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Ancine sob risco

Por Marina Cardoso*

A Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), Lei 12.485, foi aprovada em 2011 para regular o mercado de TV paga no Brasil. O ineditismo desta norma consiste em definir limites claros à propriedade cruzada e também regras de programação de conteúdos e empacotamento, isso é, de agregação de canais, tendo em vista a necessidade de geração de uma indústria audiovisual forte no país.

Essas medidas tanto fazem bem para a economia quanto cumprem o papel fundamental de garantir diversidade e pluralidade nos meios de comunicação, por meio do incentivo à produção regional e independente. Para consolidá-las, com regulamentação e fiscalização, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi transformada em agência reguladora de conteúdo audiovisual.

Diante disso, o movimento que luta pelo direito à comunicação e pela democratização das comunicações e que defende a lei tem olhado para a Ancine com expectativa. Nas últimas semanas, contudo, acompanhamos com desapontamento a nomeação de Débora Ivanov para ocupar uma vaga na diretoria da Ancine. Por quê?

Porque Ivanov é uma das donas de uma das cinco maiores produtoras do Brasil, a Gullane. E a Gullane (suspiros de lamento) possui nada menos do que R$ 40 milhões em projetos captando na Ancine, que terão que passar pela diretoria. Há um conflito de interesses evidente. Conflito que mostra ainda o problema da mesma agência possuir atribuições de fomento e regulação e que traz à tona o velho debate sobre a possibilidade de captura das agências reguladoras por parte dos grupos privados.

Os problemas tornam-se mais graves devido ao pouco – para não dizer nenhum – espaço para debate sobre as ações e programas da agência. Exemplo maior dessa lógica foi a publicação da agenda regulatória da Ancine 2015/2016 no Diário Oficial da União em 13 de março de 2015 sem discussão pública.

Essa agenda é crucial para o setor – entre seus pontos está, por exemplo, a “regulação da atuação da agência no campo da defesa da concorrência e da ordem econômica e a regulação dos canais de distribuição obrigatória”. Por isso, é vital garantir o debate público e não discussões a portas fechadas em gabinetes, nas quais o poder de influência dos conglomerados se fortalece.

A pergunta que fazemos é: como agência reguladora, não caberia à Ancine realizar audiências acerca de sua agenda regulatória ou estabelecer uma metodologia para que os diversos segmentos da sociedade possam debater tal planejamento? No nosso entendimento, sim, assim como ocorre inclusive na Aneel e na Anatel.

A participação é fundamental também porque, ainda hoje, a Ancine carece de apoio das organizações e redes da sociedade civil, do pequeno e médio produtor e empresário, para lutar dentro do governo pelo fim do contingenciamento e pela aplicação dos recursos captados pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que é paga pelas empresas de telecomunicações.

Infelizmente, apesar do salto de arrecadação a partir da aprovação da Lei do Seac, os investimentos não seguiram o mesmo ritmo. Em 2012, quando as teles passaram a pagar a Condecine, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) captou R$ 727 milhões exclusivamente desta fonte. Em 2013, a captação dessa fonte foi de R$ R$ 806 milhões. Em 2014, o montante foi de R$ 784 milhões. No entanto, conforme o relatório de gestão da Ancine de 2013 (último disponível no site da agência), a contratação e liberação de recursos para os programas de incentivo à produção (Prodav e Prodecine) somaram pífios R$ 44 milhões, em 2012, e R$ 85 milhões, em 2013. O desembolso nos programas nestes dois anos foi de R$ 36 milhões e R$ 47 milhões, respectivamente. Estamos falando da aplicação de um montante na casa de poucas dezenas de milhões para uma captação na casa das várias centenas de milhões.

Outra mostra da dificuldade de abertura da agência é a pouca transparência ativa praticada por ela. No site da Ancine, a página de orçamento do FSA não traz dados para além de julho de 2013. Na parte de investimento, a agência apresenta um dado classificado como “valor disponibilizado”, que pouco diz sobre investimento de fato. E, para piorar, os dados aparecem de forma bianual, e cruzados e atualizados até apenas até 2013.

Neste momento, portanto, é preciso acender um sinal de alerta. Em um país onde falar sobre qualquer forma de regulação do que vemos nas telas é coisa de comunista que quer censurar o mundo, a aprovação da Lei do SeAC foi um importante passo para pacificar o entendimento de que as comunicações devem, sim, ser reguladas para evitar a constituição de oligopólios e monopólios e para salvaguardar o interesse público.

No entanto, o importante projeto de agência reguladora da produção, distribuição e comercialização de conteúdo audiovisual no país, um dos pontos fundamentais para a organização do setor proposta pela lei, está ameaçado. E é preciso começar a debater e defender publicamente esse projeto antes que seja tarde demais.

* Marina Cardoso é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes. 

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Relator da OEA defende novo marco regulatório para a comunicação no Brasil

Por Bia Barbosa*

Na última semana, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), o uruguaio Edison Lanza, esteve no Brasil. Além de participar de dois seminários promovidos por organizações da sociedade civil – entre elas o Intervozes –, Lanza teve uma importante agenda de reuniões com o governo federal e com os movimentos sociais. O objetivo: contribuir para destravar a agenda de construção de um novo marco regulatório para as comunicações no país.

Em suas palestras e entrevistas, assim como nas audiências com os ministros Juca Ferreira (Cultura), Edinho Silva (Secretaria de Comunicação da Presidência da República) e Ricardo Berzoini (Comunicações – foto), Lanza reafirmou a necessidade dos Estados contarem com leis, mecanismos e órgãos independentes de regulação que sejam capazes de garantir a diversidade e o pluralismo nos meios de comunicações e o exercício da liberdade de expressão pelo conjunto da população.

“O Brasil postergou a adoção de medidas concretas. Pelas denúncias que recebemos da sociedade civil, o País tem um sistema muito concentrado, sobretudo na TV aberta. Há muitas rádios controladas por políticos e o setor comunitário permanece excluído. A legislação para as rádios comunitárias é deficitária, pois impõe limites de alcance e restringe o financiamento pela publicidade”, declarou o relator à Carta Capital. Para Lanza, a concentração da propriedade dos meios no Brasil e na região, somada à ausência de sistemas públicos de comunicação fortalecidos, “tem implicações no processo democrático, pois um dos pressupostos da democracia é o pluralismo político, a diversidade de vozes. Há uma clara necessidade de incluir mais atores”, afirmou.

Em seminário na Universidade de Brasília, Lanza destacou que o país perdeu algumas oportunidades para democratizar o setor. Ele relatou que, desde 1985, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que os oligopólios atuam contra a liberdade de expressão. E que a Declaração de Princípios sobre o tema, aprovada pela Comissão, desde o ano 2000 afirma que os Estados tem obrigação de limitar a concentração dos meios. “Se isso tivesse sido aplicado, teríamos outro quadro”, disse.

A relatoria aproveitou para lembrar, uma vez mais, que a liberdade de expressão é condição para o exercício de outros direitos; porém, não é um direito absoluto, que pode ser limitado pelo que está previsto no direito internacional. “Ter um sistema plural de comunicação no país é uma dessas previsões, assim como a proteção de crianças e adolescentes e a incitação ao ódio. É falso entender qualquer regulação como censura. A discussão depende de como se constrói a proposição de regulação e como se considera os padrões internacionais”, explicou.

E acrescentou: “Este é um processo que deve ser feito com participação popular. Se o Brasil construiu de maneira tão exemplar o Marco Civil da Internet, por que não consegue fazer o mesmo para atualizar o marco da radiodifusão?”, questionou Edison Lanza.

O retorno do governo

A pergunta acima foi feita, em formato de sugestão, ao governo federal. Com o ministro Edinho Silva, Lanza tratou da importância do fortalecimento dos meios públicos, de seu desenho institucional – que precisa ter autonomia em relação ao governo, incluindo a forma como são escolhidos os dirigentes das emissoras públicas de comunicação – e da necessidade das verbas públicas de publicidade serem distribuídas também com base em critérios de estímulo à diversidade e à pluralidade. Edinho se comprometeu a analisar um estudo da Unesco, indicado pelo relator, sobre padrões internacionais de sustentabilidade da mídia, além da lei sobre publicidade oficial recentemente aprovada pelo Uruguai, considerada um bom modelo.

Do ministro Berzoini, Edison Lanza soube que o governo pretende trabalhar com uma articulação dos ministérios da Cultura, Comunicações, Secretaria de Comunicação Social e Secretaria Geral da Presidência da República para construir “a opinião” da gestão Dilma sobre “a questão da comunicação”. A proposta já havia sido feita ao ministro pelo FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), no início do ano. Incrivelmente, o governo como um todo parece não estar convencido de que parte significativa da crise que enfrenta é porque se acovardou, nos últimos 12 anos, a alterar a estrutura do sistema midiático brasileiro…

Berzoini é um dos poucos que tem consciência sobre isso. Para ele, uma abordagem internacional, como a da Relatoria da OEA para a Liberdade de Expressão, pode ajudar o governo a fazer o debate sobre um novo marco regulatório para o setor no Brasil. O MiniCom está organizando, para novembro, um evento internacional para ouvir especialistas e experiências de outros países sobre regulação dos meios. Edison Lanza pode voltar ao país na ocasião.

Até lá, espera um convite do governo brasileiro para uma missão oficial ao Brasil, o que lhe permitiria viajar pelo território durante alguns dias e elaborar um informe mais global sobre a garantia – ou não – da liberdade de expressão no país. Enquanto isso não acontece, as organizações da sociedade civil e movimentos que se reuniram com o relator se comprometeram a manter a Comissão Interamericana de Direitos Humanos bem informada sobre os desafios enfrentados por aqui. E eles não são poucos.

* Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos e integrante da Coordenação do Intervozes.  

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Os protestos de domingo e a estratégia da Globo

Por Gustavo Gindre*

Muita gente estranhou o recente comportamento da Globo, depois de uma conversa de dirigentes da empresa com senadores petistas. O grupo passou a moderar sua cobertura do governo Dilma e, em editorial do jornal impresso O Globo, chegou a pedir que as forças políticas atuem em prol da governabilidade. Da surpresa surgiram diversas explicações estapafúrdias. De um lado, petistas achando que a Globo teria se rendido à força dos governos do PT. De outro lado, nas passeatas deste domingo 16, houve quem dissesse que a Globo era comunista.

Na verdade, não deveria haver surpresa alguma. A Globo faz o que sempre fez. Atua a favor de seus próprios interesses, quase como se fosse um partido político. Traça uma estratégia, analisa a conjuntura e faz alianças de curto, médio e longo prazo. E a cobertura da emissora dos protestos deste final de semana não nega este raciocínio.

No segundo mandato de Dilma, quando percebeu que a Operação Lava Jato teria potencial para derrubar o governo, a Globo chegou a flertar com a hipótese de impeachment. Com isso, seus noticiários recrudesceram a cobertura e a ordem, aos seus obedientes jornalistas, era criticar o governo de todos os modos possíveis. Mas a Globo se assustou, tanto com o crescimento de Eduardo Cunha quanto com o festival de posições reacionárias ensandecidas que foi às ruas contra o governo.

No caso de Cunha, preocupa tanto sua ligação com o pentecostalismo (do qual a Globo nunca foi muito próxima) quanto o fato de ele parecer ter agenda própria, descolada do establishment da política nacional – além de fazer política com o fígado.

A última experiência da Globo em apoiar alguém com um perfil semelhante (Collor) acabou não sendo boa para os interesses dos Marinho. Collor se virou contra a emissora, que o criara como “caçador de marajás”, tentou articular a construção de um império próprio nas comunicações e acabou apeado do poder com ajuda fundamental da própria Globo. Outra iniciativa deste tipo só será tentada se não houver alternativas, o que não é o caso.

Foi, então, que a Globo concluiu que manter um governo petista em frangalhos pode ser um bom negócio. Frágil, lutando para sobreviver, o governo Dilma pode aceitar uma agenda imposta de fora para dentro, que acentue a virada liberal iniciada com a chegada de Levy ao governo. Ficariam na conta do governo Dilma as políticas impopulares dessa virada liberal, o que de resto teria a vantagem de liquidar as chances de um novo governo petista em 2018.

Plano B

Ao mesmo tempo que aposta na governabilidade, a Globo sabe que mais denúncias da Lava Jato podem acabar inviabilizando de vez o governo Dilma. Aí é necessário construir um plano B. A alternativa seria um governo Temer, absolutamente submisso aos interesses do grande capital, defendidos pela Globo. Mas, para que Temer possa governar com tranquilidade, é preciso neutralizar Eduardo Cunha. Para isso, foi escalado o presidente do Senado, Renan Calheiros. A Globo conta, também, que a Operação Lava Jato acabe, enfim, alcançando também o presidente da Câmara.

Contribui ainda para a análise da Globo a percepção de que os tucanos não conseguiram galvanizar a crise do governo Dilma e acabaram a reboque da extrema-direita, que tomou as ruas. Definitivamente, o PSDB foi uma decepção para os interesses defendidos pela Globo.

O que impressiona mesmo é que o restante dos grandes grupos de mídia (exceto a Record) não consiga ter uma agenda própria e, nos momentos críticos, abaixe a cabeça e siga o rumo definido pelos Marinho. No fundo, eles reconhecem seu caráter ancilar e o predomínio avassalador da Globo.

História

Para entender o comportamento da Globo, é preciso analisar um pouco de nossa história recente. Até a década de 70, a imprensa brasileira era criada a partir de interesses da vida partidária. Havia o jornal getulista, o periódico lacerdista, etc. Mas o surgimento da TV Globo muda esse cenário.

Já no início dos anos 70, setores dentro da ditadura começaram a se preocupar com o crescimento da Globo e com o fato de que ela viesse a construir uma agenda própria, não necessariamente dependente dos militares. Esses setores acabaram derrotados por aliados da Globo, como o então Ministro da Justiça, Armando Falcão, e a Globo teve carta branca para crescer, com todo o apoio, inclusive financeiro, do Estado brasileiro.

A Globo ainda chegou a retribuir o apoio da ditadura no caso Proconsult e na cobertura das Diretas Já, mas pagou caro, sendo hostilizada nas ruas. Desde então, o grupo percebeu a utilidade de ter uma agenda própria. Foi assim, por exemplo, que a Globo apoiou a Nova República e recebeu em troca o Ministério das Comunicações, dado ao homem de confiança, Antônio Carlos Magalhães (o único ministro civil escolhido por Tancredo que ficou até o final do governo Sarney, demonstrando a força dos Marinho).

Mas, veio, então, a opção Collor, que se revelou um desastre. Collor usou laranjas para comprar a TV Manchete, construir a OM (hoje uma pálida sombra chamada CNT) e a TV Jovem Pan, e ajudou Edir Macedo a montar a Record. Obviamente a Globo percebeu a movimentação de Collor e PC Farias e entrou de vez na canoa da oposição, definindo o jogo a favor do impeachment.

Sob a direção dos filhos de Roberto Marinho, mais pragmáticos que o pai, a Globo percebeu a vantagem de não tentar movimentos bruscos, aceitar alguns fatos da política e procurar tirar vantagem deles. Foi assim que “aceitou” a vitória de Lula em 2002, mas tratou de garantir que seus interesses não seriam afetados. A ida de Luiz Inácio ao Jornal Nacional, logo após a vitória, sinalizou que o novo mandatário havia entendido o recado.

Em 2006, no auge do “mensalão”, a Globo novamente demonstrou como atua na política. Bateu bastante no governo. Não ao ponto de criar uma crise institucional ou de inviabilizar a reeleição de Lula. Mas, o suficiente para que o presidente nomeasse um ex-empregado da Globo como Ministro das Comunicações (Hélio Costa), acatando todas as demandas da empresa e garantindo um decreto presidencial para a transição à TV digital que liquidou qualquer expectativa democratizante. A Globo trocou inteligentemente a reeleição de Lula pela manutenção de seu absoluto predomínio na TV aberta (ainda a galinha dos ovos de ouro).

E assim chegamos às eleições de 2014. Em 2012 (R$ 2,9 bilhões), 2013 (R$ 2,6 bilhões) e 2014 (R$ 2,3 bilhões), mesmo com a crise econômica, a Globo teve sucessivamente o maior lucro líquido de uma empresa de capital fechado no Brasil. Ficou para trás o período do início dos anos 2000, onde a empresa dos Marinho quase quebrou. A Globo hoje é uma potência econômica sem paralelo nas comunicações brasileiras. Nunca houve um grupo de mídia com tanto poder político e econômico.

Seu único desafio é o cenário de convergência, que atrai ainda mais grupos estrangeiros e aumenta a influência da internet.

Mas, na política, não há com que se preocupar, especialmente com um governo fraco. Foi por isso que, ao contrário do que pensavam alguns petistas, a Globo não usou o Jornal Nacional da véspera do domingo do segundo turno para tentar uma bala de prata contra Dilma. Por que a Globo se arriscaria a tanto? O que ela teria a perder com Dilma no poder? A resposta vem sendo dada agora, com a atual crise: nada!

O que vivemos hoje é a consequência da opção dos sucessivos governos do PT em compor com os interesses dos grandes grupos de mídia e não alterar a estrutura do sistema midiático brasileiro; em não enfrentar a agenda da regulação das comunicações; em aceitar tacitamente a mentira de que um novo marco regulatório seria uma forma de censura.

Agora, acuado pelas crises econômica e política, não há muita esperança de que este governo venha a adotar qualquer iniciativa para quebrar a nefasta influência que a Globo exerce sobre a política nacional. Ao contrário, o governo é cada vez mais refém dos interesses dos Marinho e busca apenas a sua sobrevivência até 2018.

Aos militantes em prol da democratização da comunicação, cabe a tarefa de manter viva essa luta e seguir acreditando que um dia acertaremos e será cumprida essa tarefa imprescindível para a efetiva construção de nossa democracia. Apesar da Globo.

* Gustavo Gindre é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O caso Frota, a cultura do estupro e os limites à liberdade de expressão

Por Sâmia Bomfim*

Quando recebi a notificação para depor no 2º DP de Cotia, custei a acreditar que fosse verdade. Mas era isso mesmo: Alexandre Frota havia entrado com uma denúncia contra mim por calúnia e difamação. Em maio, criei um evento no Facebook para reunir as pessoas que estavam indignadas com a declaração que ele havia dado no programa Agora é Tarde, da Band, quando afirmou que fez sexo sem consentimento com uma mãe de santo. Segundo Frota, eu inventei que ele estuprou uma mulher e isso gerou uma série de problemas pessoais e profissionais para ele. Na época, ele me procurou no Facebook para me intimidar, mas jamais pensei que ele iria tentar me incriminar diante desta situação.

O vídeo pode ser visto aqui. Qualquer um pode ter acesso a seu conteúdo e tirar suas próprias conclusões. Não fui a única, tampouco a primeira, a se indignar e pedir algum tipo de punição para Frota na época. Uma série de páginas, ativistas, coletivos, personalidades, parlamentares e veículos de comunicação se manifestaram também.

Essa situação é muito absurda. Ele quer sair do papel de culpado para o papel de vítima. Quer criminalizar quem se indignou com seu relato em rede nacional. Estupro é crime, denunciar é um direito.

Na época, várias entidades entraram com um pedido de investigação no Ministério Público. Tivemos uma primeira conquista. Nesta quinta-feira 13 acontece sua audiência no Ministério Público de São Paulo. Frota terá de responder por incitação ao crime e violência de gênero. Feministas organizam um ato para pedir sua punição e em repúdio ao processo que ele está movendo contra mim.

No Brasil, uma mulher é vítima de violência sexual a cada 12 segundos. A mídia em geral cumpre com um papel muito negativo de naturalização da violência contra a mulher. É hábito no País a exibição de cenas em novelas e programas de TV com mulheres sendo assediadas e agredidas. Não são raros apresentadores e “comediantes” que fazem supostas piadas com conteúdo opressor. O próprio apresentador do programa Agora é Tarde, Rafinha Bastos, é um exemplo desta prática.

O caso de Alexandre Frota é emblemático do absurdo da cultura do estupro no Brasil e do debate que precisa ser feito no País sobre limites à liberdade de expressão. Frota recebe palco, aplausos e exibição em horário nobre nos meios de comunicação de massa para relatar um estupro e ainda de sente no direito de abrir processo criminal contra pessoas que se indignam com seu relato. É uma completa inversão de papeis.

O processo é individual, contra mim, mas considero uma tentativa de ataque coletivo às feministas. No último período, o feminismo se ampliou e se fortaleceu. Muitas mulheres em todo o mundo têm usado as redes para promover campanhas e debater política, e têm saído às ruas para denunciar o machismo e lutar por mais direitos. Os machistas, dentre eles artistas e políticos, que estão sendo denunciados e percebendo que há um forte movimento que não aceita mais tanta violência, querem que as mulheres sintam medo e parem de reivindicar seus direitos, mas não vão conseguir.

Espero que o caso recebe a devida punição do Estado, que eu não tenha que responder por um crime que eu não cometi e que toda essa história sirva de exemplo para as emissoras e artistas que tratam estupro como piada.

* Sâmia Bonfim é servidora da USP, integrante do coletivo Juntas! e da Secretaria de Mulheres do Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP).

Em tempo: o Intervozes também denunciou o caso ao Ministério Público Federal e ao Ministério das Comunicações, pedindo a responsabilização da Rede Bandeirantes pelo episódio. Esperamos o posicionamento dos órgãos sobre o ocorrido.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

É hora de salvar as rádios e TV Cultura

Nos últimos anos, mais de 2 mil funcionários foram demitidos da Fundação Padre Anchieta, responsável pelas rádios e TV Cultura de São Paulo. Para se economizar 350 mil reais com o sinal da TV parabólica, 30 milhões de telespectadores foram privados do sinal da emissora. Produções originais foram cortadas ou transformadas em espaço para veiculação de programação terceirizada. Tal retrato difere, em muito, do que vêm à memória quando pensamos na Cultura dos anos 90.

Com programação de qualidade nas rádios e referência na produção de conteúdo infantil, jornalístico e cultural na televisão, a Cultura marcou época com produções como o Castelo Rá-tim-bum, Confissões de Adolescente, Roda Viva, Ensaio, Vitrine e tantos outros. Vários programas de referência, entretanto, foram extintos, como Zoom, Grandes Momentos do Esporte, Vitrine, Cocoricó e Bem Brasil. Agora, programas como Viola Minha Viola e Provocações também correm o risco de acabar. Outros, como o infantil Quintal da Cultura, podem virar mera plataforma para a exibição de desenhos animados tercerizados.

Esse processo vem acompanhado de demissões em massa e de precarização das relações de trabalho, tanto na TV quanto nas rádios, com estrangulamento da equipe de jornalismo e radialismo; enfraquecimento da produção própria de conteúdo, inclusive dos infantis; entrega, sem critérios públicos, de horários na programação para meios de comunicação privados, como a Folha de S.Paulo; sucateamento da cenografia, da marcenaria, de maquinaria e efeitos, além do setor de transportes.

A última fase de desmonte daquela que, durante muito tempo, se colocou como uma alternativa aos meios de comunicação comerciais, cumprindo as finalidades artísticas, culturais e informativas previstas na Constituição Federal para toda a radiodifusão e consolidando um exemplo de comunicação pública reconhecido pela população, pode estar próxima. O governo do Estado de São Paulo reduziu recentemente em 20% o orçamento da Fundação Padre Anchieta, e pretende fazer cortes ainda maiores nos canais.

Em reação a esse movimento, trabalhadores, artistas, comunicadores e organizações da sociedade civil lançam uma nova mobilização em defesa das rádios e da televisão Cultura. Na próxima segunda-feira, dia 10, às 9h, um ato de protesto ocorrerá diante dos estúdios da emissora. Neste momento, o Conselho Curador da Fundação estará reunido, e a expectativa é mostrar a indignação da população contra o desmonte de uma das principais emissoras públicas de comunicação do país.

Um manifesto em defesa da Cultura Viva também está no ar. O texto lembra a excelência do trabalho produzido durante décadas por jornalistas, radialistas, artistas e técnicos, que renderam inúmeros prêmios nacionais e internacionais aos canais. A valorização da cultura nacional, da música clássica, da música popular brasileira e da programação infantil também são destacadas como um legado histórico da Cultura, que, desde os anos 2000, vem sofrendo brutais transformações.

“Acompanhamos esse processo estarrecidos, mas não passivamente. Vamos lutar para impedir o desmanche da Cultura. Queremos a Cultura Viva, refletindo a diversidade e a pluralidade do povo paulista e brasileiro. Queremos a Cultura Viva, mas queremos que ela seja ainda mais pública, que ouça a sociedade, que espelhe de forma criativa a complexidade e a efervescência cultural do nosso estado e do Brasil”, afirma o documento, que está disponível aqui para adesões.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.