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Cinema e Telenovela: abrindo terreno para a política-caveira

Era um risco e vai se tornando realidade. A tematização, pelo cinema e a televisão, do combate ao crime encastelado nas favelas, deslocando-o de seu cenário habitual – e inócuo – do jornalismo, seja ele o policial ou o político, põe o debate sobre a segurança pública no país em novos termos. Novos e preocupantes.

Agora, a cidadania já não forma opinião baseada somente no noticiário criminal, em geral burocrático e estatístico, da imprensa "séria", nem na histeria irracional e oportunista da imprensa "sensacionalista" Também não se alimenta, apenas, das doutas considerações dos sociólogos, psicólogos, juristas e afins, que pululam nas páginas de opinião dos jornais e revistas, e nos comentários do rádio e do telejornalismo.

Agora há também, para alicerçar a opinião pública, um punhado de personagens ficcionais, calcados em tipos reais, carregados de verossimilhança e plausibilidade, mais "verdadeiros" do que parecem os seres descritos na crônica policial, mais complexos e integrais na mescla de razão e emoção com que percebem o mundo (como os demais humanos). Heróis ou vilões, aí estão eles influenciando o cidadão e suas idéias sobre o combate ao crime e à violência.

Soluções de força

O fenômeno Tropa de Elite já foi devidamente dissecado, por incontáveis analistas, no potencial regressivo que demonstra, de despertar o sadismo das platéias e reforçar em boa parte delas a crença em soluções de força para a tragédia social brasileira. Certamente era o oposto que seus realizadores desejavam, mas não são mais fatos isolados, numa sessão de cinema ou outra, as manifestações de júbilo e gozo do público com as atitudes do Capitão Nascimento (Wagner Moura), do aprendiz André Matias (André Ramiro) e demais torturadores-fuzileiros que estrelam o filme. Jovens deixam os cinemas cantando os hinos de guerra desses policiais que se pretendem soldados, e correm a comprar objetos e roupas que ostentam seu signo revelador, a caveira. Entregam-se ao culto macabro dos justiceiros fardados, piamente convictos de que é à bala que se enfrenta a criminalidade. Também retratados no filme, os debates universitários sobre crime e violência, as ações sociais das ONGs e as manifestações de rua pela paz são claramente desqualificados como ingênuos, alienados e mesmo hipócritas, posto que seria a classe média a responsável última pelo crime, na medida em que consome drogas e sustenta o aparato econômico-militar em torno delas, seja para o seu comércio, seja para a repressão. Não há qualquer razão, portanto, para a identificação das platéias com os personagens que encarnam esse lado do problema. Não é de estranhar que o público divirta-se com cenas de extrema brutalidade contra eles, como na surra aplicada pelo aspirante Matias no universitário que distribui maconha na faculdade, ou no diretor de ONG queimado vivo por traficantes.  O poder público, habitualmente inepto no enfrentamento da criminalidade, percebe a tendência regressiva e vai na onda, usando o fuzil em vez da cabeça. Afinal, são eleitores os que regozijam-se com a violência e, como se sabe, é mau negócio contrariá-los, mesmo longe das eleições. Daí que o governo do Rio de Janeiro não apenas autoriza operações bélicas totalmente irresponsáveis nas favelas da Rocinha, Dona Marta e Coréia, como se mostra indiferente à sorte das vítimas "civis". Uma criança de 4 anos ser trespassada por um tiro de fuzil, dentro de sua casa, não é mais do que um "dano colateral" no nobre combate armado à bandidagem. Qualquer vivente sabe com que facilidade as balas atravessam as precárias paredes das moradias populares, mas o risco não é suficiente para inibir a insana estratégia de provocar tiroteios em favelas. Tolerância zero e Duas Caras Culpar Tropa de Elite, exclusivamente, pelo recrudescimento da "tolerância zero" no enfrentamento da criminalidade, seria leviano e equivocado. A opinião pública se forja por um conjunto de fatores e mesmo o espetacular sucesso do filme, já um fenômeno de massas, não explica tudo. Convém jogar também no caldeirão de referências oferecido ao juízo da cidadania um outro produto cultural, de influência indiscutível: a novela das nove da TV Globo. O que temos nela de preocupante, a estimular a percepção pública crescente de que o crime se resolve por meios extra-legais?  Em Duas Caras, novela de Aguinaldo Silva dirigida por Wolf Maia, desponta um curioso personagem de nome Juvenal Antena, interpretado por Antonio Fagundes. Ex-segurança de uma construtora que vai à falência e deixa todos os empregados sem receber, torna-se líder e "protetor" dos peões, invadindo um terreno da empresa para formar nele uma nova comunidade, a favela da Portelinha. Os anos se passam, a favela torna-se um bairro gigantesco e o poder de Juvenal apenas se fortalece, fazendo dele o ditador de todas as leis e todas as regras, que incluem deliberar sobre o comportamento privado dos moradores e mesmo suas relações afetivas. Juvenal é um "chefe de morro", o traficante rico e armado até os dentes, que distribui benesses e terror com igual desenvoltura na comunidade? Não, abomina traficantes e criminosos em geral. Então ele é um chefe de milícia, um policial afastado ou em atividade que reúne um grupo armado, expulsa os bandidos da área e "oferece" segurança aos moradores, em troca de pagamento "espontâneo" pelo serviço prestado?  Também não, ele abomina armas e não cobra nada de ninguém. Juvenal é um líder comunitário bastante autoritário, com práticas de poder ambíguas, que mesclam populismo sedutor e uma violência dissimulada, que o telespectador não vê, mas intui, pela atitude sempre impositiva e ameaçadora do personagem. A novela nos mostra que, graças à sua ação heterodoxa, a Portelinha transformou-se em exemplo de comunidade ordeira, livre do crime e da violência, a ponto de suscitar o interesse de jovens documentaristas – iguais aos jovens universitários de Tropa de Elite, também bem-intencionados, ingênuos e incoerentes, embora não lhes seja possível acender nenhum baseado no horário nobre da Globo, enquanto conjeturam sobre as suas responsabilidades sociais.  O Estado não está ausente da Portelinha. Não se vê posto de saúde, carro de polícia ou outros indicativos da presença estatal, mas há em cena o deputado estadual Narciso Tellerman (Marcos Winter), aliado de Juvenal, obviamente eleito graças aos votos da comunidade popular. O Estado se faz presente na novela, portanto, pelo que oferece de pior à população, o conluio interesseiro de políticos com líderes comunitários controladores de currais eleitorais. Tellerman admite os métodos "pouco convencionais" do cacique favelado, mas nem por isso deixa de atuar com ele, nem lhe passa pela cabeça que comunidades efetivamente livres do crime não deveriam carecer de protetores, de "pais de todos", para exercer a sua liberdade. Se o Estado é reduzido à mera politicagem, as ONGs também apanham em Duas Caras. Numa cena emblemática, socialites procuram Juvenal Antena para oferecer a doação de agasalhos aos pobres favelados. Mas não o fazem por compaixão e sim porque concorrem a uma viagem a Paris, paga por organização internacional, onde mostrarão o seu case de ação social. É esse o grau de compromisso e seriedade que Aguinaldo Silva enxerga em ONGs "picaretas", as quais pretende espicaçar outras vezes ao longo da novela. Caldo de cultura para o autoritarismo E é assim que vai engrossando o caldo de cultura para a adoção de políticas autoritárias de segurança pública. Obras influentes do cinema e da televisão glamurizando policiais e líderes comunitários "durões", ridicularizando organizações que procuram atuar num meio social deteriorado e carente, deixando de enfatizar que o Estado deve se fazer presente com políticas de promoção humana, não de carnificinas.  Produtores, autores e diretores protestam inocência e dizem que tratam apenas de "mostrar a realidade como ela é". Mas a realidade é que, a cada dia, o terreno está mais livre para a ética do chumbo quente. Terreno limpo para "deitar corpo no chão".

Para não repetir a tragédia da Escola Base

Uma senhora, que se recusa a ser identificada, procurou pelo menos um órgão de imprensa na semana passada para dizer que, certa noite em fins de 1999, por acaso, viu o padre Júlio Lancellotti beijando um adolescente numa dependência da Casa Vida 2, em São Paulo, onde ela trabalhava. A entidade, da qual o padre é um dos fundadores, cuida de jovens portadores do vírus da aids.

Deve ser a mesma mulher que, sem aparecer, contou a mesma história num programa da TV Record, domingo à noite.

Hoje está nos jornais que, procurada pela polícia, ela gravou um depoimento numa delegacia, na terça-feira. De novo, pediu anonimato. A acusação resultou na abertura de inquérito para apurar a história do “ato libidinoso” [a expressão é do delegado responsável pela investigação] que a então funcionária da entidade diz ter presenciado.

Se comprovado, o padre será processado por corrupção de menor. A denunciante diz não saber quem era o jovem. A polícia quer identificá-lo e localizar a sua família – ele teria deixado a instituição pouco depois do alegado incidente.

À polícia, ela confirmou já ter narrado o episódio à imprensa, que nada publicou.

É a coisa certa a fazer quando é procurada por uma pessoa com uma acusação pesadíssima contra alguém – no caso um conhecido religioso, que revelou ser vítima de extorsão –, mas não assume a denúncia, não apresenta provas, não dá qualquer informação substantiva que permita checá-la, além do “ouvir dizer”.

Por que ela não falou antes? A um interlocutor, alegou que teve “medo”, mas não teria deixado claro do que. À polícia, segundo o Estado, ela mencionou o “temor de que ninguém a levasse a sério”.

Enquanto a polícia se ocupa do padre e do moço, a mídia deveria se ocupar da senhora. Primeiro, para excluir, ou corroborar, a possibilidade de que ela tenha motivos ocultos para fabricar uma acusação deste tamanho.

Afinal, além da questão do tempo transcorrido entre o suposto “ato libidinoso” e a denúncia, pelo menos duas dúvidas pedem para ser esclarecidas: por que ela tomou a iniciativa de procurar a imprensa e não a polícia? Por que o anonimato?

Quem diz o que disse a ex-funcionária da Casa Vida – e ainda por cima nessas condições – merece passar pelo pente fino da imprensa.

Quanto mais não seja, para assegurar que não se repita com o padre Lancelotti a tragédia dos donos da Escola Base, cujas vidas a polícia e a mídia arrebentaram por causa de uma acusação que se revelou, tarde demais, caluniosa.

Por falar em acusação: o caso Renascer

É comum, nas redações, ouvir queixas contra assessorias de imprensa – de comunicação, como passaram a se chamar – cujas sugestões de pauta ou deixam clara a intenção de puxar o repórter pelo nariz até onde interessa ao cliente da assessoria, ou, de tão toscas, praticamente imploram para ser apagadas do computador do destinatário.

O reverso da moeda é a queixa dos assessores que concebem o seu trabalho como desbravadores de caminhos os quais, se bem percorridos, resultarão em reportagens úteis – assim dizem crer – tanto para o leitor quanto para os assessorados.

Um exemplo de desperdício de pauta parece terem sido as matérias do Estado e do Diário de S.Paulo de ontem sobre as acusações do promotor Marcelo Mendroni, do Ministério Público paulista, contra a auto-denominada Igreja Apostólica Renascer em Cristo.

Os dirigentes da Renascer, Estevam e Sonia Hernandes, estão presos nos Estados Unidos, onde respondem a processo por lavagem de dinheiro. Há ordem de prisão cautelar contra eles no Brasil.

Pois bem. Na terça-feira, o promotor Mendroni convocou uma entrevista para informar que uma inspeção em três entidades beneficentes mantidas pela igreja revelou estarem em situação “precária” porque, segundo ele, o dinheiro que serviria para mantê-las, arrecadado dos fiéis, foi nutrir “o patrimônio pessoal dos chefes da Renascer”.

Em consequência, afirmou o promotor, os seus internos são obrigados a trabalhar para levantar os recursos sem os quais elas não teriam como funcionar.

A assessoria de comunicação da igreja respondeu com um texto de 800 palavras que é um híbrido de candente desmentido formal [“Uma denúncia que não resiste à luz do sol”] e pauta circunstanciada para o órgão de mídia que quisesse tirar a limpo o que se passa nas três entidades, uma em Franco da Rocha, outra em Santana do Parnaíba, outra ainda em Heliópolis, São Paulo.

“A mentira não resiste a uma reportagem bem feita”, provoca o texto.

Qualquer que seja a verdade, é inegável que o texto é uma pauta bem feita. Diz, em cada caso, o que são as instituições, a quem atendem, de onde vêm os assistidos, o que se faz nelas, onde ficam e quem as dirige.

A idéia da assessoria é que os repórteres fossem ver as coisas com os seus próprios olhos, como se diz, e quando lhes conviesse, sem monitoramento.

Nem o Estado, nem o Diário, a julgar pelo que deram, ouviram os principais interessados – os assistidos, seus parentes, a vizinhança, para saber o que acham das acusações do promotor. E, seja lá o que os olhos dos repórteres tenham visto, para o leitor sobrou pouco.

A matéria do Estadão termina com uma frase sumária e cuidadosa: “O Estado visitou ontem a entidade que cuida de crianças em São Paulo, na favela de Heliópolis, duas semanas após a inspeção da polícia e da promotoria, e não viu problema aparente”.

O outro jornal é mais informativo: “Ontem, o Diário visitou uma das unidades, em Heliópolis. Lá, a reportagem constatou problemas na infra-estrutura do prédio, como rachaduras na fachada, algumas infiltrações nas paredes e sujeira no piso. A coordenadora da instituição, pastora Nádia Felfele, disse que o problema no piso e paredes é porque o prédio ficou muito tempo sem telhado, e o das rachaduras é porque houve um problema com a massa corrida da fachada. A coordenadora afirmou ainda que a Renascer envia a ela cerca de R$ 1 mil por semana, além de pagar todas as contas do lugar”.

E se ela mentiu? Como saber se as famílias das crianças ali atendidas não precisam, elas, cobrir “as contas do lugar”?

No fundo, é o de sempre: um lado, outro lado; fala o acusador, fala o acusado. E lá de foi mais uma oportunidade de contar uma boa história sobre uma organização cercada de suspeitas – que, nesse caso particular, podem ser, ou não, procedentes. 

Caso Cisco: a mídia cobre mal o crime corporativo

O escândalo envolvendo a multinacional de informática Cisco Systems é mais um exemplo de como o jornalismo de negócios e o jornalismo econômico andam distantes dos novos paradigmas do capitalismo. Em um mundo agitado por mudanças, com a premência de processos de produção limpos, responsabilidade social empresarial e transparência na gestão, a imprensa ainda segue antigos padrões, avaliando as companhias quase unicamente por seus resultados financeiros, posicionamento no mercado e inovação tecnológica.

O próprio noticiário relativo aos crimes de que são acusados dirigentes da Cisco deixa de lado elementos importantes do contexto em que se deu a investigação da Polícia e da Receita Federal, que se referem ao sistema de importação e distribuição de produtos de informática na chamada periferia da economia global. A utilização dos chamados "canais" – nome pelo qual são chamados os revendedores de produtos de alta tecnologia – há muito deveria estar atraindo a atenção da imprensa, pela extrema vulnerabilidade do sistema ao risco de fraudes.

Os grandes jornais e, especialmente, as publicações especializadas em Tecnologia da Informação, mantêm repórteres quase setorizados nessa área da economia, que cresce exponencialmente e também empurra outros setores, como o de telecomunicações e o de automação industrial. No entanto, a maioria desses jornalistas não recebe capacitação para desenvolver uma visão sistêmica dos negócios que devem cobrir. Quase sempre, o noticiário se refere a novidades tecnológicas, grandes negócios e mudanças nos rankings.

Perversidades da globalização

Em suas comunicações institucionais, quando se dirigem diretamente ao mercado, as empresas de tecnologia procuram ressaltar aspectos relacionados aos novos paradigmas do sistema global de negócios, que destacam a necessidade de padrões éticos na concorrência, esforços pela inclusão social e busca incessante de produtos ecoeficientes. Mas, na mediação dos fatos de negócios, a imprensa ignora esse tipo de notícia, por considerar que não é bom jornalismo oferecer informações favoráveis às companhias. No entanto, não demonstra qualquer constrangimento em reproduzir de forma laudatória dados de balanços e declarações sobre os sucessos financeiros das mesmas empresas.

Seria razoável esperar que, não se dispondo a noticiar informações sobre bons procedimentos das empresas nos aspectos ambiental, social e ético, a mídia cuidasse, ao contrário, de abordar as vulnerabilidades do ambiente de negócios quanto a desperdício de energia, irresponsabilidade social e outras práticas negativas, como concorrência desleal e risco de fraudes.

Assim como não tem disposição ou habilitação para esse tipo de cobertura, a imprensa também revelou não possuir recursos para ir além do que liberam as autoridades policiais, no presente escândalo. A cobertura não informa aspectos relevantes do esquema criminoso revelado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público que ajudariam o leitor a entender certas perversidades do sistema econômico globalizado.

A constatação do observador é que a imprensa, sempre animada para desvendar a delinqüência de indivíduos e a corrupção nas instituições públicas, não sabe e não quer saber como cobrir o crime corporativo.

Deslumbramento e poder

No caso da Cisco, a demissão inesperada de um alto executivo, ocorrida há cerca de um ano, foi noticiada burocraticamente pela imprensa especializada, embora muitos jornalistas comentassem sua estranheza sobre o fato. Este executivo foi posteriormente vítima de boatos maledicentes no meio jornalístico, mas nem mesmo os blogs se dispuseram a investigar as razões de sua demissão. Estava ali, provavelmente, um fio da meada que conduziria ao escândalo. Esse executivo, cujo nome não consta na lista de dirigentes da Cisco presos e indiciados, pode ser um dos informantes das autoridades. Poderia ter sido a fonte de jornalistas, se houvesse disposição e recursos para o jornalismo investigativo.

Uma diversidade maior de informações está disponível em outras fontes, como os sites e blogs ultra-especializados, como gigaom (www.gigaom.com), onde se pode obter, por exemplo, o depoimento de um ex-funcionário da Cisco e de outras pessoas do ramo, e revelações sobre como os sistemas de importação e venda de produtos de informática são passíveis de defraudações.

Assim como um certo deslumbramento com a tecnologia parece cegar a mídia, o inegável encantamento com o poder das empresas produz a adesão irrestrita de não poucos jornalistas ao universo de interesses relativos ao capital. Essa parece ser uma das razões pelas quais a imprensa não se mostra capaz de fazer a crítica do sistema, nem mesmo quando o sistema, por si, gera novos paradigmas e enfrenta o desafio de ter que buscar a sustentabilidade.

Alvéolos da democracia

A tão celebrada interatividade da Internet permite que um número pequeno de pessoas possa ser ouvido por muitos. Um articulista escreve, outros comentam. Um repórter constrói uma notícia, seus leitores dizem o que pensam. Obviamente, isto é possível quando existem canais para isto. Na Internet, a inexistência deles é superada pelos inúmeros blogues, grupos de discussão, comunidades virtuais, páginas pessoais etc.

É impossível pensar, nesta teia atual, a possibilidade de se censurar completamente o fluxo da opinião. É verdade, que existem várias tentativas neste sentido. A mais conhecida é a do controle nacional ou empresarial da liberdade de opinião, exercida no meio eletrônico. Este não tem pátria ou governo, mas depende de recursos econômicos, equipamentos e de políticas de países, sociedades e grupos bem específicos. O mesmo meio vive um paradoxo tecnopolítico de difícil solução e que demanda esforços expressivos de resistência. Países ricos e pobres, de inúmeras orientações, registraram e ainda fomentam tentativas autoritárias deste gênero. Mesmo neste meio, a opinião continua sendo vigiada e controlada, lutando para se libertar de suas amarras.

Escrever e publicar um comentário sobre um artigo guarda relação com as antigas seções de cartas dos jornalões tradicionais. Difere-se profundamente das mesmas, por serem comentários quase sempre imediatos, publicados na íntegra e dirigidos ao autor de um artigo ou, mesmo, à discussão entre os próprios comentaristas. Nas velhas cartas, o endereço era o Jornal, um organismo público ou privado, ou, ainda, um assunto ou polêmica específica. Nos comentários de hoje, fala-se diretamente ao autor sobre o assunto que ele tratou. É verdade que por vezes o ‘tiro’ é dado em várias direções, usando-se do espaço para se falar de si próprio ou de outras pessoas.

Tais comentários, existentes na imprensa empresarial e nanica difundidas pela Internet, consistem em fontes de rara significação para se compreender o mundo mental de classes e segmentos sociais do país. Ao que parece, os comentaristas internéticos são, em sua maioria, jovens de até 40 anos e pertencentes às classes médias. Deduz-se isto, observando-se o acesso que dispõem, seus enfoques e modos de usar a língua portuguesa. Eles são, também, ávidos consumidores de inúmeras mídias e se acham obrigados em dizer o que pensam, sobre o que lêem. O nível de consciência entre eles é muito diversificado, indo desde a militância, passando pela arrogância, a superficialidade e a vontade legítima de retificar e contribuir para o debate.

Existem os ‘profissionais’, e os que colaboram eventualmente em algum assunto ou emoção que lhes são caros. É verdade, que alguns estão ali apenas para dizer não, para reafirmar diuturnamente suas discordâncias. Outros escrevem para complementar ou apenas para reafirmar suas concordâncias parciais ou totais com o que leram. Muitos lêem e alguns, apenas, comentam, e isto é um problema a ser analisado. Os comentaristas podem ser entendidos como co-redatores das notícias que vemos nas versões eletrônicas dos jornalões, ou como críticos dos artigos de fundo da imprensa nanica, transformada em bits. Por que assim se comportam?

Os signos de seus comportamentos remetem diretamente a necessidade de novos canais democráticos, da reconstrução da velha Ágora. O que se vê é que os canais disponíveis são poucos e ineficientes. Esta aceitação dos leitores internéticos de participar, mesmo que nem sempre de modo polido e educado, demonstra como se está longe da construção de uma verdadeira pólis democrática. Nesta, a troca civilizada de argumentos permitiria que se compreendessem melhor os fenômenos da contemporaneidade.

Não se acredita que a Internet seja o lócus único desta democratização da informação e da argumentação. Ela é apenas um meio de comunicação, poderoso, sem dúvida, mas, como os demais, cheio de limitações. Pensa-se que a Ágora real é a das ruas, dos locais de trabalho e de estudo, a do diálogo direto entre as pessoas. Os parlamentos, nos três níveis da governabilidade, estão muito longe de oferecer às pessoas os meios necessários para que troquem informações e argumentos. Sem esta troca, a democracia não tem chance de se consubstanciar entre as maiorias da população.

A imprensa nanica, sobretudo a veiculada pela Internet, preenche alguns alvéolos dos pulmões da democracia formal brasileira e do mundo contemporâneo. Entretanto, não é capaz de fazer que funcionem à plena capacidade. Mesmo que aumentemos cada vez mais a audiência, algo ficará faltando. Isto tem que ser buscado em toda parte da vida real, onde exista alguém pronto para falar, escutar, debater e concluir. Os que escrevem artigos desejam, se possível, ajudar nos debates, desde uma simples conversa até uma manifestação pública mais efetiva.

É preciso superar o analógico para pensar a TV digital: vem aí a P2PTV

A televisão ponto a ponto, num ambiente distribuído e sem centro, permite inovar nos projetos audiovisuais para o meio digital, que levem em conta a riqueza das redes.

ATIOBE Programming Community pesquisa todo mês, as linguagens de programação mais populares no mundo. Em agosto último, podemos notar um avanço considerável da linguagem Lua, que aparece entre as 15 mais populares do planeta. O que talvez poucos saibam é que a Lua foi criada por brasileiros da PUC do Rio de Janeiro. Seu crescimento é decorrência de sua qualidade para desenvolver games, animações e, principalmente, conteúdos interativos para a TV Digital. Sua vantagem advém do conceito de metamecanismos, permitindo que a linguagem seja simples, enxuta e possa se integrar fortemente com códigos escritos em outras linguagens, como C, C++, Perl, Fortran, entre outras. A Lua pode utilizar as bibliotecas escritas, por exemplo, em Java.

Criada em 1993, a linguagem Lua é livre, sem restrições de uso e de aplicações. Seu código é liberado. Segundo os mantenedores da Lua, ela é a única linguagem de programação de impacto desenvolvida fora do primeiro mundo. Atualmente, menos de 10% da comunidade de usuários da linguagem são de brasileiros. Lua é uma poderosa ferramenta para o futuro de convergência digital e de produção de conteúdos interativos. Para aqueles que diziam que o Brasil não possuía capacidade tecnológica para produzir o seu próprio padrão de TV digital ou que as grandes inovações e invenções estão nas grandes empresas multinacionais, o exemplo da linguagem Lua, criada, desenvolvida e mantida no ambiente universitário, deveria fazê-los pensar. Falta ao Brasil a cultura da ousadia. Podemos enfrentar problemas tecnológicos, se liberarmos a criatividade e utilizarmos as redes para compartilhar conhecimento. Estamos muito bem posicionados para desenvolvermos conteúdos e aplicativos que espelhem a diversidade cultural brasileira.

Lua também será utilizada na camada intermediária de software (middleware), que permite o desenvolvimento de aplicações interativas para a TV digital. O Ginga é o middleware que será utilizado na TV digital brasileira. Foi desenvolvido pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pela PUC/RJ com inovações que tornarão nosso middleware o mais avançado do momento. As pessoas terão que adquirir um aparelho conversor dos sinais transmitidos digitalmente para que os aparelhos televisores analógicos possam funcionar. Este aparelho é chamado de setop box. E o Ginga será sua plataforma de software intermediária, disponível nas versões Ginga J e Ginga NCL, de acordo com as necessidades de programação. O desenvolvimento de programas audiovisuais interativos será o dia-a-dia das TVs digitais, públicas ou privadas, corporativas ou comunitárias.

Pensar como será a programação interativa é um desafio que pode ser compartilhado pelos desenvolvedores de audiovisual para além das emissoras de TV que controlam a radiodifusão no Brasil. O meio digital aceita a reconfiguração constante e o uso de padrões e linguagens abertas, e permitirá a criação de aplicações que nem podemos imaginar. Precisamos de pessoas que atuem na produção de conteúdos para a convergência digital e realidades alternativas, como os games em rede. As aplicações educacionais podem ser revolucionadas, se comunidades de educadores já começarem a planejar usos que combinem a TV, o computador e os celulares.

Sinapses e diversidade

Talvez, o mais importante seja assumir uma postura P2P, peer-to-peer, e perceber que a diversidade é a matriz da ampliação da nossa capacidade inventiva. O conhecimento está nas redes, assim como a inteligência não se concentra em um ou dois neurônios, ela vem da sinapse, das associações e conexões em nosso cérebro. As redes permitem essa criatividade quando podem livremente expressar a diversidade cultural. Assumir essa postura também passa por pensar que o mundo digital mal se estruturou e que o ciberespaço ainda está em expansão.

O digital não convive bem com o estático. Os padrões, protocolos, códigos e linguagens digitais, quando abertas, são mais dinâmicas, não oferecem resistências e bloqueios à criação e recombinação, a principal prática da cibercultura. Assim, será preciso pensar como a TV digital irá conviver com a TV sobre IP, a Internet Television, e com o que está sendo chamado de P2PTV, peer-to-peer TV. Essa convergência ocorrerá em breve.

O P2P — do qual uma das maiores expressões é o protocolo BitTorrent e softwares como o Emule e LimeWire — utiliza uma arquitetura de rede distribuída, sem centralidade, onde cada máquina cumpre as funções de servidor e cliente de informações. Essa idéia aplicada na formação de redes de transmissão de vídeos pode revolucionar a TV pela internet. Com a expansão da banda larga e da qualidade das aplicações, com as possibilidades de pensar a interatividade para além da recepção, podemos ampliar nossa criatividade.

O uso de um sistema P2P na TV pela internet implicaria que todos os usuários de determinada programação ajudariam na distribuição das imagens. Cada usuário que estivesse realizando um streaming converteria-se em pequeno servidor do mesmo vídeo que estivesse baixando. Desse modo, é possível solucionar dois grandes problemas da transmissão broadcasting pela internet: diminui-se a carga do servidor e o tamanho da banda ocupada. Estudos indicam que a P2PTV poderia assegurar a um canal manter 100 mil conexões simultâneas, sem a necessidade de uma banda gigantesca. Joost é um exemplo de um sistema de distribuição de shows e outros vídeos pela web, usando a tecnologia peer-to-peer, criado por Niklas Zennström e Janus Friis, fundadores do Skype e do Kazaa (www.joost.com/).

A distribuição P2P de vídeo viabiliza a P2PTV e poderá provocar nas audiências um grau elevado de participação. O modelo P2P viabiliza a TV dos coletivos digitais, das pessoas ativas e suas comunidades. O governo e suas agências de fomento deveriam incentivar projetos P2P com o Ginga e a linguagem Lua, apenas para começar a explorar reconfigurações e recombinações. Os ativistas de projetos tecnoculturais deveriam começar a pensar no uso dessas novas tecnologias. Pensar o digital com a cabeça voltada para a riqueza das redes.