O escândalo das concessões que ninguém vê

As novas denúncias de Veja sobre as atividades do senador Renan Calheiros como empresário de mídia tratam da "sociedade secreta" com o usineiro João Lyra para a formação de um grupo regional de comunicação, esmiúçam os valores pagos, a forma de pagamento, e identificam os testas-de-ferro utilizados para tirar o seu nome do negócio (edições 2020 e 2021; págs. 60-66 e págs.78-80).

Apesar da grande repercussão, as reportagens passam ao largo da fábrica de irregularidades e prevaricações que permite aos parlamentares (deputados federais ou senadores) beneficiarem-se indevidamente de uma concessão de radiodifusão. As denúncias (desta vez investigadas) tratam de uma grave ilegalidade/imoralidade, mas ignoram as circunstâncias que permitiram a sua multiplicação em larga escala – a ponto de comprometer grande parte do Legislativo federal e viciar a estrutura da nossa mídia eletrônica.

Denuncia-se o ilícito como se fora algo excepcional, inédito, e deixa-se de lado o sistema que produz centenas de ilícitos da mesma natureza, alguns de proporções ainda maiores. A "sociedade secreta" do presidente do Senado com o usineiro não enganou apenas a Receita Federal e a Justiça Eleitoral, mas oferece um flagrante perfeito das aberrações e anomalias que permeiam nosso cotidiano político-administrativo sem chamar a atenção.

Sentido de autodefesa

Um legislador não pode ser concessionário de um serviço público, ainda mais de radiodifusão. Esta confusão entre beneficiador e beneficiário, além de corporativa, atenta contra a isonomia e agride a democracia. Nunca é demais repetir: o legislador não pode ser concessionário porque a ele cabe fiscalizar a concessão. O conflito de interesses que resulta desta duplicação é imoral, atenta contra o decoro parlamentar, é causa justa para uma cassação.

Veja não se fascinou com os eventuais desdobramentos sistêmicos ou endêmicos contidos em suas denúncias porque está fixada na tarefa de derrubar o presidente do Senado. Seu leitor está sendo treinado para exigir castigos e, não, o fim das mazelas. Prova disso é que o maior artífice da distribuição de concessões de rádio e TV para parlamentares foi o falecido senador Antonio Carlos Magalhães (ministro das Comunicações durante o governo Sarney), que durante duas décadas foi o queridinho de sucessivas gerações de editores do semanário.

Outra razão para concentrar na esfera fiscal a nova saraivada de acusações contra Renan Calheiros é pragmática. Se os demais senadores perceberem que também podem ser enredados na acusação de beneficiar-se com concessões de rádios e TV, certamente se tornarão refratários a qualquer punição contra o presidente da Casa.

Anomalia legislativa

Mas como explicar a frieza dos grandes jornais no tocante às incursões de Renan Calheiros no mundo da mídia eletrônica regional? O "coronelismo eletrônico" não se destaca na pauta porque nossa mídia geralmente não gosta de falar em mídia. Embora a Folha de S.Paulo e em menor escala o Estado de S.Paulo já tenham se ocupado dos parlamentares eletrônicos e dos respectivos currais midiáticos, o momento parece não ser conveniente para provocar um solavanco capaz de ameaçar o pacto de não-agressão ora vigente no mundo da comunicação.

A mídia pode derrubar Renan porque não provou a origem do dinheiro para comprar metade de um jornal e de uma rádio em Alagoas. Jamais se animará a derrubá-lo porque o senador serviu-se de uma anomalia legislativa que coloca sob suspeita grande parte dos grupos regionais de mídia.

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