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Empresas podem boicotar TV Digital Interativa do Brasil

Por Rafael Diniz e Thiago Novaes*

Há cerca de dois meses, foi publicado neste blog o artigo “A Reinvenção da TV Digital no Brasil“, de nossa autoria. Ali, levantamos as grandes potencialidades da adoção do perfil C de novos receptores para TV Digital, a serem distribuídos para 14 milhões de domicílios beneficiados pelo Bolsa Família.

Trata-se de uma oportunidade ímpar de realizar boa parte das premissas estabelecidas pelo Decreto Presidencial 4.901, de 26 de novembro de 2003, que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital e de enfatizar uma plataforma de comunicação sob seus aspectos de cidadania, voltada para a população menos favorecida, com acessos a novos serviços, mais conteúdos, e com interatividade.

Esses conversores poderão colocar o Brasil como primeiro país no mundo a levar a internet para sua população de baixa renda através da TV Digital, permitindo a chamada “interatividade plena” na casa das pessoas. Tal medida pode permitir incluir digitalmente uma expressiva parcela da população que necessita de mais acesso à informação, e que não dispõe deste acesso por outros meios. Esta é uma decisão política que já foi tomada, e que contou com o apoio do atual ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini.

Entretanto, as decisões do ente responsável pela migração da TV analógica para o Sistema Brasileiro de TV Digital (o SBTVD) estão em permanente disputa. Presidido por Rodrigo Zerbone, Conselheiro da Anatel, o Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV (Gired) é formado por representantes de empresas privadas de televisão e por operadoras de telefonia, sem qualquer representação da sociedade civil.

Nesta sexta-feira, dia 31, o Gired decidirá as especificações do conversor de TV Digital que será distribuído para aproximadamente um quarto da população brasileira. Os interesses tanto da indústria de receptores, que visa maximizar o lucro e deixar o conversor o mais simples possível, quanto os das empresas de radiodifusão comercial, que querem a maior parte dos bilhões de reais da verba para a migração alocada para propaganda, coincidem com os das empresas de telecom, que pressionam para que o processo de migração aconteça no cronograma, de forma que a banda dos 700 MHz seja liberada para uso em telefonia móvel o mais rápido possível.

Neste contexto, a sociedade civil brasileira, que não tem voz no Gired, e representantes do governo e de emissoras públicas de comunicação já começam a ver o pior no fim do túnel.

Existe a chance deste lobby fortíssimo de empresas conseguir derrubar o suporte à interatividade plena no conversor. Se isso ocorrer, contrariaremos o que foi aprovado para os conversores de TV Digital a serem distribuídos e o que vem sendo sustentado politicamente por membros do Poder Executivo brasileiro, como Berzoini e o secretário de Comunicações Eletrônicas, Emiliano José.

Um requisito para a interatividade plena é o acesso à Internet. No entanto, representantes da indústria dizem que as normas do SBTVD, assim como a especificação do conversor, não são factíveis.

Dentre as demandas da sociedade civil estão a inclusão de drivers (software que permite a ativação de um dispositivo) para modems 3G/4G e adaptadores WiFi com porta USB. O lobby das empresas, no entanto, afirma que esta inclusão é difícil e que não seria factível para instalação nos receptores. Pois bem, os conversores rodam Linux, e o Linux já possui uma infinidade de drivers para esses dispositivos. Como pode ser difícil a simples adição dos drivers que já acompanham o Linux no firmware do conversor?

A norma brasileira que trata do receptor (ABNT 15604) é clara no que tange à interatividade plena. No capítulo 15 da norma, intitulado “Comunicação interativa (bidirecional) – Canal de interatividade”, consta explicitamente que o receptor deverá suportar a instalação de novos drivers. Para um fabricante de modem ou adaptador WiFi, a questão da geração de um driver compatível com o conversor depende do acesso ao código fonte exato do Linux que está em uso no aparelho.

Isso não deveria ser um problema, pois como o Linux é software livre, licenciado pela GPL v2 (GNU Public License), a empresa que irá produzir o conversor é obrigada a liberar esse código fonte. No entanto, ao que parece, o lobby das empresas parece ignorar esse fato, agindo em desrespeito às licenças e na contramão do discurso de inclusão digital defendido pelo Ministério das Comunicações.

O mínimo que o fabricante do conversor deverá prover é um kit de desenvolvimento para a produção de drivers que permita que adaptadores 3G/4G e WiFi de hoje, e os que forem lançados no futuro, possam ser suportados pelo conversor de TV Digital. O ideal seria que todo o código fonte do receptor fosse liberado, de forma que evoluções independentes do software do receptor pudessem ser desenvolvidas.

Considerando o imenso potencial de desenvolvimento social que a TV Digital Interativa permite à população brasileira, previsto igualmente no decreto 4.901 que instituiu o SBTVD, é fundamental que Berzoini, seus secretários e conselheiros da Anatel, em especial o sr. Rodrigo Zerbone, que preside o Gired, façam valer a decisão da presença da interatividade plena nos receptores, e sigam na íntegra as normas do SBTVD.

*Rafael Diniz é mestre em informática pela PUC-Rio e Thiago Novaes é doutorando em Antropologia na UnB.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital. 

Democratização da comunicação: o que aprender com nossos vizinhos?

Por André Pasti*, de Quito

Não há democracia genuína sem democratizar os meios de comunicação. A afirmação, feita pelo sociólogo argentino Atilio Borón nesta quinta-feira (23/7), vai mais longe: para ele, é necessário favorecer o surgimento efetivo de mais “vozes” na mídia a partir dos povos, para evitar que se substitua a atual “ditadura da informação dos grandes monopólios privados” por uma nova “ditadura de tecnocratas do Estado”, ainda que sejam bem-intencionados e com o “coração de esquerda”. Borón fez a palestra de encerramento do primeiro Congresso Internacional “Comunicação e Integração Latino-Americana desde e para o sul”, realizado esta semana em Quito, em comemoração aos dez anos da Telesur, completados nesta sexta-feira.

Ainda que a oligopolização da mídia seja uma situação histórica e estrutural na região, desde a década passada há uma urgência ainda maior pela democratização de fato. Isso porque surge, segundo vários participantes do evento, um novo tipo de golpe de Estado no continente: o golpe midiático.

Os meios de comunicação na América Latina se converteram em partidos políticos orgânicos, articulando politicamente a direita, concordam Borón e Ignacio Ramonet, jornalista e professor espanhol que fez a conferência de abertura do congresso.

Para Ramonet, a maior batalha enfrentada na América Latina atualmente é a batalha midiática. Ambos lembraram dos casos de Honduras (2009), do Paraguai (2012) e de ataques mais recentes contra governos do Brasil e da Argentina.

O foco do evento foi o intercâmbio de experiências sobre a formulação das políticas de comunicação na América Latina e sobre a luta em defesa da comunicação como um direito humano. Para o Brasil, esse diálogo é muito importante.

O país vive, conforme o colombiano Omar Rincón, uma situação de extremos: tem a melhor lei de internet (o Marco Civil) e a pior situação de regulação da “velha mídia”. A avaliação é repetida por Osvaldo León, do México, para quem o Brasil está “na retaguarda da democratização dos meios” no continente.

Se agora estamos na retaguarda, há que se avaliar os aprendizados possíveis com políticas que vêm sido realizadas nos últimos anos em países como Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela. O Equador, anfitrião do evento, já conta com muitas experiências a compartilhar.

Em 2013, o país aprovou sua lei orgânica de comunicação, sob muitos protestos do empresariado midiático. Não é por menos: a lei combate os oligopólios do setor, estabelecendo um limite rígido à propriedade cruzada – apenas uma licença de rádio AM, FM e de TV por pessoa física ou jurídica. Além disso, a nova norma prevê uma distribuição proporcional dos espectros de radiofrequência, com reserva para a comunicação comunitária (34%), estatal (33%) e para a mídia comercial (33%).

A nova regulação prevê, ainda, a descentralização da publicidade oficial – uma das principais formas de financiamento da mídia de pequeno porte. Há, também, medidas para incentivar a produção audiovisual nacional e produção independente local.

Para a comunicação comunitária, algumas “ações afirmativas” estão previstas na nova legislação, como crédito preferencial para a criação desses meios e para a compra de equipamentos, isenções de impostos para a importação de aparelhos e acesso à capacitação para a gestão técnica, administrativa e de comunicação.

Para garantir a aplicação da lei, foi criado um Conselho de Regulação e Desenvolvimento da Informação e da Comunicação (CORDICOM), com participação social. Para fiscalizar e promover o direito à comunicação, criou-se uma Superintendência da Informação e da Comunicação (SUPERCOM). Esse arcabouço institucional contrasta com o do Brasil – onde o sentido das instituições ligadas à comunicação não é a defesa da democratização da palavra e os conselhos estão longe de representar a população.

O país avançou, também, na comunicação estatal. Surgiu a agência de notícias Andes, além TV e rádio públicas e um jornal impresso, El Telégrafo, separados dos veículos governamentais já existentes – como El Ciudadano.

A programação educativa da rede pública, inspirada na dinâmica dos canais estatais argentinos, é concebida pelo Ministério de Educação, mas produzida em parceria com empresas audiovisuais do país e orientada pelo pluralismo. Isso contribui para a promoção de novos agentes comunicativos, que poderão atuar para além dos canais estatais. Já a da mídia governamental se concentra de fato nas ações do Poder Executivo.

O reconhecimento do direito à comunicação e da necessidade de promover ativamente a liberdade de expressão dos que nunca tiveram voz são alguns dos aprendizados dos processos – ainda bastante recentes – de democratização da comunicação no Equador.

Iniciativas de integração no continente

Desde o golpe de Estado frustrado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002, orquestrado pelos oligopólios de mídia do país, ficou notória a necessidade de criar meios que permitissem a circulação de outras informações e outros sentidos. A iniciativa mais significativa foi o surgimento, três anos depois, do canal Telesur.

A Telesur é um canal multinacional de iniciativa do governo venezuelano em conjunto com governos de Cuba, Uruguai e Argentina, e com a participação posterior de Bolívia, Equador e Nicarágua. Ignacio Ramonet considera o maior mérito da Telesur a apresentação de outra visões sobre os acontecimentos da América Latina e do mundo.

O conteúdo do canal não se restringe aos países-membros: os conflitos militares com as FARC, na Colômbia, o ataque à Líbia pela OTAN, o golpe em Honduras e a crise financeira da Grécia são exemplos de coberturas importantes . Além do décimo aniversário, a Telesur celebrou, nesse dia 24 de julho, um ano de produção de conteúdos em inglês.

Outra importante iniciativa de integração da comunicação é a União Latino-Americana de Agências de Notícias (ULAN). A entidade, que surgiu em 2011, reúne todas as agências de notícias estatais ou públicas existentes nesses territórios: Agencia Venezolana de Noticias, Prensa Latina (Cuba), Agencia Andina (Perú), Agencia Boliviana de Información, Agência Brasil (da Empresa Brasil de Comunicação, EBC), Notimex (México), Agencia Guatemalteca de Noticias, Agencia de Información Paraguay, Andes (Equador) e Télam (Argentina).

Seu principal objetivo seria “promover a democratização da comunicação na América Latina e contribuir para a integração regional dos povos”. Este ano, a ULAN lançou o portal de notícias Ansur.am, reunindo informações de todas as agências.

Os países da América Latina devem atentar para a importância estratégica da comunicação para a integração regional. Criar iniciativas que façam circular outros discursos e outros sentidos é vital para contrapor a violência exercida pela monopolização da informação. É vital estabelecer um diálogo permanente entre os agentes que defendem essa pauta na América Latina, para o fortalecimento das iniciativas em defesa do direito à comunicação.

O congresso em Quito representou um importante momento desse diálogo. Sua próxima edição, prevista para julho do próximo ano, também no Equador, terá como tema a comunicação popular e a participação social – importante desafio para o avanço da agenda da democratização dos meios de comunicação.

* André Pasti é geógrafo, mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas e doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

EBC: comunicação pública ou governamental?

Há um mês, a repórter Cristiana Lobo, da GloboNews, informou, “em primeira mão”, a notícia, ainda não confirmada pelo Palácio do Planalto nem publicamente pela diretoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), de que haverá mudanças na “comunicação do governo”.

A jornalista anunciou que Nelson Breve, atual diretor presidente da EBC, deve voltar a coordenar a Secretaria de Imprensa da Presidência da República; que o atual secretário de Imprensa, Olímpio Cruz, passará a dirigir a programação da EBC; e que Américo Martins, atual diretor geral da EBC, será o novo diretor-presidente da empresa.

Ainda segundo o “off” dado pela GloboNews, as mudanças não ficarão apenas nos cargos de diretoria. Há fontes dentro da EBC que confirmam que mais gente da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) está sendo cotada para aterrissar (ou flutuar) na comunicação pública.

Mantém-se, assim, a já conhecida dança das cadeiras entre o órgão responsável pela comunicação governamental e a direção da empresa pública de comunicação – como já ocorreu com o (ainda) atual presidente da EBC Nelson Breve; com o antigo diretor geral Eduardo Castro; com o atual vice-presidente, Sylvio de Andrade; a atual secretária executiva Regina Silvério; e tantos outros antigos e atuais diretores, assessores e superintendentes da EBC, que fizeram o mesmo caminho, passando pela mestra catraca.

Assim, uma vez mais, a Secom contribui para consolidar a já tão questionada, deslegitimada e promíscua relação entre comunicação pública e governo, num modelo em que não há espaço para o florescimento de uma real e imprescindível autonomia da empresa pública frente ao Planalto.

Tal autonomia, vale lembrar, está legalmente escrita nas primeiras linhas da lei de criação da EBC, que ratifica a separação entre os poderes público e estatal de comunicação previstos na Constituição brasileira. Ela é base para o sucesso e pleno funcionamento de emissoras públicas em todo o mundo. Basta olhar os clássicos exemplos da inglesa BBC ou dos canais da France Télévisions: governo de um lado, comunicação pública de outro, em respeito aos cidadãos e ao interesse público (e não de governo) que deve reger tais espaços.

É sabido que a Lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008, dá ao Palácio o direito de nomear a presidência da EBC. Não se questiona a legalidade destas decisões, mas sim sua legitimidade e pertinência. E, ainda, a forma como o Palácio do Planalto, uma vez mais, opta por fazer mudanças na EBC: sem qualquer consulta aos funcionários da empresa, sem qualquer diálogo com a sociedade, e dando o “furo de reportagem” nas mãos da imprensa comercial.

A Secom conhece a importância de mecanismos de gestão da EBC, como seu Conselho Curador, que poderia ser acionado para tornar mais participativas e democráticas as escolhas feitas para a empresa. Entretanto, parece ter optado, mais uma vez, pelo automatismo da dança das cadeiras.

Fica ainda mais difícil compreender a decisão do governo em mudar a direção da EBC antes mesmo do término da gestão Nelson Breve, previsto para novembro, quando o próprio Conselho Curador da EBC convocou, para o próximo mês de agosto, um seminário para discutir justamente o modelo institucional da empresa. Em vez de aproveitar o espaço para debater coletivamente um perfil para a ocupação dos cargos da maior empresa de comunicação pública do País, o processo corre seu já tradicional rumo, na contramão de um projeto de comunicação pública autônoma, nunca antes assumido nestas dimensões por qualquer governo no Brasil, e que poderia hoje ser visto como um legado das últimas gestões para a democracia do País.

Não se trata de criticar os nomes escolhidos nessa sucessão. O atual diretor-geral da EBC, Américo Martins, cotado para a presidência, está inclusive entre os poucos diretores da empresa que tem experiência em comunicação pública e que não vieram da Secom ou de outros órgãos do governo.

Mas mudanças superficiais, como quem passa um verniz ou reboco, pouco atenderão aos desafios colocados para a EBC. Não adianta mudar a cabeça e ter uma calda pesada, amarrada, dura e espinhosa. Não dá para fazer comunicação pública sem um formato de gestão verdadeiramente pública.

E é porque defendemos, desde o início, que processos democráticos e participativos são fundamentais para o êxito da EBC que acreditamos que este projeto pode – e vai – dar certo. É só querer.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Conselho de Comunicação do Congresso: participação para inglês ver

Por Bia Barbosa e Mariana Martins*

O desfile de golpes praticados pelo Congresso Nacional contra os interesses da sociedade parece não ter fim. Nesta quarta-feira 15 tomou posse, com a presença dos presidentes da Câmara e do Senado, a nova gestão do Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão auxiliar do Parlamento para projetos relacionados às comunicações. Após praticamente um ano sem funcionamento do CCS, foram empossados conselheiros que, na realidade, não foram eleitos.

Exato. A sessão do Congresso do dia 8 de julho, que supostamente escolheu os 13 titulares e suplentes do órgão, não registrou quórum mínimo de 257 deputados e 41 senadores para deliberação – no dia, menos de 90 deputados e apenas 14 senadores estavam reunidos. Segundo a Lei 8.389, de 30 de dezembro de 1991, que cria o CCS, o Conselho deve ser eleito em sessão conjunta das duas Casas. Ainda contrariando o Regimento Comum do Congresso Nacional, a pauta desta votação não foi distribuída aos parlamentares com a antecedência de 24h, bem como as indicações não foram submetidas à votação secreta em plenário.

Como se não bastasse a flagrante violação de dispositivos constitucionais e legais, ainda foram nomeados para uma das vagas destinadas à sociedade civil dois ministros de Estado: Henrique Eduardo Alves (Turismo – titular) e Aldo Rebelo (Ciência e Tecnologia – suplente). Entre os ocupantes de outras vagas para a sociedade civil estão um ex e um atual servidor da Secretaria de Comunicação do Senado e a diretora do Instituto Palavra Aberta, que só tem organizações empresariais como associadas. Vale lembrar que o setor empresarial já possui vagas próprias na composição do CCS.

Em nota pública, organizações e movimentos com o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) afirmaram que “o Congresso Nacional dá um novo golpe contra a sociedade civil, desrespeitando por completo este espaço de participação social e demonstrando não ter discernimento nem mesmo para reconhecer, de forma transparente e republicana, as organizações sociais que atuam no campo das comunicações no país”.

Para tentar barrar tamanha afronta, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), juntamente com outros parlamentares e entidades sociais, deu entrada em um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) para anular o ato que nomeou os novos integrantes do Conselho. A posse realizada nesta quarta, portanto, encontra-se sob judice. Os autores da ação defendem que o processo que levou à homologação da nova composição do CCS foi ilegítimo, inconstitucional e antirregimental. O Supremo deve pronunciar-se após o recesso do Judiciário.

Neste cenário, o professor e pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom) da Universidade de Brasília (UnB), Murilo César Ramos, um dos indicados como suplentes para as vagas da sociedade civil, renunciou à sua indicação e não tomou posse, para não legitimar o processo.

O mesmo, no entanto, não aconteceu com os demais indicados, que ocuparam seus assentos de maneira vergonhosamente silenciosa. Nem mesmo o protesto das entidades signatárias do mandado de segurança, realizado durante a cerimônia de posse no Salão Nobre do Senado, foi suficiente para constranger os novos conselheiros. Por ordem do presidente da Casa, os cartazes – que diziam “Sociedade civil excluída do Conselho de Comunicação Social: #GolpenoCCS” – foram recolhidos. Pasmem, na posse do Conselho de Comunicação Social, é vedada a liberdade de expressão; é vedado o direito de, mesmo silenciosamente, manifestar-se.

A sessão seguiu, sem que nenhum dos conselheiros fizesse menção ao fato. Justo eles que lá estão para defender, de saída, a liberdade de expressão e o direito à informação, ambos “garantidos” na Constituição Federal.

Em entrevista concedida à imprensa após a posse, o ministro Aldo Rebelo se defendeu, alegando que não foi escolhido como representante do governo, mas como jornalista. “Sou jornalista, pago o sindicato e a confederação há mais de 30 anos. Portanto, acho que tenho legitimidade para participar. A legitimidade é conferida pela lei. Não houve nenhuma violação. Os membros do Congresso escolhem. Há uma eleição. Portanto, não há irregularidade”, afirmou.

OAB na presidência

Após a sessão solene de posse, teve início a reunião que elegeu o presidente e vice-presidente do Conselho. Foram escolhidos para dirigir o órgão o advogado Miguel Ângelo Cançado, representando a OAB, e Ronaldo Lemos, pesquisador. Neste momento, o representante dos trabalhadores radialistas, Nascimento Silva, manifestou-se sobre o fato de a eleição do CCS estar sendo questionada na Justiça e de ministros de Estado terem ocupado vagas da sociedade civil. Sua fala, tampouco, ecoou entre seus pares. Todos mantiveram-se surdos a um mandato que já começa falido em sua representatividade.

Desde seu início, o Conselho funciona sem critérios claros para sua composição, sobretudo no que diz respeito às cinco vadas da sociedade civil. Por isso, em abril de 2014, um significativo conjunto de entidades, que acompanham de perto o trabalho do Conselho e reconhecem sua importância para o diálogo com a sociedade sobre assuntos estratégicos para o país, lançou uma plataforma defendendo maior transparência e participação no processo de escolha dos representantes do Conselho de Comunicação Social.

Neste documento, foi proposto que, entre os critérios que o Congresso deveria considerar para indicar os representantes da sociedade civil, deveria constar justamente o fato do conselheiro/a ser representante de meios comunicação comunitários, universitários e públicos ou de organizações atuantes no tema das comunicações – visando, justamente, a garantia da pluralidade no âmbito do órgão. Na ocasião, também foi defendida como premissa a equidade nas questões de raça, gênero e regionalização dos representantes. Com base nestes critérios, foram indicados, com o apoio da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom), da Câmara dos Deputados, um conjunto representativo de nomes.

Nesta quarta-feira, uma maioria de homens brancos, que defendem interesses privados, passou a compor a nova gestão do CCS.

* Bia Barbosa e Mariana Martins são jornalistas e integrantes do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Programas policialescos: a legitimação da barbárie

Por Bia Barbosa*

 “87% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal”
Datafolha, 24 de abril de 2015

“A Rocam está em cima! Atira, meu camarada! É bandido!”
Cidade Alerta, 23 de junho de 2015

“Livres para matar: Redução da maioridade penal é rejeitada por cinco votos”
Brasil Urgente, 1º de julho de 2015

“Esses são os estupradores. Dos cinco, três são menores de idade, com 14, 15 e 16 anos”
Brasil Urgente, 3 de julho de 2015

“Brasil tem um linchamento por dia, não é nada excepcional”
El País, 8 de julho de 2015

Já passou da hora de os setores efetivamente democráticos da sociedade repudiarem com seriedade aquilo que, todos os dias, invade nossa casas e nos expõe ao que há de mais bárbaro na programação da televisão brasileira: os chamados programas policialescos. Por horas a fio, ao vivo, durante o dia, assistimos a um desfile de cadáveres, agressões, suspeitos achacados em delegacias, vítimas expostas e, invariavelmente, discursos contrários aos direitos humanos e em defesa da violência policial, dos justiçamentos e, claro, da redução da maioridade penal.

Quem acha que chegamos ao índice de um linchamento por dia ou a 87% da população apoiando o encarceramento juvenil sem a legitimação dessas práticas por tais programas é porque: 1. Não assiste televisão aberta e não sabe como esse tipo de programação domina a grade das emissoras ou 2. Prefere acreditar que o conservadorismo crescente no País não passa por aquilo que se consome cotidianamente na tevê.

Pesquisa realizada pela Andi, em parceria com o Intervozes: Artigo 19 de Ministério Público Federal revelou os principais tipos de violação de direitos praticados pelos policialescos: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência, à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescentes em conflito com a lei; violação do direito ao silêncio; tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. Tudo de acordo com a legislação atualmente em vigor no Brasil, com os tratados e convenções internacionais ratificados pelo País – o que falar então do Código de Ética dos Jornalistas… – e com exemplos incontáveis que comprovam a sistemática dessas violações.

Ou seja, não estamos falando de episódios isolados, que geram algum tipo de comoção nacional, como quando a repórter Mirella Cunha, da TV Bandeirantes na Bahia, em 2012, humilhou um suspeito de estupro por ele desconhecer o tipo de exame a ser feito no corpo da vítima. Ou quando a TV Cidade, retransmissora da Record no Ceará, exibiu por cerca de 20 minutos cenas de uma menina sendo estuprada. Ou, ainda, quando, no mês passado, os dois líderes de audiência do gênero – Brasil Urgente, do apresentador José Luiz Datena (Bandeirantes), e Cidade Alerta, do apresentador Marcelo Rezende (Record) – transmitiram uma perseguição policial, ao vivo, que terminou com um PM atirando quatro vezes à queima-roupa em dois suspeitos. Trata-se de uma postura editorial cotidiana, que não tem limites entre canais ou redes de televisão, regiões do País ou horário na grade. Vale tudo, a qualquer momento e em qualquer lugar (mesmo com as crianças na sala), em um modelo de negócios que já se tornou para lá de lucrativo para as empresas de comunicação.

Problema antigo

No fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, os programas policialescos eram um “formato a ser explorado”. Restritos a algumas redes de tevê e poucas capitais do Brasil, não chamavam tanta atenção, tampouco geravam o impacto de atualmente. Mesmo assim, traziam em sua origem a tônica da barbárie que carregam até hoje.

Já há mais de dez anos o Ministério Público Federal (MPF) atua para tentar frear suas violações. Em março de 2006, por exemplo, a Procuradoria da República no Distrito Federal moveu uma Ação Civil Pública contra os responsáveis pelo Barra Pesada, então exibido de segunda a sexta-feira à tarde, na TV Brasília. O objetivo era proteger os direitos dos telespectadores de cenas “explícitas e detalhadas” de violência, entre as quais, a exposição de cadáveres.

Em uma das edições do programa, em dezembro de 2005, após narrar a prisão de um assaltante em Taguatinga, na qual o acusado foi inquerido de costas, o apresentador do Barra Pesada, Geraldo Naves, bradou no estúdio:

“Tem que mostrar a cara desse canalha. Esse é um canalha. Tem que mostrar a cara dele pra mim ver. Isso é um covarde. Um viciado, maconheiro! […] Sabe o que eu gosto? Eu gosto quando a polícia pega um palhaço – palhaço não; palhaço dá alegria – um paspalho como esse, entendeu? E coloca a cara […] tem que pegar e virar a cara, pra mostrar pra população. […] esse aí é um maconheiro, entendeu? Ele anda armado, assaltando, precisa de dinheiro, é um incompetente, asno, asno, entendeu? Asno! Inconsequente! Nem bobo não é. É um asno, uma anta ambulante”.

Na ação em questão, o MPF destacou que, mesmo que a legislação brasileira, baseada na premissa da liberdade de informação jornalística, autorize a divulgação de notícias sobre ocorrências criminosas, com a emissão de opiniões a respeito dos fatos, jamais a manifestação do pensamento pode ser incondicional, a ponto de violar a dignidade humana, sobretudo com o intuito puramente sensacionalista. Segundo a procuradora Lívia Tinôco, responsável pela ação, “à medida em que ocorre a difusão da ideia de que o preso não tem nenhum direito, e que não merece qualquer respeito e de que o seu extermínio é necessário […] não ocorre tão só o ferimento nos direitos individuais indisponíveis dos cidadãos […], mas também são atingidos os valores éticos e sociais de toda uma sociedade”.

Enquanto isso, na Esplanada dos Ministérios…

O Ministério das Comunicações, responsável por regular a radiodifusão no que diz respeito ao conteúdo veiculado, alega que tem muito pouco a fazer diante de tais violações, e que o Brasil precisaria de normas específicas para punir as emissoras por esse tipo de programa.

Como já relatamos neste blog, a maior multa aplicada a um programa policialesco foi de pouco mais de 23 mil reais – justamente para a TV Cidade, de Fortaleza, que já tinha antecedentes infracionais e, por isso, recebeu um acréscimo em sua sanção. Atualmente, as multas que podem ser aplicadas pelo Ministério das Comunicações em casos como este têm como teto o valor de 89 mil reais, que está longe de ser dissuasivo para os canais.

Na próxima semana, o Intervozes entrará com representação junto ao Ministério Público Federal, solicitando que o mesmo emita recomendação ao órgão brasileiro para responsabilizar as emissoras e seus patrocinadores, assim como suspender programas que desrespeitem sistematicamente a legislação brasileira em vigor. E nós, vamos ficar só assistindo?

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.