TV pública: falta uma crítica radical ao racismo

No debate sobre TV pública, o ministro da Comunicação Social, Sr. Franklin Martins, na avaliação que faz da TV comercial, tem se manifestado escandalizado com o fato de que nenhuma emissora brasileira mantém “um jornalista correspondente num país africano”. É chocante, ele tem dito, considerando-se o percentual da população afro-descendente no país. E complementa dizendo que as emissoras têm os olhos voltados exclusivamente para o ‘circuito Elisabeth Harden’ ( O Estado de S. Paulo, edição de 28 de junho de 2007, Cad. 2, p. D7).

Diante disso, a repórter Leila Reis, obviamente, perguntou: ‘O senhor acha que nossa cabeça é de colonizado demais?”E Martins respondeu: ‘Eu prefiro supor que falta criatividade, capacidade de arriscar. Como a TV comercial só olha para o custo e retorno comercial, está condenada a uma visão imediatista. A TV pública, ao contrário, tem de ir além do imediato, construir audiência com o tempo, com qualificação. Claro que olharemos para o custo, mas valorizaremos o retorno cultural, político'.

Mais adiante, Franklin Martins, afirmando a independência da TV pública, disse que, para isso, ela não poderá estar na mão de quem controla a ‘torneirinha dos recursos’, nem ‘depender da boa vontade do governo de plantão’, e que essa era a vontade do presidente Lula, a construção de uma ‘rede independente’.

Martins é a favor do patrocínio na TV pública e exemplifica também com a África, dizendo que ‘o patrocínio de um programa sobre África pode ser oferecido a uma companhia brasileira que faz investimentos lá, como a Petrobrás, a Odebrecht '.

Afora isso, há alusões ao fato de que somos uma nação  ‘plural’ e que se investirá ‘na diversidade da cultura brasileira que não está na TV comercial’.

Eu creio que nada disso autoriza uma expectativa racional, e favorável, no sentido de que teremos uma TV pública, independente de governos e do poder econômico, capaz de veicular os conteúdos subversivos ligados à identidade afro-brasileira.

Franklin Martins tem a seu favor, a meu ver, o fato de ter escrito um livro sobre jornalismo político para ‘jovens repórteres e estudantes de comunicação’ e incluído um estudo de caso sobre José do Patrocínio, que ele considera “um dos maiores jornalistas que este país conheceu”, demonstrando a grande capacidade de análise política de Patrocínio na conjuntura que antecede a abolição da escravidão. (Ver Jornalismo político. São Paulo: Contexto, 2005.)

Porque a questão principal está na pergunta levantada pela repórter do Estadão, e tangenciada por Martins, que envolve algo implicado nas estruturas mais amplas de dominação, de educação e formação.

Para se ter uma idéia, o já citado estudo de caso do livro de Martins é exemplo único e solitário na bibliografia das faculdades, que pensam comunicação como se nada de importante tivesse acontecido na área envolvendo atores não-brancos. Ignoram a imprensa negra, ignoram Manoel Querino, etc.

Deus nos livre e guarde de um programa sobre a África patrocinado por Odebrecht e congêneres. Conhecemos alguns livros e iniciativas culturais patrocinados por essas empresas, distribuídos como brindes a privilegiados. Vai ficar tudo com a cara da agência África, de Nizan Guanaes, que tem uma recepcionista negra e muita miçanga nos adereços.

Veicular e não veicular, posto assim tudo parece muito simples, Sr. Martins. Não considerar a África e os afro-descendentes relevantes não é uma questão de ‘criatividade’, trata-se de uma resistência ancorada no racismo, em hábitos mentais e psicológicos cultivados nas melhores escolas do país, na dominação política e econômica, na desumanização do africano e de seus descendentes.

Aliás, a mídia brasileira costuma ser muito criativa ao perpetrar essas perversões. O que orienta a programação da TV comercial se abriga no centro mais profundo da cultura brasileira: a rejeição a tudo relacionado ao negro. A TV pública, se quer de fato romper com essa tradição, tem que se dispor a fazer uma radical crítica dos postulados racistas e de sua força desumanizadora que corroem nossa formação e nossas possibilidades de construção de uma sociedade efetivamente democrática e pluralista.

Edson Lopes Cardoso – edsoncardoso@irohin.org.br 

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