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Ética, presunção de inocência e privacidade

O novo Código de Ética dos Jornalistas – aprovado no Congresso Nacional Extraordinário dos Jornalistas, realizado em Vitória, de 3 a 5 de agosto –, a recente transformação dos acusados do "mensalão" em réus pelo Supremo Tribunal Federal, e a divulgação de ações privadas de alguns dos juízes recolocaram na ordem do dia a cobertura que a grande mídia fez – e continua a fazer – da crise política iniciada a partir das evidências de corrupção nos Correios, reveladas pela revista Veja e pelo Jornal Nacional em maio de 2005.

As alterações no Código de Ética ratificaram a presunção de inocência como um dos fundamentos da profissão. O novo código reforça o preceito constitucional de que qualquer pessoa é inocente até prova em contrário, com o objetivo de "coibir a ação de meios de comunicação que, em sua cobertura jornalística, denunciam, julgam e submetem pessoas à execração pública. Isto é crime, mas muitas vezes sequer o direito de resposta é concedido aos denunciados".

Por outro lado, a recepção pelo STF de boa parte das denúncias feitas pelo procurador-geral da República é celebrada quase unanimemente como uma espécie de aval tardio à cobertura que tem sido realizada, eximindo jornalistas e empresas de mídia de qualquer responsabilidade por julgamentos e condenações antecipadas, excessos ou omissões. É como se a prática do jornalismo pairasse acima de certas garantias constitucionais.

E mais: a divulgação de atos privados de juízes – sejam eles correspondência eletrônica ou conversa telefônica – tem sido justificada como dever e obrigação do jornalista.

"Lerdeza corporativista"

Por que não se aplicaria ao jornalista o princípio da presunção de inocência, que tem sua origem na Revolução Francesa e está consagrado na Constituição de 1988? O texto constitucional diz, no seu art. 5º, inciso LVII: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Não seria a obediência a este princípio dever elementar de qualquer cidadão e, sobretudo, dos jornalistas, independente das informações que obtiver e de sua convicção pessoal?

A possibilidade de que, em data futura, a presunção de culpa venha, eventualmente, a se confirmar correta prevalece sobre o direito dos acusados de serem tratados como inocentes até que a Justiça prove o contrário?

Quando se estaria colocando em risco a garantia da privacidade individual em nome da liberdade de imprensa?

Não há dúvida de que boa parte da nossa grande mídia opera como se alguns dos princípios que valem para os cidadãos comuns não se aplicassem a ela.

Um bom exemplo é o texto "Opinião" publicado pelo jornal O Globo, ainda em 12 de agosto de 2006, durante a campanha eleitoral. O minieditorial com o título "Coerência" ironizava a posição do Partido dos Trabalhadores em relação aos parlamentares de vários partidos suspeitos de participar na venda fraudulenta de ambulâncias.

"Não se pode acusar o PT de incoerência: se protege mensaleiros, também acolhe sanguessugas. Sempre com o argumento maroto de que é preciso esperar o julgamento final".

Segundo o texto, o argumento do PT era "maroto" – isto é, malandro, velhaco – porque "o julgamento político e ético não se confunde com o veredicto da Justiça" e, na verdade, a esperança do PT era que "mensaleiros e sanguessugas sejam salvos pela lerdeza corporativista do Congresso e por chicanas jurídicas".

Há limites?

Se essa é a postura editorial do Globo, que implicações ela teria na cobertura política que oferece desses fatos aos seus leitores? Qual é exatamente a diferença entre os julgamentos políticos e éticos e o veredicto da Justiça? Quais seriam os fóruns apropriados para que os julgamentos políticos e éticos sejam feitos? E quem os faz? Quais os mecanismos de defesa disponíveis para aqueles que sofrem antecipadamente o julgamento político e ético na mídia?

É preciso que fique claro que a observação crítica democrática que se faz da cobertura da mídia sobre determinados fatos não pode ser necessariamente confundida com a negação de sua existência ou com uma posição prévia sobre eles.

Por outro lado, no clima de polarização irracional de posições que o debate sobre o papel da grande mídia acaba sendo realizado (a quem interessa essa polarização?) é preciso que não se confunda a liberdade de imprensa e a responsabilidade do jornalismo em oferecer a cobertura dos fatos com uma carta branca para se colocar acima dos direitos e garantias individuais.

Existe algum limite para a atuação dos jornalistas e do jornalismo? No campo da observação da mídia, essa é a discussão que se coloca e precisa ser democraticamente enfrentada.

Active Image Observatório da Imprensa

Alô, alô, TV Pública: aquele abraço

O governo acerta ao convidar Luiz Gonzaga Belluzzo para presidir a rede de TV Pública. Mas erra ao propor a extinção da Radiobrás. Parece assumir a idéia neoliberal de que tudo que vem do Estado é ruim. 

O governo deu um passo na direção certa ao convidar o professor Luiz Gongaga Belluzo para presidir a rede de TV Pública a ser instalada no país. Para um projeto de tal envergadura, era preciso começar com uma liderança do mundo da cultura e do saber.

Inexplicavelmente, o mesmo governo está andando para trás na definição do modelo gerencial e operacional da TV pública. A proposta de extinguir a Radiobrás, fundindo todo o seu acervo com o da TVE para criar uma nova entidade, tem todas as chances de dar errado, além do equívoco fundamental de acabar com o único sistema importante de comunicação oficial do Estado brasileiro. No seu lugar haveria um contrato de prestação de serviços pelo qual a TV pública produziria informação de Estado minimamente necessária.

Como se vê, o caminho escolhido é de todos o mais complicado. Implica em fundir entidades totalmente diferentes, cada uma carregando pesos mortos, inclusive passivos trabalhistas e problemas funcionais. Só se explica se há um objetivo oculto de aproveitar a oportunidade para se desfazer desses “pesos mortos.” Cria-se um monstro jurídico, para resolver oportunisticamente problemas antigos que nada têm a ver com o projeto. Além disso, já começa dando à TV pública, ainda que sob contrato de prestação de serviços, também a tarefa de comunicação estatal.

O que mais intriga é que a solução para a separação entre comunicação pública e comunicação oficial já estava dada, bastando aprofundar a demarcação existente: atribuir à TVE, que é uma Organização Social de fins públicos, portanto já bem independente do Estado, o papel de esqueleto ou núcleo articulador da rede pública e limitar a Radiobrás ao papel específico e exclusivo de comunicação oficial, transferindo parte de seus equipamentos, programas e concessões para a TVE.

Das nove concessões de rádio e TV da Radiobrás, pelo menos metade tem vocação para comunicação pública e poderiam reforçar o esquema TVE, constituindo o embrião do novo sistema público, sem precisar criar novas empresas ou extinguir a Radiobrás. Agencia Brasil, TV a cabo NBR e o canal internacional “integración” poderiam continuar como partes de um sistema estatal de comunicação.

Realmente não dá para entender a lógica da fusão. Por que criar tantos problemas e descartar uma solução óbvia? Solução que já havia sido proposta várias vezes durante o primeiro mandato, na ocasião, para acabar com a ambigüidade dos papéis da Radiobrás que atuava ao mesmo tempo como sistema público e estatal.

Pode ser que o verdadeiro objetivo seja o de acabar com a obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil, cedendo à campanha lançada em 1995 por 850 emissoras privadas de rádio. Os barões da mídia não satisfeitos em faturar 23 horas por dia sem pagar nada pelas concessões outorgadas pelo Estado, ainda querem acabar com a única hora em que o Estado tenta se comunicar diretamente. A Voz do Brasil é ouvida por mais de 50% da população, sendo que 11% a ouvem regularmente. A desconfiança se justifica, porque a campanha foi apoiada publicamente pela direção da Radiobrás já no governo Lula. Dentro dessa lógica, o governo ofereceria a Voz do Brasil no altar do sacrifício para aplacar a ira do baronato contra a criação da TV pública.

Se for isso, o governo está cometendo um erro grave. Está aceitando ingenuamente a tese de que comunicação estatal é necessariamente “jornalismo chapa-branca”, ou seja, algo condenável; de que a comunicação do Estado é por natureza autoritária enquanto a dos barões da mídia é a democrática e pluralista. Ora, informação oficial, precisa, abrangente e acurada dos atos de governo e suas razões, é hoje uma obrigação de todos os estados democráticos, um atributo da sociedade da informação.

A diferença entre comunicação oficial de Estado, num regime democrático, e a produção de uma rede pública, não está no grau de veracidade, independência, e pertinência social dos conteúdos que deve ser elevado em ambos os casos, e sim nas funções de cada programação, portanto no seu “mix”: a estatal tem as funções principais de divulgar as campanhas sanitárias, educativas e outras de utilidade pública, e prover informação básica, precisa e acurada sobre os atos do governo . Serve, inclusive, como fonte de informação primária para o jornalismo das empresas privadas, como era o papel histórico da Agência Brasil da Radiobrás. Ainda hoje, a Agência Brasil é acessada de quatro e cinco milhões de vezes por mês por pessoas e entidades de todos os tipos, em especial pauteiros e correspondentes estrangeiros, à busca de informação primária sobe atos e agenda de governo. Também produz mais de mil fotos por mês de uso livre pela mídia.

Já a rede pública tem a função de produzir informação jornalística, cultura , crítica e entretenimento movidos estritamente pelo interesse público, em competição qualificada com o jornalismo das redes privadas, esse movido essencialmente pela busca de lucro e portanto pelos índices de audiência. A competição da rede pública não é com a do Estado, é com a da empresa privada.

Comunicação oficial de Estado não é propaganda. É um serviço público essencial nos estados modernos. Por trás dessa concepção de que comunicação do governo é algo nefasto está também a idéia de que o estado é nefasto, quanto menor melhor. É a proposta neoliberal do Estado mínimo. E também o equívoco conceitual de considerar que o Estado não faz parte da esfera pública, quando ele é a mais pública de todas as partes dessa esfera.

Se o governo extinguir a Radiobrás estará caminhando na contramão da história. O que ele deve, isso sim, é acabar com prática nefasta de usar dinheiro público para fazer propaganda de si mesmo. E proibir essa prática também nos Estados e municípios.

Deixar a Radiobrás e a TVE onde estão, apenas desbastando e separando mais claramente seus papéis é a solução orgânica mais simples para a instalação da rede pública de TV no Brasil. E tem mais: é a solução que mantém até geograficamente a separação entre comunicação pública e estatal, deixando a Radiobrás perto do poder, e localizando o núcleo de produção jornalística da rede pública bem longe desse poder, no Rio de Janeiro, a cidade civilista e libertária por excelência , ou mesmo em São Paulo. É um equívoco adicional sediar o jornalismo da TV pública em Brasília, com seu Plano Piloto elitista, contaminado pelas relações promíscuas de poder.

Uma nova rede pública de tevê deve começar como se começa uma nova universidade: atraindo para o seu projeto as melhores cabeças de cada campo do conhecimento e partindo diretamente para a produção desse conhecimento. No caso da TV, Para a produção de três ou quatro programas de grande qualidade e impacto. O resto é imbróglio burocrático. Não leva a nada.

* Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

Active Image Carta Maior

A hora e a vez das novas redes sociais ditarem as regras

Os processos de construção colaborativa de conhecimento tornaram-se moda nos últimos anos, com a expansão da internet, mas é preciso tornar mais clara a novidade: trata-se da evolução do modelo 'um para muitos' (MIT) para um modelo 'muitos para muitos' (Wikiuniversity) no âmbito da própria internet. Essa é a novidade central do que se convencionou chamar de web 2.0.

A importância do conhecimento apenas relativamente estruturado, como o que se produz continuamente em cursos de complementação, MBAs e outras formas de estudo do tipo 'pós- graduação' nas empresas precisa ser urgentemente reconhecida, medida e premiada.

No entanto, enquanto a maioria da instituições ditas 'acadêmicas' não reconhece e não incentiva este tipo de abordagem, surgem ambientes virtuais onde os trabalhadores de uma instituição compartilham conhecimentos para desenvolver soluções capazes de resolver problemas específicos de outras organizações.

O grau de 'disclosure', ou seja, de compartilhamento, obviamente varia de empresa para empresa, de organização para organização, de pessoa para pessoa. Essa disposição e as competências para a inovação aberta tornaram-se um aspecto essencial, talvez o mais crítico, no desenho das estratégias tecnológicas nos modelos de negócios contemporâneos.

Cada vez mais, o grau de abertura para as redes sociais pode ser decisivo para a riqueza dos sistemas empresariais e produtivos. Essa é a lição estampada tanto em projetos projetos mais 'sérios' ou profissionalizantes de conexão aberta entre indivíduos e organizações (como a Cidade do Conhecimento da USP e redes profissionais globais como 'Linked In') quanto em espaços desenhados com foco no entretenimento ou auto-ajuda (como Orkut eoutras redes juvenis, de orientação sexual ou solidariedade e demais serviços sociais).

A 'educação à distância' já foi apontada como uma das grandes promessas da internet. Hoje, manchetes de jornais mostram estudantes revoltados com o uso por mantenedoras de sistemas de informação para reduzir custos, rebaixar o nível do ensino e ampliar a receita com mensalidades e outras taxas. A verdade é que pouco mudou, ainda, no ensino e na aprendizagem, apesar da rápida difusão da internet 1.0.

Professores e alunos encontram-se nas salas de aula, onde as dinâmicas de ensino e aprendizagem permanecem iguais às de antigamente. Novas possibilidades de educação a distância têm sido experimentadas, é verdade; porém, grande parte das iniciativas elaboradas são pontuais, ou seja, desenvolvidas em contextos específicos e sem possibilidade de serem replicadas em outros ambientes. Mais importante, até hoje não existem métricas capazes de comparar as iniciativas entre diferentes instituições de ensino ou empresas que funcionam como organizações que aprendem.

A difusão de redes sociais digitais prenuncia em pleno capitalismo doconhecimento o surgimento de uma economia da colaboração, a consolidação de ações do terceiro setor e de responsabilidade social empresarial e a revalorização de ações e instituições de interesse público.

É a emergência do Capitalismo 3.0 a partir da Web 2.0. O termo, criado por Peter Barnes (eleito em 1995 o empresário socialmente responsável do ano nos EUA), coloca em primeiro plano a necessidade de mudanças sociais e econômicas para que o potencial das novas tecnologias seja melhor aproveitado.

Nem tudo ao Estado, nem dominância absoluta do mercado, ganham importância nos novos direitos associados a redes intangíveis que refletem uma inteligência cívica tão importante para cidadãos quanto para empresas e organizações sociais. O 'creative commons' é o exemplo hoje mais conhecido de reforma capitalista associada ao controle socialdas redes digitais. Na Web 2.0 não faz sentido separar o real do digital. A competição e o mercado jamais serão os mesmos agora que o ecossistema capitalista combina territórios proprietários e não-proprietários.

O exemplo mais recente da migração para novas formas de vidadigital é o Second Life, onde a Cidade do Conhecimento 2.0 lidera a criação de territórios de interesse público, sem fins lucrativos, autênticas incubadoras de projetos sociais, educacionais, ambientais, culturais e de empreendedorismo tecnológico associados à emergente semântica web.

A economia global começa a mudar seu sistema operacional. A vivência digital imersiva, marcada pela percepção não-linear, audiovisual e em profundidades e campos novos intriga pesquisadores, mercados e governos. Diante da inovação tecnológica acelerada, a única resposta possívelé intensificar nossa capacidade de criar sistemas produtivos onde ocorram 'pari passu' processos de crescimento e distribuição de riqueza, renda e poder.

As redes digitais, operadas como processos de construção colaborativa de conhecimento e informação, podem guardar a chave para participarmos como sociedade aberta e criativa, em condições de igualdade, nos novos mercados competitivos globais.

Active Image Valor Econômico.

Imprensa catarinense: RBS expande seus domínios

O maior negócio da história da mídia em Santa Catarina foi concluído no final de junho sem qualquer cobertura jornalística local – um sinal modesto das conseqüências que a monopolização pode provocar. Quando o empresário Moacir Thomazi entregou ao Grupo RBS o cargo de presidente do jornal A Notícia, de Joinville, chegou discretamente ao fim uma transação de 50 milhões de reais cujos bastidores revelam uma intensa disputa entre os dois principais conglomerados de mídia com atuação no estado. Desde 23 de agosto de 2006, todos os diários com mais de 10 mil exemplares de tiragem impressos em Santa Catarina são da RBS, mas a concentração da propriedade não é feita só de boas notícias para o grupo: um ano depois da aquisição de A Notícia, a circulação paga do jornal caiu 17,5%. Em qualquer outro setor da economia, isso seria pauta obrigatória.

Os efeitos da disputa entre os conglomerados de mídia apareceram nas bancas, mas não nas páginas dos jornais. Entre março e setembro do ano passado, nas regiões mais populosas do estado, o Grupo RBS, afiliado da Rede Globo, e a Rede SC, do SBT, lançaram dois diários populares concorrentes – respectivamente, Hora de Santa Catarina e Notícias do Dia. Como conseqüência indireta dessa rivalidade, a RBS comprou em agosto A Notícia, seu maior concorrente no mercado tradicional, à época com circulação paga superada unicamente pelo Diário Catarinense, do grupo gaúcho. Ao final do ano, havia mais títulos locais do que nunca nas bancas de Santa Catarina, diversificação que disfarçava a concentração da propriedade nos maiores conglomerados.

O império RBS

Com dois lances estratégicos – a aquisição de A Notícia e o lançamento do Hora de Santa Catarina, diário popular vendido na Grande Florianópolis que já tem a segunda maior tiragem do estado –, a RBS eliminou um concorrente que por décadas bloqueara sua expansão na região mais rica do estado e conquistou cerca de 30 mil novos leitores do segmento popular. O grupo chegou mais perto de faturar 1 bilhão de reais por ano com suas empresas – projeto que pretende realizar em 2007, ano do cinqüentenário da RBS, a ser comemorado em 31 de agosto – e conservou o apetite para aquisições e investimentos.

Comprar A Notícia era uma antiga ambição. Durante mais de uma década, a RBS fizera sucessivas tentativas infrutíferas de conquistar o mercado de leitores do Norte catarinense. Antes da aquisição, o Diário Catarinense, principal título do grupo no estado, distribuía não mais de 5 mil exemplares em Joinville – cidade catarinense com a maior população, 496 mil habitantes (IBGE, outubro de 2006). Para tentar incrementar o relacionamento com a comunidade, o DC produzira cadernos com conteúdo local; contratara gerentes radicados na cidade; patrocinara o principal clube de futebol, o Joinville Esporte Clube; oferecera para agências e anunciantes robustos descontos sobre a tabela de publicidade (prática não exatamente comum nos veículos do grupo). Os resultados foram insatisfatórios. Até agosto do ano passado, A Notícia ainda freava a expansão da RBS em Santa Catarina.

A primeira proposta de compra do jornal pelo conglomerado, em 2001, não foi nem levada a sério, mas a última foi perfeitamente concluída. A diferença está no fôlego financeiro do grupo: depois de medidas de saneamento adotadas desde 2003 para rolar dívidas, controlar despesas e incrementar receitas, a RBS está com os cofres cheios. Em 2005, o império regional da família Sirotsky, um dos cinco maiores conglomerados de mídia do Brasil, faturou 860 milhões de reais e lucrou 93 milhões de reais – acumulando mais de 200 milhões de reais com a lucratividade dos anos anteriores. Em 2006, a receita chegou perto do primeiro bilhão. Parte dos resultados foi distribuída para os empregados com a folha de pagamento de janeiro de 2007: cada um recebeu três salários extras.

De arcas repletas, os executivos da RBS foram às compras em 2006.

Dois embates, um adversário

O lançamento do Hora de Santa Catarina e a aquisição do A Notícia são histórias entrelaçadas, nas quais a RBS enfrentou voluptuosamente um mesmo adversário: o empresário Marcello Corrêa Petrelli, diretor-superintendente da Rede SC, dona de rádios e de emissoras de televisão afiliadas ao SBT. A RBS soube, no início de 2006, que Petrelli planejava lançar um diário popular em Florianópolis – o Notícias do Dia. A informação surpreendeu o grupo, que conservava na gaveta planos semelhantes. Os executivos da RBS consideram Petrelli um amador e não gostaram da idéia de ter de correr atrás da concorrência. O vice-presidente executivo, Pedro Parente, provocou:

– E nós, vamos ficar assistindo?

Em 23 de fevereiro, quinta-feira anterior ao Carnaval, Petrelli recebeu um telefonema do presidente do grupo, Nelson Sirotsky, sondando sobre a possibilidade de uma parceria entre a Rede SC e a RBS no projeto. A idéia de aliança durou só mais um par de telefonemas e chocou-se com as ambições de Petrelli.

 

"A possibilidade de associação esbarrou no desejo de fazer o nosso projeto, no nosso desejo de sermos pioneiros", afirma o dono da Rede SC. "Se fizéssemos o jornal com a RBS, pelo know-how eles iriam fazer a gestão; não haveria sentido nós sermos sócios do negócio deles."

Um tiro de canhão

Outros empresários acalentavam planos de lançar um diário popular na Grande Florianópolis. Ser o primeiro, de fato, tinha alguma importância estratégica. O Notícias do Dia circulou em 13 de março com 4.000 exemplares e assegurou a Petrelli o pioneirismo a preços módicos: nos seis primeiros meses de operação, o empresário investiu 600 mil reais no veículo, sem a participação dos demais acionistas da Rede SC. Atualmente, imprime 7.700 exemplares por dia e vende 5.500.

A reação da RBS foi rápida e incisiva: fez correr a notícia de que também ela preparava um diário voltado para aquele segmento e, enquanto estruturava a redação e a estratégia comercial, organizou uma promoção para escolher o nome do jornal. Mais de 500 mil cupons, que davam o direito a concorrer ao sorteio de um utilitário esportivo, foram recolhidos na região. Batizado como Hora de Santa Catarina, o veículo foi apresentado ao mercado publicitário num café da manhã que reuniu pouco mais de uma centena de agências e anunciantes no auditório da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), em Florianópolis, em 28 de julho. No evento, Nelson Sirotsky parecia irritado com o atrevimento de Petrelli e elogiou o principal concorrente do Diário Catarinense, a pretexto de alfinetar o rival do Hora de Santa Catarina.

"Todos os jornais sérios do estado, como o DC e A Notícia, têm suas tiragens auditadas pelo IVC (Instituto Verificador de Circulação)", cutucou Sirotsky.

Não era, à época, o caso do Notícias do Dia, só associado ao IVC em outubro. O tom do discurso era coerente com ações de Sirotsky que a platéia ainda desconhecia: dias antes, ele telefonara ao proprietário e presidente de A Notícia, Moacir Thomazi, e marcara um encontro para conversar sobre o futuro do jornal. Era a reação da RBS a outra ação de Petrelli – um tiro de canhão que interromperia um vôo de andorinha.

Noivado e rompimento

Petrelli, o pioneiro, não ficou parado esperando a concorrência chegar a Florianópolis. Em junho, começara entendimentos com Thomazi para o lançamento, em sociedade, de edição local do Notícias do Dia em Joinville. O objetivo de Petrelli era explorar nas edições regionais do jornal a popularidade dos apresentadores dos programas de TV da Rede SC, líderes ou vice-líderes de audiência nos principais mercados do estado – como o blend de deputado estadual e apresentador Nilson Gonçalves (PSDB), eleito pela população da região Norte. A Notícia gostou da conversa porque tinha planos semelhantes para o segmento.

"Também tínhamos um projeto pronto para lançar um popular em Joinville", lembra Thomazi. "O fizemos porque houve, há algum tempo, um movimento da RBS para editar um popular aqui. Como eles refluíram na idéia, nós também deixamos ali."

O modelo do negócio foi decidido em poucas reuniões: as empresas seriam sócias em toda a operação, mas A Notícia bancaria os custos da edição local do Norte do estado e dividiria com Petrelli a despesa para o lançamento em Blumenau (terceiro município catarinense mais populoso). Em 25 de julho, uma reunião matinal fechou o acordo. Na ponta da mesa, Petrelli, feliz como um Roberto Marinho, brindou com Veuve Clicquot Ponsardin, em copos de vidro, a sociedade com Thomazi (os executivos estavam acompanhados pelo diretor de circulação de AN, Armando Tomazi, do gerente de internet e herdeiro do AN, Rodrigo Thomazi, e do diretor-geral do Notícias do Dia, Rogério Caldana.) A cena era de festa de noivado – mas a atmosfera de celebração evaporou como a perlage do champagne: menos de um mês depois, o pacto seria rompido.

"Só não tivemos tempo de assinar o contrato. Quando você vai pegar uma esposa casada é mais difícil. Agora, com uma esposa que não casou, é legítimo", brinca Petrelli.

Transparência e ética

Uma reunião em 16 de agosto, entre as equipes do Notícias do Dia e de A Notícia em Florianópolis, chegou a definir o cronograma de lançamento do popular em Joinville. O veículo seria anunciado ao mercado de anunciantes num café da manhã na Fiesc (exatamente como a RBS fizera com o Hora) e um coquetel à noite na Associação Empresarial de Joinville (Acij). O início da circulação estava programado para 2 de outubro.

Em uma semana, os planos vaporizaram-se, pois a noiva estava sendo cortejada por um rival poderoso. Naquele telefonema de julho, Thomazi e Sirotsky haviam marcado para agosto a primeira de uma breve série de reuniões que decidiria a venda de A Notícia para a RBS. Thomazi manteve Petrelli informado.

"Conversar não custa, e comecei a conversar com os dois grupos", contou o ex-dono de A Notícia, entrevistado em dezembro. "Mas a cada um eu ia dando ciência da conversa que tinha com o outro."

O comportamento não deixou mágoas.

"Thomazi foi de extrema transparência, extrema ética conosco nesse processo", elogia Petrelli. 

O valor do jornal

O primeiro encontro entre as equipes da RBS e de A Notícia, no início de agosto, discutiu as premissas da negociação. Várias possibilidades foram cogitadas, como a venda, a sociedade entre o jornal e o grupo ou outras formas de parceria. As duas últimas opções foram descartadas. Thomazi explica:

"Eu disse ‘Olha, Nelson, uma parceria com o grupo RBS para nós é ruim, porque é uma parceria com forças desiguais. A RBS é um grupo muito grande para o nosso tamanho, lá na frente a gente vai brigar’."

Restou a venda. A Notícia ficou de apresentar, no encontro seguinte, um balanço da situação financeira da empresa. Na segunda reunião, em 15 de agosto, com a presença de técnicos de controladoria da RBS, foram discutidos, previamente, os números do jornal: faturamento, despesas, dimensionamento do contencioso cível e trabalhista. Fez-se um pré-contrato. O grupo enviou auditores a Joinville para, em poucos dias, conferir as informações. A RBS admitira assumir o contencioso trabalhista e cível do jornal – um montante inferior a 5 milhões de reais, grande parte já em depósitos judiciais. Só faltava, então, definir o valor da venda.

Quando os executivos da RBS apresentaram a possibilidade de compra de A Notícia, no primeiro encontro, Thomazi perguntou-se: "Quanto vale o jornal?" Como calcular o valor de um veículo que circulava há 83 anos, com circulação paga de 32 mil exemplares em 260 municípios, faturamento de 30,3 milhões de reais em 2005, 437 empregados e um título tradicional e de credibilidade?

"Eu não tinha a mínima idéia", conta Thomazi. "Nós não tínhamos nos preparado para vender a empresa. Não sabia nem o que podia valer. Nunca fizemos uma avaliação."

A referência veio precisamente de um telefonema para Marcello Petrelli, a noiva abandonada no altar da sociedade para o lançamento do Notícias do Dia em Joinville.

"Marcello, você, que é do ramo, tem uma idéia do que pode valer?"

"Olha, Thomazi, acho que um jornal como o teu vale, no mínimo, entre R$ 40 milhões e R$ 60 milhões."

"Não recebi pressão"

Na terceira e última reunião, em 23 de agosto, fez-se a negociação que levou ao contrato. A primeira proposta da RBS, de 30 milhões de reais, apresentada no encontro anterior, foi rejeitada. Amparado nas contas de Petrelli, Thomazi pediu o dobro.

"Foram feitas muitas propostas ao longo da conversa", resume, evasivo, o ex-dono de A Notícia. "Houve muitos momentos durante a mesma reunião."

O momento-chave foi um encontro a sós entre Thomazi e Nelson Sirotsky, solicitado por este. No diálogo, o presidente da RBS apresentou os planos do grupo para, caso a compra de A Notícia não se concretizasse, lançar um jornal concorrente em Joinville. O grupo teria capital para suportar a operação deficitária do veículo durante mais de uma década. A sede da RBS TV na região, recentemente reformada, estava pronta para abrigar a nova empresa. Cortês e elegante, Sirotsky deixou Thomazi encalacrado entre as possibilidades de vender o jornal de imediato, realizando retorno para os acionistas, ou manter A Notícia sob forte concorrência – e, talvez, ter de vendê-lo no futuro por uma ninharia.

Thomazi nega ter recebido ameaças durante a negociação:

"A gente sabia que haveria um momento em que eles iriam pôr um jornal aqui. Mas a venda não foi em decorrência disso. Não recebi pressão alguma, de parte alguma, de ninguém. Nem da comunidade."

Negócio fechado

Thomazi se queixa é da ausência de sinergia com outros meios de comunicação – sinergia que viabiliza os negócios em função da redução de custos, da exposição compartilhada nas diversas mídias do mesmo grupo, da promoção de eventos e de iniciativas em comum. A Notícia tentou, sem sucesso, obter concessões de rádio e televisão, e permaneceu isolado no mercado das mídias:

"Chegamos a uma encruzilhada. Ou bem a gente se associava ao SBT, o que não eliminava a hipótese de a RBS vir com um jornal para cá… Eles tinham fôlego para bancar um projeto aqui durante dez anos, tirando fatias nossas, nos fragilizando. Aí, concluímos que o melhor seria a venda, desde que os valores fossem compensadores."

A RBS definira, dias antes, os limites para a negociação. E aumentou sua proposta progressivamente até um valor próximo de 50 milhões de reais.

"Muito mais do que o patrimônio do jornal, o que a gente avalia é o potencial futuro de geração de resultados do negócio, a força da marca, a participação de mercado", explicou, em janeiro, o diretor-geral da Unidade Jornal da RBS em Santa Catarina, Marcos Noll Barboza, escalado pelo grupo para comentar a transação.

Uma cláusula contratual impede as partes de confirmarem o valor exato do negócio. Uma projeção baseada no valor recebido por um sócio minoritário resulta na cifra de 48 milhões de reais. O capital de A Notícia era uma rara combinação de propriedade familiar com articulação política local: dois sobrenomes tinham 96,7% do capital, mas 128 acionistas detinham poder simbólico – presidentes de multinacionais com sede na região, ex-dirigentes da Fiesc, políticos: uma elite local inteira. Thomazi tinha carta-branca para negociar no horizonte daqueles valores sugeridos por Petrelli:

"Não havia, por parte da família, nenhum interesse em continuar no negócio. Articulei-me com os acionistas. Estabelecemos um valor. Tinha uma margem de negociação. Não ficou no ideal nem no mínimo."

Fechado o negócio, o governador Eduardo Pinho Moreira (PMDB) foi informado por telefone, por Sirotsky e Thomazi, logo após o encerramento da reunião. Na semana seguinte, a RBS enviou uma equipe que passou quase um mês na sede de A Notícia checando detalhadamente as informações contábeis e outros aspectos estratégicos e operacionais. O contrato foi assinado em 22 de setembro. A RBS assumiu A Notícia em 1º de outubro.

O conquistador e a província

Houve alguma resistência em Joinville, mas o desconforto político foi contornado com habilidade. O mesmo valor por ação oferecido à família foi estendido aos demais acionistas; até o final do ano, apenas oito dos minoritários ainda não haviam vendido sua parte – porque não tinham sido encontrados por Thomazi ou porque estavam com problemas de saúde. Antes de assumir o jornal, os executivos da RBS viajaram para participar de uma reunião da Associação Empresarial de Joinville (Acij) – praticamente uma assembléia de acionistas minoritários de A Notícia.

Thomazi, ex-presidente da entidade de classe, fez um breve relato da transação e assegurou que o controle do jornal não estava sendo vendido a um "grupo de aventureiros ou com interesses meramente políticos", mas a um conglomerado profissional da área da comunicação. Admitiu que haveria alterações nos quadros profissionais da empresa, especialmente na direção. Mas assumiu a condição de "avalista do processo": obedecendo a uma das condições do contrato, ele ficaria na presidência do jornal até 28 de fevereiro de 2007 – prazo estendido até o final de junho. (Outra condição é uma quarentena de cinco anos, se Thomazi quiser voltar ao mercado de comunicação.) O ex-proprietário minimizou a venda, alegando tratar-se só de "mudança de controlador acionário", não da "identidade" do jornal:

"A RBS é tão joinvilense quanto todos os empresários que estão aqui e não permitirá que o jornal se desvie de sua missão, que é a defesa da Joinville e de sua gente."

Cerca de 100 empresários acompanharam em seguida a longa exposição de Sirotsky, que estava acompanhado de sete executivos da RBS – incluindo-se os três herdeiros dos fundadores do grupo (além dele, seu irmão Pedro Sirotsky e o primo, Sérgio Sirotsky) e o vice-presidente Pedro Parente (ex-ministro do governo FHC). Entronizado por Thomazi na província, o conquistador Sirotsky disse encarar como "natural a preocupação com o significado da transferência do controle acionário do jornal". Assegurou que a motivação fora, essencialmente, empresarial, observada a dimensão do mercado e a oportunidade que se abria ao grupo:

"A Notícia só vale esse investimento porque é um jornal que em seus 83 anos de atividade refletiu os anseios, aspirações e a realidade de sua comunidade. O jornal vai continuar sendo joinvilense, um veículo identificado com a cidade e a região norte catarinense."

Sirotsky terminou seu show com um estranho convite para uma festa que só acontecerá daqui a 16 anos: a do centenário de A Notícia, no dia 24 de fevereiro de 2023. Ninguém da platéia recusou. Semanas depois, a RBS impôs ao jornal a primeira mudança significativa de posicionamento no mercado: trocou o provocativo slogan "catarinense de verdade" por "traduz o seu mundo", mais coerente com o projeto do grupo gaúcho.

Perda de 6 mil leitores

"Foi uma transição muito bem sucedida", reconhece Thomazi. "A gente fez a coisa muito transparente com a comunidade política e empresarial. Há aquele sentimento de perda, que a gente também tem. Mas A Notícia apenas mudou de dono."

A sinergia já cortou pela metade o número de empregos no jornal. Em seis meses, a RBS demitiu 170 dos 437 empregados de A Notícia – e os cortes continuaram. Em 5 de janeiro, precisamente às 14 horas, os telefones da linha direta com o assinante (0800475454) passaram a tocar em Porto Alegre, onde está centralizada a operação de telemarketing e atendimento ao cliente do grupo. Foram eliminadas equipes inteiras de distribuição e comercialização das sucursais.

A guilhotina poupou jornalistas: apenas 15 repórteres ou editores foram demitidos de A Notícia desde 1º de outubro, segundo o sindicato da categoria. Petrelli aproveitou alguns deles. Com um grupo de profissionais que havia se desligado espontaneamente de A Notícia, a Rede SC lançou em Joinville o Notícias do Dia, em 6 de novembro. Vende 4.500 exemplares por dia.

"A cidade está se sentindo órfã com a venda de A Notícia", afirma Petrelli.

Parece exagero, mas A Notícia já perdeu no mínimo seis mil leitores: a circulação média diária caiu 17,5%, de 31,3 mil exemplares para 25,8 mil, segundo o IVC. Movimento semelhante ocorreu nos anos 1990, quando a RBS comprou o Jornal de Santa Catarina, de Blumenau; naquele caso, depois da transformação do formato do diário de standard para tablóide, o número de assinantes tornou a subir.

Concorrente condena dumping

A compra de A Notícia foi fechada cinco dias antes do início da circulação do Hora de Santa Catarina em Florianópolis. O projeto do jornal popular exigiu pouco investimento da RBS. O lançamento beneficiou-se da sinergia entre as diversas mídias na capital catarinense: uma emissora de TV aberta, dois canais de TV a cabo, duas emissoras FM e uma AM. Para a campanha de lançamento, a RBS só precisou pagar panfletos e outdoors.

A redação do Hora ocupa apenas uma sala, na sede do Diário Catarinense. O jornal é vendido ao preço promocional de 25 centavos– seu irmão mais velho e idêntico, o Diário Gaúcho, lançado pelo mesmo valor no ano 2000 em Porto Alegre, custa hoje 60 centavos. Não bastasse o preço irrisório, o jornal distribui prêmios a quem coleciona os selos impressos na capa: 60 selos valem um kit caipirinha, um jogo de panelas ou de travessas, um faqueiro. A concorrência não gosta.

"O monopólio não vem da compra de A Notícia", critica Petrelli. "Isso é legítimo. A decisão de querer monopolizar o mercado vem de querer agredir a concorrência, de impor um produto subsidiado, com dumping, para inviabilizar outros players no mercado. Acho que a RBS se equivoca quando faz isso. Se equivoca em depreciar o produto jornal. Ela dá uma demonstração real de querer nos inviabilizar.

A RBS ignora as acusações, com a soberba de quem já conta quase sete vezes mais leitores no mesmo segmento de mercado que Notícias do Dia. Preparado para suportar prejuízo com o Hora por pelo menos 20 meses, o grupo se surpreendeu com o retorno dos leitores e dos anunciantes. O jornal foi projetado para vender em torno de 20 mil exemplares diariamente, mas a circulação, vitaminada pelas promoções, já ultrapassou os 35 mil.

Espaço de sobra

"Muita gente que não lia jornal está lendo a Hora", celebra Marcos Barboza. "Esse é o grande mérito, até mesmo em termos de importância social do jornal, de trazer informação, fortalecer o senso crítico, a cidadania. Nosso objetivo com a Hora é de longo prazo. É formar uma base de leitores. Muitos deles vão passar a ter um nível de exigência maior sobre o jornal e vão passar a ler o Diário Catarinense."

Vendido a 2 reais em dias úteis, o DC, como ocorrera com Zero Hora em relação ao Diário Gaúcho, não perdeu leitores para o Hora de Santa Catarina. E o popular conquistou anunciantes mais rapidamente do que o previsto, conforme Barboza:

"A gente chegou, nos primeiros meses, num nível de faturamento publicitário [previsto] talvez para o segundo ano do jornal. Em dezembro de 2006, tivemos um faturamento muito acima do esperado."

O próprio Notícias do Dia festeja a receptividade positiva do mercado ao jornal popular. Petrelli afirma ter alcançado o break-even em setembro, seis meses depois de começar a circular em Florianópolis. Na véspera do lançamento do Hora de Santa Catarina, os diretores do Notícias do Dia decidiram manter o preço de capa em 50 centavos. O jornal perdeu 25% dos leitores no dia seguinte, mas se recuperou rapidamente.

"Três semanas depois da Hora, nós havíamos crescido 15%", calcula Petrelli. "Quando a RBS entra [nesse mercado], dois benefícios acontecem. Aumenta o número de leitores porque aumenta a divulgação. E também agrega comercialmente, ao aumentar a credibilidade do jornal popular. O líder tem que promover o crescimento do bolo."

O reconhecimento não ameniza a verve de Petrelli. Subitamente galgado ao posto de rival que merece respostas do líder, ele ataca a RBS:

"Nós não somos um poder", provoca, evocando o espectro autoritário que acompanha certa visão sobre o grupo. "Somos uma empresa que está a serviço da sociedade organizada. Nosso papel não é impor nossa verdade, nossa percepção; é criar um fórum para discussão e isso só acontece quando se tem espaço e comunicadores. Eu não estava procurando enfrentar a RBS. Ela é que veio ao nosso patamar para nos enfrentar. E é claro que agora eu tenho de me defender. A RBS criou um concorrente."

No início deste ano, o executivo Marcos Barboza afirmava que, por enquanto, o Notícias do Dia de Joinville continuaria sem concorrente em seu segmento: a RBS não pretendia lançar o Hora de Santa Catarina no Norte do estado. Segundo o diretor, novas aquisições não estão nos planos do grupo:

"A gente começou o ano [de 2006] com dois jornais e terminou com quatro. Nosso objetivo [em 2007] é consolidar a Hora, fortalecer sua relação com os leitores, e fazer um bom trabalho em A Notícia. Não está em nossos planos lançar a Hora em Joinville, nem outro jornal lá. O objetivo da RBS é otimizar as suas operações atuais nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e priorizar investimentos relacionados a novas plataformas de distribuição de informação e conteúdo."

Os oito jornais do grupo (quatro são do Rio Grande do Sul) imprimem quase meio milhão de exemplares por dia – fossem um só jornal, seriam, disparado, o maior do país. A queda contínua na circulação de A Notícia no primeiro semestre de 2007 reacendeu os planos de editar um popular em Joinville. Depois das demissões, há espaço de sobra na sede do jornal.

* Jacques Mick é jornalista, professor da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, Joinville, SC

Inclusão digital posta em risco por decisão da Anatel

Esta coluna tem a triste incumbência de informar a todos os interessados que o senhor Guglielmo Marconi faleceu. Tudo bem, o fato se passou há 70 anos, mas para algumas pessoas, especialmente na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), parece que Marconi ainda está bem vivo.

Segundo a história oficial [1], Marconi teve a idéia de usar as ondas hertezianas para a comunicação, inventando, portanto, o rádio. Nos tempos de Marconi, contudo, a gestão do espectro eletromagnético seguia determinados requisitos técnicos, que tornavam o espaço disponível bastante escasso e assim diminuindo o número possível de emissores.

Ocorre que nos últimos 70 anos, como todos sabemos, as tecnologias de comunicação mudaram muito, especialmente a partir da digitalização do espectro eletromagnético. Isso possibilitou o surgimento de tecnologias de “rádio inteligente”. Fazendo uma analogia, estes novos receptores são mais ou menos como o ouvido humano numa festa. Se forem respeitadas regras mínimas de convivência, é perfeitamente possível que todos os convidados falem ao mesmo tempo e que todos se escutem. O ouvido humano sabe separar a voz do interlocutor à nossa frente daquelas demais conversas, que ficam apenas como um ruído de fundo. Quando o interlocutor é alguém que muito nos interessa (a pessoa amada, por exemplo), é como se ninguém mais estivesse falando, exceto aquela única pessoa. Não é necessário, portanto, que todos façam silêncio e que apenas uma pessoa fale de cada vez.

No rádio inteligente ocorre a mesma coisa. Várias emissões podem trafegar pelo mesmo espaço e nosso aparelho saberá descartar o que não lhe interessa e se fixar apenas no sinal que buscamos. Essa tecnologia permite acabar com a necessidade de termos que alocar faixas de espectro específicas para cada emissor. Consequentemente, com o fim de uma reserva do espectro, aumenta-se bastante o espaço disponível.

Baseado nessas novas tecnologias, surge um movimento mundial que luta pela chamado “espectro aberto”. Ou seja, pelo fim da necessidade de que todo emissor tenha que possuir uma outorga para fazer suas transmissões. Se já não há escassez, por que a necessidade de licenças do Estado?

Infelizmente, a Anatel não concorda com estas idéias. Não satisfeita em manter dezenas de licenças (STFC, rádio, TV aberta, cabo, DTH, MMDS, SLP, SCM, SMP, etc), a Anatel resolveu inovar. Agora, os roteadores de Internet sem fio terão que ter licença de uso. Esses roteadores ocupam hoje uma faixa do espectro que está dispensada de licenciamento. Não satisfeita em não ampliar as faixas não licenciadas, a Anatel resolveu aumentar a necessidade de licenças.

Segundo a consulta pública 809 (de alteração do Regulamento sobre Equipamentos de Radiocomunicação de Radiação Restrita), encerrada no dia 27 de agosto (e tramitada quase em segredo), os roteadores sem fio que estiverem ligados a redes que ultrapassem os limites de um imóvel terão que obter licenças e pagar uma taxa de R$ 1.340,00 anuais. Vale lembrar que estes roteadores são usados em várias redes comunitárias que começam a se espalhar pelo país e que visam garantir acesso banda larga sem fio à comunidades que foram esquecidas pela lógica de mercado das operadoras de telecomunicações. Algumas dessas  redes comunitárias se utilizam de uma moderna tecnologia chamada wimesh, que nada mais é do que um conjunto interligado de roteadores. Pois, cada um destes roteadores das redes wimesh terá que arcar com uma taxa de absurdos R$ 1.340,00, inviabilizando qualquer experiência comunitária de inclusão digital e, por tabela, beneficiando as teles.

O Coletivo Intervozes, em conjunto com a RITS e a Associação Software Livre.org, redigiu resposta à consulta pública, solicitando o cancelamento dessa proposta nefasta a qualquer política de inclusão digital. Agora, vamos começar uma campanha pública de denúncia dessa proposta da Anatel. 

E cabe a todos nós lutarmos contra mais este absurdo.


[1] Vários historiadores comprovam que, antes de Marconi, o padre gaúcho Roberto Landell de Moura já transmitira a voz humana através de ondas de rádio.