores de idade e que incentivem o consumo abusivo. Vários estudos científicos internacionais apontam que a interpretação desses códigos varia muito, dependendo do público que os avalia. Dessa maneira, e não surpreendentemente, avaliações realizadas por membros das indústrias de interesse econômico (publicitários, indústria de álcool, mídia etc.) encontram muito menos violações do que as realizadas por representantes do público geral. Pesquisa com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) recém-concluída pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) com estudantes do ensino médio de escolas públicas apontou grande número de violações em cinco propagandas de cerveja selecionadas como as mais apreciadas pelos estudantes.

Uma das recomendações do Conar com respeito à propaganda de álcool é que ela ‘evite associação com erotismo’. O leitor que já tenha assistido a algum comercial de cerveja talvez nos acompanhe na dúvida quanto ao cumprimento desse item. De qualquer maneira, a principal intenção da auto-regulamentação no caso das bebidas alcoólicas é evitar ingerência externa -leia-se restrição à quantidade de propaganda. E é a exposição, no final, o que realmente importa em termos do impacto no consumo dos adolescentes e jovens.

O ministro da Saúde, grande defensor da saúde pública, já expressou a sua preferência pela restrição da propaganda do álcool, à semelhança do que foi feito com o cigarro. Do presidente Lula espera-se que tenha a coragem e a determinação para optar pela restrição desse tipo de propaganda que estimula que menores de idade bebam. Afinal, não é a concorrência entre marcas que está em jogo, mas a saúde da sociedade brasileira.

* RONALDO LARANJEIRA, 50, doutor em psiquiatria pela Universidade de Londres (Inglaterra), é professor livre docente do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

* ILANA PINSKY, 40, psicoterapeuta, mestre em psicologia pela USP e doutora em psiquiatria e psicologia médica pela Unifesp, é pesquisadora sênior do Departamento de Psiquiatria da Unifesp."

* copyright Folha de S. Paulo, 12/07/07

Classificação indicativa: radiodifusores não venceram

Foram pequenas as alterações que o ministério da Justiça fez na portaria que estabelece a classificação indicativa para os programas de TV, mas o noticiário de ontem, terça-feira, dava a impressão de que o novo texto significava uma "vitória esmagadora" das empresas de mídia eletrônica.

O governo foi apenas hábil: fez os ajustes apropriados, sobretudo no fraseado, e assim evitou que a cruzada orquestrada pelas empresas de televisão continue insistindo na tecla de que a classificação equivale à "censura".

A exigência de adaptar o teor de um programa ao horário em que é exibido foi finalmente consagrada, a TV comercial terá que respeitá-la e quem fiscalizará as irregularidades ou infrações será o Ministério Público.

O que não pode ser esquecido neste episódio é o jogo pesado adotado pelas empresas de TV capitaneadas pela Globo. Aqueles anúncios de página inteira nos principais jornais do país reproduzindo o manifesto assinado pelos astros e estrelas das telinhas contra uma classificação de programas que existe em todos os países mostra que as concessionárias de radiodifusão estão somente interessadas em servir aos seus próprios interesses, e não ao interesse público.

Esta orquestração serviu por escancarar a imperiosa necessidade de um debate sobre a concentração da mídia em nosso país. Se adotássemos aqui as normas vigentes nos EUA sobre a propriedade de diferentes veículos pelos mesmos grupos, a cruzada contra a classificação teria sido menos autoritária.

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TV pública: falta uma crítica radical ao racismo

No debate sobre TV pública, o ministro da Comunicação Social, Sr. Franklin Martins, na avaliação que faz da TV comercial, tem se manifestado escandalizado com o fato de que nenhuma emissora brasileira mantém “um jornalista correspondente num país africano”. É chocante, ele tem dito, considerando-se o percentual da população afro-descendente no país. E complementa dizendo que as emissoras têm os olhos voltados exclusivamente para o ‘circuito Elisabeth Harden’ ( O Estado de S. Paulo, edição de 28 de junho de 2007, Cad. 2, p. D7).

Diante disso, a repórter Leila Reis, obviamente, perguntou: ‘O senhor acha que nossa cabeça é de colonizado demais?”E Martins respondeu: ‘Eu prefiro supor que falta criatividade, capacidade de arriscar. Como a TV comercial só olha para o custo e retorno comercial, está condenada a uma visão imediatista. A TV pública, ao contrário, tem de ir além do imediato, construir audiência com o tempo, com qualificação. Claro que olharemos para o custo, mas valorizaremos o retorno cultural, político'.

Mais adiante, Franklin Martins, afirmando a independência da TV pública, disse que, para isso, ela não poderá estar na mão de quem controla a ‘torneirinha dos recursos’, nem ‘depender da boa vontade do governo de plantão’, e que essa era a vontade do presidente Lula, a construção de uma ‘rede independente’.

Martins é a favor do patrocínio na TV pública e exemplifica também com a África, dizendo que ‘o patrocínio de um programa sobre África pode ser oferecido a uma companhia brasileira que faz investimentos lá, como a Petrobrás, a Odebrecht '.

Afora isso, há alusões ao fato de que somos uma nação  ‘plural’ e que se investirá ‘na diversidade da cultura brasileira que não está na TV comercial’.

Eu creio que nada disso autoriza uma expectativa racional, e favorável, no sentido de que teremos uma TV pública, independente de governos e do poder econômico, capaz de veicular os conteúdos subversivos ligados à identidade afro-brasileira.

Franklin Martins tem a seu favor, a meu ver, o fato de ter escrito um livro sobre jornalismo político para ‘jovens repórteres e estudantes de comunicação’ e incluído um estudo de caso sobre José do Patrocínio, que ele considera “um dos maiores jornalistas que este país conheceu”, demonstrando a grande capacidade de análise política de Patrocínio na conjuntura que antecede a abolição da escravidão. (Ver Jornalismo político. São Paulo: Contexto, 2005.)

Porque a questão principal está na pergunta levantada pela repórter do Estadão, e tangenciada por Martins, que envolve algo implicado nas estruturas mais amplas de dominação, de educação e formação.

Para se ter uma idéia, o já citado estudo de caso do livro de Martins é exemplo único e solitário na bibliografia das faculdades, que pensam comunicação como se nada de importante tivesse acontecido na área envolvendo atores não-brancos. Ignoram a imprensa negra, ignoram Manoel Querino, etc.

Deus nos livre e guarde de um programa sobre a África patrocinado por Odebrecht e congêneres. Conhecemos alguns livros e iniciativas culturais patrocinados por essas empresas, distribuídos como brindes a privilegiados. Vai ficar tudo com a cara da agência África, de Nizan Guanaes, que tem uma recepcionista negra e muita miçanga nos adereços.

Veicular e não veicular, posto assim tudo parece muito simples, Sr. Martins. Não considerar a África e os afro-descendentes relevantes não é uma questão de ‘criatividade’, trata-se de uma resistência ancorada no racismo, em hábitos mentais e psicológicos cultivados nas melhores escolas do país, na dominação política e econômica, na desumanização do africano e de seus descendentes.

Aliás, a mídia brasileira costuma ser muito criativa ao perpetrar essas perversões. O que orienta a programação da TV comercial se abriga no centro mais profundo da cultura brasileira: a rejeição a tudo relacionado ao negro. A TV pública, se quer de fato romper com essa tradição, tem que se dispor a fazer uma radical crítica dos postulados racistas e de sua força desumanizadora que corroem nossa formação e nossas possibilidades de construção de uma sociedade efetivamente democrática e pluralista.

Edson Lopes Cardoso – edsoncardoso@irohin.org.br