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Renan e os negócios obscuros da Abril

Vítima de um feroz e estranho bombardeio da revista Veja, o senador Renan Calheiros decidiu partir para o revide – prestando um serviço à sociedade. Na semana passada, ele enviou aos parlamentares uma carta questionando os motivos da investida.  “Patriotismo? Compromisso ético com a lisura e o comportamento dos homens públicos? Ou, quem sabe, usar-me como cortina de fumaça para que, por suas sombras, acabe celebrada uma nebulosa transação de cerca de R$ 1 bilhão, envolvendo a venda de uma concessão de canal de televisão pelo Grupo Abril, proprietário da revista Veja, a uma empresa estrangeira?”. Ao final, o presidente do Senado propôs a apuração deste “negócio bilionário que se deseja manter na obscuridade”.

A famíglia Civita, dona do poderoso grupo midiático, não deu capa à “nebulosa transação”. Acostumada a condenar sem julgamento todos os que atrapalham seus projetos políticos ou ambições comerciais, num atentado à Constituição, preferiu o silêncio. Apostou no esquecimento e na pouca repercussão. Já o resto da mídia venal, também adepta da “presunção da culpa”, optou por encobrir o caso e sequer averiguou as acusações. Agiu como cúmplice de um crime ou como quem tem culpa no cartório. Mas as denúncias são graves e bem que poderiam ensejar uma CPI para apurar os pobres da mídia. O senador Renan Calheiros, que conhece os bastidores do poder e hoje é satanizado pelos poderosos, teria importante papel a cumprir.

A transação Telefónica-TVA

O bilionário negócio, que não teve qualquer alarde na imprensa, é realmente obscuro. Em julho passado, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovou a venda de parte da TVA, que pertence a Abril, para a multinacional Telefónica por R$ 922 milhões. Foram transferidos 100% da TV por assinatura via microondas (MMDS), 49% das ações votantes da TV a cabo fora de São Paulo e 19,9% destas no estado. A Telefónica, com “valor de mercado” de US$ 104 bilhões, só não abocanhou integralmente a TVA por restrições da Lei do Cabo. Na prática, a Abril tornou-se um “laranja” da multinacional, que oficialmente é espanhola, mas que dá lucros para poderosos bancos, como o Citigroup, JP Morgan-Chase e BankBoston.

A transação, feita na surdina e às pressas, só se tornou pública devido ao voto contrário de Plínio Aguiar Jr. no Conselho da Anatel, que foi disponibilizado a seu pedido no site da agência. Ele considerou que a venda afeta os interesses dos acionistas da TVA e não resguarda os interesses nacionais, já que o número de ações adquirido pela multinacional chegou ao limite de 49%. Para o conselheiro, isso contraria o artigo 7º da Lei do Cabo, “uma vez que o seu objetivo é assegurar que as decisões em concessionárias de TV a cabo sejam tomadas exclusivamente por brasileiros, o que não ocorrerá no presente caso, uma vez que as decisões estarão sujeitas à aprovação da Telesp, que é controlada por estrangeiros”.

A aprovação da Anatel, entretanto, apenas oficializou o que já vinha ocorrendo desde o início deste ano – portanto, antes da formalização da venda. “Você abre os jornais e vê as propagandas conjuntas, dizendo ao consumidor que ele pode ter como provedor da internet a Speedy, da Telefónica, ou a Ajato, da TVA. A Telefónica está oferecendo pacotes de TV por assinatura, o que mostra que a operação comercial já está em andamento”, denunciou, em março, ao jornal Hora do Povo, o diretor da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Alexandre Annemberg. Pouco depois, a presidente do Conselho Administrativo de Defesa do Consumidor (Cade), Elizabeth Farina, ao comentar o processo Telefónica-TVA, confessou que o órgão “não tem imposto grandes restrições aos atos de concentração na área de telecomunicações”.

Os vínculos com os racistas

Esse não é o primeiro negócio obscuro da Abril. No ano passado, o escritor Renato Pompeu denunciou na revista Caros Amigos que “o grupo de mídia sul-africano Naspers adquiriu 30% do capital acionário da Editora Abril, que detém 54% do mercado brasileiro de revistas e 58% das rendas de anúncios em revistas no país. Para tanto, pagou 422 milhões de dólares”. Da mesma forma que ocorre hoje na transação TVA-Telefónica, a imprensa nativa não deu maior destaque àquela negociata e nem sequer revelou a história da multinacional sul-africana. “Não foi dada a devida atenção ao fato de a Naspers ter sido um dos esteios do regime de apartheid na África do Sul e ter prosperado com a segregação racial”, criticou Pompeu.

Dos quadros deste grupo saíram os três primeiros-ministros do regime fascista e racistas do país. “Com a ajuda dos governos do apartheid, dos quais suas publicações foram porta-vozes, a Naspers evoluiu para se tornar o maior conglomerado da mídia imprensa e eletrônica da África, onde atua em dezenas de países, tendo estendido também suas atividades para nações como a Hungria, Grécia, Índia, China e, agora, para o Brasil. Em setembro de 1997, um total de 127 jornalistas da Naspers pediu desculpas em público pela sua atuação no apartheid, em documento dirigido à Comissão da Verdade e da Reconciliação, encabeçada pelo arcebispo Desmond Tutu… A própria Naspers, entretanto, jamais pediu perdão por suas ligações”. A revista Veja, agora infestada pela empresa racista, também nunca falou sobre a “nebulosa transação”.

Os interesses alienígenas

Mas as relações obscuras do Grupo Abril vão bem além. Até recentemente, ele sofria forte influência na sua linha editorial de corporações dos EUA. A Capital International, terceiro maior gestor de fundos de investimentos desta potência, tinha dois prepostos no seu Conselho de Administração – Willian Parker e Guilherme Lins. Em julho de 2004, esta agência de especuladores havia adquirido 13,8% das ações da Abril, numa operação viabilizada por uma emenda constitucional sancionada por FHC em 2002. O Grupo Abril também tem vínculos com a Cisneros Group, holding controlada por Gustavo Cisneros, um dos principais mentores do frustrado golpe midiático contra o presidente Hugo Chávez, em abril de 2002.

Segundo Gustavo Barreto, pesquisador da UFRJ, o grupo ainda possui relações com vários bancos, como o Safra e o norte-americana JP Morgan – “o mesmo que calcula o chamado risco-país, índice que designa o risco que os investidores correm quando investem no Brasil. Em outras palavras, expressa a percepção do investidor estrangeiro sobre a capacidade deste país ‘honrar’ os seus compromissos. Estas e outras instituições financeiras de peso são os debenturistas – detentores das debêntures (títulos da dívida) – da Editora Abril e de seu principal produto jornalístico. Em suma, são responsáveis pela reestruturação da editora que publica a revista com linha editorial fortemente pró-mercado e anti-movimentos sociais”.

Um ninho de tucanos

Além de controlada por corporações estrangeiras, a Abril mantém relações estreitas com o PSDB, que é o núcleo orgânico do capital rentista, e com o PFL, que representa a velha oligarquia conservadora. Emílio Carazzai, que exerceu a função de vice-presidente de Finanças do Grupo Abril, foi presidente da Caixa Econômica Federal no governo FHC. Outra tucana influente Civita é Claudia Costin, ministra de FHC responsável pela demissão de servidores públicos, ex-secretária de Geraldo Alckmin e vice-presidente da Fundação Victor Civita. Não é para menos que a Editora Abril sempre privilegiou os políticos tucanos.

Afora os possíveis apoios “não contabilizados”, que só uma rigorosa auditoria da Justiça Eleitoral poderia provar, nas eleições de 2002, ela doou R$ 50,7 mil a dois cardeais do PSDB. O deputado federal Alberto Goldman recebeu R$ 34,9 mil da influente família; já o deputado Aloysio Nunes, ex-ministro de FHC, foi agraciado com R$ 15,8 mil. Ela também depositou R$ 303 mil na conta da DNA Propaganda, a famosa empresa de Marcos Valério que inaugurou um ilícito esquema de financiamento eleitoral para Eduardo Azeredo, ex-presidente do PSDB.  Estes e outros “segredinhos” do Grupo Abril ajudam a entender a linha editorial da revista Veja e a sua postura de opositora radical do governo Lula.

* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

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Os riscos do financiamento à TV digital

O governo anunciou que irá financiar a implantação da TV digital no Brasil. Através do BNDES, o Programa de Apoio à Implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (ProTVD) terá disponível cerca de R$ 1 bilhão para apoiar três linhas de crédito: fornecedor (empresas de equipamentos), radiodifusão (para as emissoras) e conteúdo.

As regras destes financiamentos ainda não estão totalmente claras, mas já podemos especular alguns problemas que o BNDES deverá enfrentar. Vejamos:

O ProTVD Radiodifusão financiará a compra de equipamentos digitais para as emissoras privadas de televisão. Muitas destas emissoras, contudo, estão com as concessões vencidas há anos. Outras são de propriedade de parlamentares (o que a Constituição Federal proibe) ou de seus familiares. O BNDES irá financiar estas emissoras? Ou seja, dinheiro público será utilizado para financiar as emissoras dos Sarney, dos Collor, da família do finado ACM, de Jader Barbalho, Albano Franco, Renan Calheiros e Wellington Salgado de Oliveira, entre tantos outros políticos donos de emissoras?

Segundo levantamento do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), 145 emissoras de televisão tiveram suas outorgas vencidas até 2006. A outorga da Rádio e Televisão Espírito Santo, por exemplo, venceu em 1991 e a da RBS TV Bagé expirou há quase 19 anos. Novamente surge a pergunta. O governo pretende financiar com recursos públicos as emissoras que utilizam o espectro eletromagnético sem que tenham uma concessão em dia?

Produção independente pero no mucho

O ProTVD Conteúdo emprestará dinheiro a juros menores para produtores independentes. Peguemos, então, um caso concreto e ilustrativo da situação de vários outros diretores e atores de televisão. Daniel Filho foi durante 40 anos o todo poderoso da TV Globo. Coordenou, criou, produziu, dirigiu ou atuou em quase tudo o que a Globo lançou entre a década de 60 e os anos 90. Atualmente, Daniel Filho dirige seus próprios filmes e produz vários outros, todos para a Globo Filmes. Mais do que isso, é ele que dá o aval para que a empresa dos Marinho investa em uma produção cinematográfica. Ocorre que Filho, como uma série de outros nomes da televisão brasileira, é contratado através de sua produtora "independente": a Lereby Produções.

O BNDES terá condições técnicas e políticas de separar o que é realmente uma produtora independente daqueles funcionários das principais emissoras de TV que trocam o vinculo de pessoa física pelo de pessoa jurídica? Ou o BNDES irá financiar indiretamente, e com juros subsidiados, as principais redes de televisão do país, através de seus funcionários? O dinheiro público servirá para desconcentrar a produção (inclusive regionalmente) ou, pelo contrário, para aumentar ainda mais o oligopólio privado dos meios de comunicação?

Infelizmente, ao que tudo indica, o ProTVD será mais uma forma de transferir dinheiro público para as emissoras privadas. Digo mais uma porque o país já assistiu a farra do subsídio das transmissões via satélite (nos tempos da Telebras), de anúncios do Estado, de dinheiro ilegal (vide caso Time-Life), de concessões para políticos e de renúncia fiscal. O ProTVD seria mais um capítulo nessa novela. A diferença é que este trecho da história está sendo escrito por um governo que foi eleito para mudar o que existia antes.

* Gustavo Gindre é membro do Intervozes e conselheiro eleito do Comitê Gestor da Internet do Brasil.

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OpenXML, mais um round: como foi a reunião na ABNT

Na quinta feira dia 9 aconteceu mais uma reunião na ABNT da CE (Comissão de Estudo) que debate se o Brasil apoiará ou não a proposta do OpenXML se tornar um padrão ISO. Infelizmente foi uma reunião muito tumultuada e pouco produtiva…E dentro de duas semanas acontecerá a reunião final, onde a Comissão definirá o voto brasileiro.

Bem, na minha opinião os membros da Comissão só deveriam votar YES se tiverem certeza que o padrão proposto não contém erros técnicos. Um voto YES significa que a entidade brasileira está aceitando o padrão como proposto e que os únicos problemas encontrados são meramente editoriais, como vírgulas e pontos fora do lugar. A desaprovação ou voto NÃO, com comentários, significa que foram encontrados erros técnicos e existem questões de propriedade intelectual ainda não resolvidas. Este voto com comentários anexados indica que o padrão poderá a vir a ser aceito desde que os problemas sejam corrigidos da forma sugerida.

Pode haver também um voto ABSTAIN, quando a entidade não se sentir competente tecnicamente ou não tiver tido tempo suficiente para avaliar o padrão. Também pode ser usado quando a CE não chegou a consenso quanto a votar YES ou NO.

Acredito que para uma decisão consciente por um voto YES ou NO é necessário um sólido background de conhecimentos sobre o assunto. Afinal, estamos falando do voto brasileiro para adoção ou não de um padrão. Claro que ninguém teve condições de ler as mais de 6.000 páginas, pois esta é uma tarefa impossível de se cumprir nos seis meses que estavam disponíveis para análise. Mas, inúmeros blogs e documentos que circulam na Web mostram centenas de problemas técnicos. O GT (Grupo de Trabalho) na ABNT que está analisando a situação do OpenXML no Brasil também detetou e registrou um número muito grande de problemas.

Na minha opinião, o voto é “NO with comments”. Além das várias razões para isso, como levantadas nos diversos posts anteriores sobre o assunto (vejam as tags ODF e OpenXML), cito a questão da compatibilidade com documentos legados, um dos principais motivos alegados para a criação de um novo padrão. No documento enviado pela Ecma está claramente explicitado isso: “OpenXML was designed from the start to be capable of faithfully representing the pre-existing corpus of word-processing documents, presentations, and spreadsheets that are encoded in binary formats defined by Microsoft Corporation. The standardization process consisted of mirroring in XML the capabilities required to represent the existing corpus, extending them, providing detailed documentation, and enabling interoperability. At the time of writing, more than 400 million users generate documents in the binary formats, with estimates exceeding 40 billion documents and billions more being created each year”.

Mas, o padrão apresentado não apresenta um mapeamento entre os formatos binários proprietários e o novo formato OpenXML. Sem este mapeamento, ninguém é capaz de escrever um software que garanta esta compatibilidade, a não ser a própria Microsoft que tem acesso aos fontes que descrevem os binários. Ora, se a compatibilidade não é garantida, para que apresentar este novo padrão? É muito mais racional então aglutinar esforços para evoluir o padrão já existente, o ODF.

Ter mais de um padrão sempre gera problemas. Um recente relatório feito pela PEGSCO (Pan-European eGovernment Services Committee), que pode ser lido em http://ec.europa.eu/idabc/servlets/Doc?id=26971 diz “Member State experts have identified the perceived compatibility problems between ISO 26300 (ODF) based products and the commercial applications that dominate the offices of today´s administrations as the main barrier for the use of document exchange and storage formats. The potential arrival of a second international standard for revisable documents may mean that administrations will be required to support multiple formats leading to more complexity and increased costs. Although filters, translators and plug-ins may theoretically enable interoperability, experience shows that multiple transformations of formats may lead to problems, especially as there is no complete mapping between all features of each of the different standards”.

Quem analisou as questões técnicas viu que existem inúmeros problemas na proposta atual do OpenXML, como inconsistências com padrões ISO já existentes (“paper sizes”, “dates and times”, “HTML colour names”, e outros) , inconsistências com recomendações da W3C (Uso do DrawingML ao invés do padrão SVG, como também não usa o padrão MathML). Várias seções da especificação fazem referência ao comportamento de uma aplicação sem definir a natureza deste comportamento. Por exemplo, “autoSpaceLikeWord95”. Como o Word95 é proprietário, torna difícil a outras empresas, que não a Microsoft, implementarem softwares baseados na especificação OpenXML.

E mais: não existe especificação para linguagem macro, embora o Office 2007 suporte macros VBA. Como VBA é uma linguagem proprietária, seu uso é restrito. Além disso, existem elementos dos formatos de arquivos Office 2007 que não estão documentados na proposta Ecma atual. O resultado é que existem grandes possibilidades de ocorrerem problemas de interoperabilidade.

Mesmo o uso de plug-ins não é tão simples assim. Demanda mais um componente de software a ser instalado e gerenciado (imaginem milhares de máquinas), bem como obriga a que os usuários envolvidos na troca de documentos mantenham plug-ins compatíveis entre si!

Portanto, temos uma decisão importante a tomar. Que deve ser tomada com consciência.

Bem, e quais são os cenários futuros? Um pouco de especulação…Supondo que a proposta Ecma não seja aprovada como padrão ISO, é muito provável que continue sendo mantida pela Microsoft. Se tornará um padrão “de facto”. Os softwares de escritório serão obrigados a suportar estes dois padrões, com os inevitáveis problemas de compatibilidade e interoperabilidade já citados. E pior, caso estes problemas se avolumem, pode-se ter uma reversão no processo de evolução para XML, com os usuários preferindo manter o formato binário, que acabará se perpetuando…

* Cezar Taurion é  gerente de Novas Tecnologias da IBM

Mídia brasileira: uma discussão pública vital para a democracia

Foi no final da década de 1960, durante o regime militar, que se construiu a infra-estrutura necessária à transmissão simultânea em todo território nacional de sons e imagens. A partir daí, a televisão, junto com o rádio, os jornais e as revistas, formaram um sistema nacional de comunicação de massa. Dessa época até hoje o conjunto desses meios de comunicação – a mídia – foi se consolidando entre nós como instituição cada dia mais central no cotidiano do país. Não há como desconhecer hoje a enorme importância econômica, cultural e política da mídia.

A centralidade da mídia é um dado das sociedades contemporâneas. Não é, por óbvio, uma peculiaridade brasileira. Por ser, ao mesmo tempo, uma importante atividade econômica e a principal construtora das representações coletivas, a mídia se transformou ela mesma em ator poderoso e influente na formulação das políticas públicas, e não só do setor de comunicações.

Não há nada de novo nisso. O que há de novo é que nos últimos tempos – anos, meses, semanas – uma série de fatos vem fazendo com que a verdadeira dimensão da mídia como instituição na sociedade brasileira esteja se tornando cada vez mais objeto do conhecimento e da discussão públicas. E isso parece estar acontecendo à revelia da própria mídia que, ao longo das últimas décadas, sempre evitou discutir a si mesma (com umas poucas exceções).

É legal?

A cobertura que a mídia, no seu conjunto, vem oferecendo à população brasileira de alguns acontecimentos tem provocado – como "efeito colateral" não desejado – a discussão da própria mídia. São vários os exemplos. Lembro três recentes.

** A maciça cobertura da não-renovação da concessão de uma emissora de TV na Venezuela, além de reforçar a imagem pública negativa de Hugo Chávez, certamente provocou também a curiosidade sobre o tema das concessões. Como funciona no Brasil? É igual na Venezuela? A radiodifusão é um serviço público como qualquer outro? As emissoras de televisão são concessões? Os grupos empresariais são proprietários das emissoras de rádio e de televisão? Quais os critérios para se obter uma concessão de rádio ou de TV? Por quanto tempo valem essas concessões? Quais os critérios para que sejam renovadas? Quem renova? Quando terminam as concessões das emissoras de rádio e televisão? Etc., etc., etc.

** A cobertura e até mesmo a campanha que alguns veículos fizeram contra a Portaria da Classificação Indicativa dos programas de televisão proposta pelo Ministério da Justiça, além de pressionar o governo a atender demandas dos radiodifusores, certamente provocou a curiosidade sobre o tema da classificação. Por que as emissoras de TV são contra a portaria elaborada pelo Ministério da Justiça? Classificar programas é censura? Como se faz em outros países? Por que é necessário classificar? Os pais têm controle sobre os programas a que os filhos assistem? Existem leis que determinam que os programas sejam classificados por horário? Etc., etc., etc.

** As denúncias de que o senador Renan Calheiros é sócio velado de empresas de rádio em Alagoas, além de ser mais um elemento para sua condenação no Conselho de Ética, certamente provocou a curiosidade sobre o tema do controle de concessões de radiodifusão por políticos no exercício de mandato eletivo. Políticos no exercício do mandato podem ser concessionários de radiodifusão? Existem outros senadores ou deputados que também são concessionários? Quais? De quais emissoras? Em que estados? Os senadores e os deputados votam as renovações de concessões? Os senadores que são concessionários votam nas sessões do Senado em que os pedidos de renovação de suas próprias emissoras estão sendo considerados? Isso é legal? Etc., etc., etc.

Efeito bem-vindo

O resultado de tudo isso é que a instituição mídia está sendo cada vez mais discutida pela sociedade brasileira. Se considerarmos, como disse Sydney Schanberg, que "a imprensa [mídia] pede transparência para governos, corporações e para todos. Mas (…) os repórteres rejeitam transparência para eles mesmos, e ainda dizem que estão praticando bom jornalismo", nenhum "efeito colateral" poderia ser mais bem-vindo do que este.

Discutir a mídia é bom para a democracia e, decerto, é bom também para a própria mídia.

O escândalo das concessões que ninguém vê

As novas denúncias de Veja sobre as atividades do senador Renan Calheiros como empresário de mídia tratam da "sociedade secreta" com o usineiro João Lyra para a formação de um grupo regional de comunicação, esmiúçam os valores pagos, a forma de pagamento, e identificam os testas-de-ferro utilizados para tirar o seu nome do negócio (edições 2020 e 2021; págs. 60-66 e págs.78-80).

Apesar da grande repercussão, as reportagens passam ao largo da fábrica de irregularidades e prevaricações que permite aos parlamentares (deputados federais ou senadores) beneficiarem-se indevidamente de uma concessão de radiodifusão. As denúncias (desta vez investigadas) tratam de uma grave ilegalidade/imoralidade, mas ignoram as circunstâncias que permitiram a sua multiplicação em larga escala – a ponto de comprometer grande parte do Legislativo federal e viciar a estrutura da nossa mídia eletrônica.

Denuncia-se o ilícito como se fora algo excepcional, inédito, e deixa-se de lado o sistema que produz centenas de ilícitos da mesma natureza, alguns de proporções ainda maiores. A "sociedade secreta" do presidente do Senado com o usineiro não enganou apenas a Receita Federal e a Justiça Eleitoral, mas oferece um flagrante perfeito das aberrações e anomalias que permeiam nosso cotidiano político-administrativo sem chamar a atenção.

Sentido de autodefesa

Um legislador não pode ser concessionário de um serviço público, ainda mais de radiodifusão. Esta confusão entre beneficiador e beneficiário, além de corporativa, atenta contra a isonomia e agride a democracia. Nunca é demais repetir: o legislador não pode ser concessionário porque a ele cabe fiscalizar a concessão. O conflito de interesses que resulta desta duplicação é imoral, atenta contra o decoro parlamentar, é causa justa para uma cassação.

Veja não se fascinou com os eventuais desdobramentos sistêmicos ou endêmicos contidos em suas denúncias porque está fixada na tarefa de derrubar o presidente do Senado. Seu leitor está sendo treinado para exigir castigos e, não, o fim das mazelas. Prova disso é que o maior artífice da distribuição de concessões de rádio e TV para parlamentares foi o falecido senador Antonio Carlos Magalhães (ministro das Comunicações durante o governo Sarney), que durante duas décadas foi o queridinho de sucessivas gerações de editores do semanário.

Outra razão para concentrar na esfera fiscal a nova saraivada de acusações contra Renan Calheiros é pragmática. Se os demais senadores perceberem que também podem ser enredados na acusação de beneficiar-se com concessões de rádios e TV, certamente se tornarão refratários a qualquer punição contra o presidente da Casa.

Anomalia legislativa

Mas como explicar a frieza dos grandes jornais no tocante às incursões de Renan Calheiros no mundo da mídia eletrônica regional? O "coronelismo eletrônico" não se destaca na pauta porque nossa mídia geralmente não gosta de falar em mídia. Embora a Folha de S.Paulo e em menor escala o Estado de S.Paulo já tenham se ocupado dos parlamentares eletrônicos e dos respectivos currais midiáticos, o momento parece não ser conveniente para provocar um solavanco capaz de ameaçar o pacto de não-agressão ora vigente no mundo da comunicação.

A mídia pode derrubar Renan porque não provou a origem do dinheiro para comprar metade de um jornal e de uma rádio em Alagoas. Jamais se animará a derrubá-lo porque o senador serviu-se de uma anomalia legislativa que coloca sob suspeita grande parte dos grupos regionais de mídia.