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Bloqueio da ferrovia: por trás da notícia

No dia 21 de agosto, O Liberal anunciou, em sua primeira página, ter tido acesso a um plano secreto, definido durante reunião realizada dois dias antes por representantes de movimentos sociais na sede da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em Belém. “Há evidências – fortes e várias – de que está em andamento uma nova interdição da Estrada de Ferro de Carajás, que liga o Estado do Pará ao Maranhão e é operada pela mineradora Vale.”

Embora a notícia fosse um “furo” (isto é, exclusiva), o jornal não a considerava “nenhuma novidade”. Isso porque “patrimônios privados, inclusive e sobretudo os da Vale, sempre estiveram na mira de bandidos travestidos de atores sociais, a expressão que a intelectualidade – ou parte dela – cunhou para se referir a criminosos”.

Desta vez, porém, haveria mais do que uma novidade: nada menos do que três, na aritmética viciada do diário do grupo Maiorana. “A primeira é de que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) não agirá sozinho, mas auxiliado por outras entidades e movimentos sociais; a segunda é que se pretende interditar a ferrovia em duas frentes, uma no Pará, outra no Maranhão; e a terceira é que os preparativos para a mobilização que precede a interdição” aconteceram dentro da sede da CNBB. “Em cada novidade, um excesso”, observou o jornal.

O Liberal sugeriu então que “os aparelhos de repressão do Estado” se mobilizem em duas frentes, como o fariam os presumíveis autores da interdição, e de forma concatenada, “para que possam reprimir na medida do necessário. Se uma ilegalidade pode ser engendrada racionalmente, por que não poderá a polícia, também racionalmente, preparar sua reação?”. Quanto à reunião preparatória da interdição, ocorrida dentro de um prédio de entidade ligada à Igreja Católica, o jornal achava conveniente “associar crimes a pecados – e vice-versa”, alertando: “Para pecados e crimes, há sanções”.

Base de dados

Todas essas graves informações o jornal disse as ter obtido junto a uma “fonte anônima”. Essa mesma fonte, que pediu para ter seu nome resguardado, revelou a O Liberal em seguida que estava “sendo redigido um documento para ser entregue ao governo paraense” até o final da tarde desse mesmo dia, 22. O documento mostraria que “a ameaça feita pelo movimento social é 'concreta' e deve ser investigada”.

A uma comissão de representantes da CNBB, Comitê Dorothy Stang, Comitê Intereligioso, Missionários Combonianos do Brasil Nordeste e Conferência dos Religiosos do Brasil, que foi à redação entregar uma nota oficial sobre a campanha “Justiça nos Trilhos”, responsabilizada pela autoria do plano, um editor do jornal disse que a fonte anônima era da secretaria de segurança do Estado. Os dias se passaram, o documento não apareceu, a fonte foi esquecida e O Liberal abandonou completamente o tema. Porta-vozes da administração Ana Júlia Carepa, consultados pelo Jornal Pessoal, negaram terem recebido qualquer informação sobre o tal bloqueio da ferrovia, muito menos um documento escrito.

Na nota enviada ao jornal, padre Gustavo Covarrubias Rodríguez, vice-provincial dos Missionários Combonianos do Brasil Nordeste, expressou “o mais enérgico repúdio” à matéria de O Liberal. “Nela, entre outras coisas inverídicas e absurdas, e de colagens de dados cruzados, desconexos e incompletos, cita-se a minha presença num encontro promovido pela equipe coordenadora da campanha 'Justiça nos Trilhos', no dia 19 de agosto do ano presente. Indigna-nos, sobretudo, a forma absurdamente prolixa, tendenciosa e difamatória da matéria, ligando-os a hipotéticos atos ilegais que afetam a companhia Vale. A própria campanha, na qual nós temos representantes da nossa entidade, sempre moveu-se dentro do marco jurídico vigente”, disse o religioso.

Os participantes do encontro ficaram intrigados: como o jornal conseguiu as informações se não mandou ninguém para cobrir a reunião? Dela participaram apenas poucas pessoas, integrantes da campanha, que enviou convites a todos os veículos de comunicação e apresentou a pauta dos debates através do seu site na internet. Nenhum órgão da imprensa se interessou pela pauta. Não havia estranhos no auditório da CNBB. As exposições consistiram na apresentação da campanha através de um power point e de um folder.

A campanha, segundo artigo escrito pelo jornalista Rogério Almeida, logo depois das matérias de O Liberal, foi criada “para a produção de base técnica que possa subsidiar um grande debate durante o Fórum Social Mundial, que tem como Belém como sede, em janeiro de 2009”. Seu objetivo é “o acúmulo de informação e forças no Pará e Maranhão e exterior para a realização de grande debate sobre os impactos da ferrovia de Carajás. Nesse sentido, a partir de uma parceria com universidades do Maranhão e Pará, vem construindo uma base de dados jurídicos e sócio-econômicos”. Outra ação da frente é “a mobilização em municípios impactados pela ferrovia e nas capitais dos estados, São Luís e Belém”.

Prática rotineira

Ao noticiar fato tão grave com base numa “fonte anônima” (ou muito mais precária do que anônima), sem fazer qualquer checagem própria depois, e abandonando o tema sem esclarecer se a denúncia é verídica ou falsa, O Liberal mais uma vez desserviu a opinião pública com seu procedimento leviano no trato com as informações. Uma coisa é bloquear a ferrovia de Carajás, uma concessão pública outorgada à Companhia Vale do Rio Doce por 50 anos, como ocorreu seis vezes nos últimos meses, e outra é tentar avaliar o impacto que o grande empreendimento representa para a população, e tirar mais benefícios do que os disponíveis, notoriamente insuficientes e injustos (daí o título da campanha: “justiça nos trilhos”).

Nenhum dado concreto sequer insinuou essa intenção durante o encontro realizado na sede da CNBB. Ao anunciá-lo de forma estrepitosa e superficial, sem uma fonte de crédito, O Liberal mostra que seu propósito não é manter os paraenses bem informados, mas valer-se da informação para objetivos não declarados. Propósito semelhante ao daqueles que sonegam as informações do público ou as manipulam para tirar proveito do poder que têm. No caso do jornal dos Maiorana, essa já é uma prática rotineira e, por isso mesmo, lesiva aos interesses superiores da sociedade.

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Imprensa ruim

Alguém precisa dar um basta à ignomínia, já que os personagens responsáveis por essas “coisas” mergulharam no cinismo comercial e no desrespeito pela sociedade.

O caderno de polícia da edição da última segunda-feira do Diário do Pará, de propriedade do deputado federal Jader Barbalho, bateu o recorde de violência impressa. Na capa, três corpos de pessoas desfiguradas pelos tiros que receberam, em execuções sumárias. O olho de um dos mortos está praticamente fora da órbita, pressionado pela bala que penetrou em seu rosto, dilacerando-o. E assim saiu na fotografia, como se ela estivesse num laudo cadavérico, para circular apenas entre peritos do instituto médico-legal. Dentro do caderno, mais nove fotos de "presuntos", incluindo o olho reprisado.

Como os profissionais da imprensa resolveram desprezar os princípios éticos da profissão e seus deveres como cidadãos, cabe a pergunta: os promotores do Ministério Público do Estado que deviam cuidar dos direitos humanos não lêem jornal? Não incluem a manipulação da imagem dos três “pês” (pobres, pretos e prostitutas) e correlatos em suas atribuições? E o sindicato dos jornalistas, o que faz?

Triste é esta época para ser jornalista no Pará.

* Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal em Belém.

A TV que faz o que quer e bem entende

Quem fiscaliza a TV? Por que uma novela de 21h, cujo horário tem uma classificação específica, volta a ser repetida à tarde, quando boa parte das crianças e adolescentes de todas as idades está em frente à TV?

Prova de que não existe mesmo limite nessa questão de classificação de horário. O exemplo, hoje, é a volta da novela de Manoel Carlos Mulheres Apaixonadas, da TV Globo, dirigida por Ricardo Waddington e veiculada pela primeira vem em 2003.

Escrito para um público adulto, o folhetim traz um enredo complexo, narrações reflexivas, temáticas violentas, com ataques físicos e morais entre marido e mulher, ciúmes além dos limites, traições entre casais e, o que não poderia faltar, cenas de sexo quase explícitas entre os personagens Luciana (Camila Pitanga), estudante de medicina, e o médico César (José Mayer).

Mais uma vez, a sociedade se curva diante do poder da Vênus Prateada e nada reclama ou questiona. Afinal, se considerarmos que a novela é para os brasileiros a mesma representação que o cinema tem para os americanos, entenderemos que esta obra (aberta) é um canal indutor de conceitos, formas e modo de ser de uma sociedade.

“Nada demais”

Se não questionamos, concordamos com isso. Quando deixamos nossas crianças e adolescentes assistirem este tipo de novela, permitimos que elas vivenciem determinadas situações que podem ser postergadas do universo infanto-juvenil.

Temáticas que podem ser vistas em outro momento de maturidade, absorção e reflexão sobre questões que fazem parte integrante de uma estrutura societária, mas que para as elas são desnecessárias neste primeiro momento.

Ao se veicular o folhetim no horário das 21 horas, pai e mãe têm a opção de recomendar a seus filhos menores de 12 anos que não assistam a tais programações. Contudo, na medida em que esta programação é apresentada às 15 horas, deixa de ser "algo demais" para ser "algo comum" e, conseqüentemente, aceita como "natural", "nada demais" para crianças e adolescentes assistirem. Afinal, é uma programação liberada para ser veiculada às três horas da tarde!

Pais pedem socorro

Hoje, estamos consolidando mais uma vez a morte de uma nova sociedade que vai emergir a partir dessas crianças que apreendem conceitos, regras, normas e forma de ver a vida a partir da maior janela de comunicação: a televisão.

Dentro dela, a construção de novelas que em sua maioria emburrecem, engessam e transformam pessoas em meros espectadores de uma vida sem sentido, ilusória e imaginária. Algo que no cotidiano de muitas pessoas singulares está totalmente fora do contexto.

Repugnantes, também, são as atitudes dos que deixam que isso passe desapercebidamente. Muitos pais estão pedindo socorro e a sociedade de amanhã vai agradecer por isso.

* Teresa Leonel Rocha Leonel é socióloga e jornalista, especialista no Ensino da Comunicação Social, professora do curso de Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da Bahia e Faculdade São Francisco de Juazeiro (BA)

PL-29: Conteúdo nacional e mais diversidade

O  substitutivo do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) ao projeto de lei nº 29/07, que estabelece novas regras para a TV por assinatura e avança no processo de convergência tecnológica, ao abrir a possibilidade de ingresso das operadoras de telefonia fixa e móvel no negócio do audiovisual pago domiciliar segue causando grande polêmica e provocando discussões entre os agentes do setor, arrastando sua tramitação no Congresso.

O ponto mais polêmico da iniciativa é o que aumenta para 25% o número de canais nacionais na grade de programação da televisão paga, através de um sistema de cotas. A proposta amplia a produção de conteúdo nacional, fomentando as produtoras do país e abrindo espaço para novos agentes culturais, gerando maior diversidade e pluralidade na programação, o que deve suscitar diversas conseqüências positivas para o consumidor.

Maior oferta

Hoje, a TV paga é assistida por cerca de 8% da população brasileira, enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, é vista por mais de 80% dos lares. O motivo do pouco acesso é o preço elevado e a escassez de conteúdos nacionais, num quadro de falta de estrutura e investimento no setor, pois no Brasil se paga até próximo de R$ 7,00 reais ao mês por cada canal, enquanto na Argentina o custo é de R$ 1,00. Existe uma enorme concentração na área, onde a pluralidade é comprometida, de forma que cabe às Organizações Globo e seus canais Globosat o preenchimento da grade com conteúdo nacional.

Outra grande reclamação dos consumidores da televisão paga é o excesso de repetição de programas, o que, por si só, já representa falta de diversidade na programação. Um pequeno exemplo de reprise é o seriado Friends, que ainda está no ar, com três exibições diárias, mesmo a atração tendo acabado em 2004. O projeto de lei abre possibilidade para outros agentes, juntamente com produtoras, realizarem audiovisual, aumentando o conteúdo nacional. A Net e a Sky, respectivamente operadoras de TV a cabo e por satélite, têm atualmente na sua programação poucos canais com material nacional.

No entanto, a Associação Brasileira da TV por Assinatura (ABTA) é contra a medida, alegando que as cotas (referindo-se aos 25% de canais nacionais) não irão fomentar a produção local, representando, sim, proteção e reserva de mercado, o que iria aumentar o valor mensal da assinatura. Logicamente, a ABTA luta por seus interesses, defendendo as programadoras e operadoras. Na realidade, a lei poderia acarretar maior oferta e isso, logicamente, ocasionaria uma diminuição no preço da assinatura.

Uma exclusão programada

Outra argumentação da ABTA é com relação à qualidade da programação, salientando que, com os 25% de canais nacionais, seria difícil manter o padrão atual dos produtos exibidos. Contudo, a qualidade já está comprometida, com fatores como as intermináveis repetições de seriados e filmes. A ABTA afirma que apóia a produção de conteúdo local, mas é contra o sistema de cotas e tem manifestado sua opinião através de spots, nas emissoras da televisão aberta, e por meio do sítio Liberdade na TV.

O projeto de lei incomoda a ABTA porque abre espaço para novos agentes culturais, podendo diminuir o preço da assinatura e aumentar a oferta de bens simbólicos. Novamente o interesse privado, de concentração de recursos humanos e culturais, tenta conduzir o debate em um setor de enorme repercussão pública. Caso não forem mudadas algumas regras que permanecem estáticas no tempo, no plano comunicacional, não será alcançado o patamar de 50% de telespectadores da TV paga, permanecendo mais uma exclusão programada.

* Valério Cruz Brittos é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
* Ary Nelson da Silva Júnior é graduando em Comunicação Social – Jornalismo na Unisinos.

Grafite na universidade: A Ufrgs e a superficialidade da cobertura

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) tem se caracterizado, por sua história, como um espaço de debates e de permanente indagação relacionados aos rumos da sociedade contemporânea. Foi assim com a criação do Campus do Vale, próximo à cidade de Viamão, quando os militares que dirigiam o país – conforme contam alguns professores – destinaram para esta localidade de distância extremada naquele momento alguns dos cursos que mais argüiam contra a ditadura. Está sendo assim, nestes últimos anos, no que concerne às eleições para o Diretório Central dos Estudantes, às ações afirmativas, ao Reuni etc.

Pois é nesse contexto que uma parede (sim, uma parede) toma conta das polêmicas que circundam, de tempos em tempos, nossa universidade. Ao entrar no Campus do Vale, aquele mesmo, próximo a Viamão, no qual estão alocados diversos departamentos de ensino e pesquisa, damos de cara com o prédio que abriga as salas de aula do curso de Letras. A parede frontal do edifício das Letras (recinto que outrora era dividido com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) encontrava-se pichada, com algumas citações, descascada, além de servir de mural para cartazes, políticos ou não. De fato, não se tratava de uma visão esteticamente bonita. Não era, todavia, desagradável para os olhos alheios; tratava-se apenas de uma parede.

Atentado à autonomia

Há cerca de três ou quatro meses, um grupo de alunos ligado ao Diretório Central dos Estudantes tomou uma iniciativa própria, sem autorização prévia da direção universitária, e reformulou a mencionada parede que dá acesso ao Campus do Vale. No lugar da tinta descascada, das frases soltas e perdidas, dos cartazes e do fundo "branco", os estudantes pintaram um grande painel, no estilo graffiti, ostentando os seguintes dizeres: “Para que(m) serve o teu conhecimento?”. Estaria por vir a mais nova polêmica.

Outro grupo de estudantes tratou de acionar a Secretaria de Assuntos Estudantis (SAE) para reclamar o fato de a pintura não ter sido autorizada e, portanto, constituir crime de depredação do patrimônio público. De imediato, a SAE arquivou o processo, justificando que aquele espaço estava historicamente ligado às reivindicações e proposições filosóficas dos graduandos, o que de certa forma representa a realidade.

Olhando de fora, sem muita profundidade, parece que estamos diante de um crime e de uma falta de respeito às autoridades, um atentado à autonomia da universidade pública. Sob os aspectos legais, sem dúvida, trata-se de uma atitude pouco aconselhável, na medida em que poderia gerar (e acabou gerando) represálias por parte de quem se sentisse agredido (?) pelo acontecimento. Mas a história não é tão simples assim, tampouco somente de aspectos legais pulsa a vida acadêmica na Ufrgs, muito pelo contrário.

Discussões e interpretações distintas

O papel do conhecimento científico está na berlinda, digamos assim, há bastante tempo. Inúmeros pensadores fixaram suas atenções naquilo que poderíamos chamar de "conhecimento do conhecimento", ou epistemologia. A professora Eva Machado Barbosa, do Departamento de Sociologia da UFRGS, conta um pouco dessa trajetória:

“A questão do conhecimento de segunda ordem, ou do conhecimento do conhecimento, na expressão de Morin (1987), se fez presente no ocidente, de maneira explícita, pelo menos a partir da lógica aristotélica […]. Com o surgimento da ciência na Idade Moderna, ou melhor, com a diferenciação do conhecimento científico a partir da matriz filosófica original, a questão do conhecimento de segunda ordem, como lógica, gnoseologia, teoria do conhecimento, filosofia da ciência, epistemologia – ou que outro nome ainda se queira dar a esse domínio – tornou-se cada vez mais central, alcançando momentos de auge em obras de pensadores como Descartes, Locke, Hume, Kant e Hegel” [BARBOSA, Eva Machado. "Conhecendo o conhecimento: questões lógicas e teóricas na crítica da ciência e da razão". In: Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, vol. 10 (Teoria Social: Desafios de uma Nova Era), p. 11].

Podemos observar, nesse sentido, que não é de hoje que os sujeitos humanos se debruçam sobre as questões que envolvem o conhecimento. Desde Karl Popper e os critérios de refutação e/ou testabilidade; passando por Gaston Bachelard e sua tentativa de psicanalisar o conhecimento; até chegar em Pierre Bourdieu e a necessidade da chamada vigilância epistemológica, perdura um caminho tortuoso, de rupturas e continuidades, de muitas discussões e interpretações distintas.

“Legalismo patriótico"

No episódio que polariza a universidade, o que está por trás de toda a discussão acerca da pintura da parede são diferentes posições ideológicas, posturas políticas frente ao papel do conhecimento científico construído nas suas entranhas. Para que ou para quem ele deve servir? Para nada, para alguns, para todos, para ninguém? Devemos nos questionar sobre isso?

Mesmo que alguns teóricos pós-modernos tenham decretado o fim das ideologias, do trabalho e da verdade enquanto conceito, na prática a disputa política e ideológica está presente na rotina diária, visível ou disfarçada, mas presente. Os autores do painel que originou a polêmica defendem sem ruídos um projeto de ensino superior mais popular, voltado para a aproximação com a comunidade e que não apenas privilegie o mercado e o empreendedorismo, mas também procure democratizar o acesso ao saber e à crítica social, fatos ainda muito distantes no que tange à nossa instituição.

Por outro lado, seria bastante ingenuidade, amigos leitores, pensarmos que a motivação da pessoa que moveu o processo para a retirada do graffiti em voga esteja vinculada apenas a uma espécie de "legalismo patriótico", ainda mais se atentarmos para o fato de que tal indivíduo é membro de um movimento específico de atuação contrária às cotas raciais, via de exemplo. Não esqueçamos, porém, que nada impede que optemos pela ingenuidade, desde que possamos identificá-la…

Os movimentos políticos

Tudo o que foi relatado até agora ganhou destaque no maior veículo de comunicação impresso do Rio Grande do Sul. Façamos uma pergunta clara: qual seria o papel deste jornal, para que pudesse cumprir uma função informativa de qualidade?

Independente da possível resposta, Zero Hora trabalhou sua cobertura até o momento em que escrevemos (sábado, 30/8) enfatizando a questão legal dos acontecimentos. Para nosso juízo, é imperativo que tal cobertura abordasse esse viés, na medida em que não devemos esquecer, num piscar de olhos, a existência das legislações vigentes. Neste primeiro comentário, ponto para Zero Hora e seus jornalistas.

No entanto, com o intuito de situar seus consumidores de maneira mais inteligente, Zero Hora investigaria profundamente o pano de fundo citado acima, isto é, o debate ideológico que a própria inscrição polêmica levanta. Ao contrário disso, até agora o impresso mantém uma postura "legalista", sem explicar o teor dos movimentos políticos que disputam a supremacia nesse conflito, seus projetos e perspectivas.

“Aparelhos privados de hegemonia”

Ao saber da pintura, o estudante de Ciências Contábeis Anderson Gonçalves, 35 anos, integrante do Movimento Estudantil Liberdade (MEL), abriu processo administrativo junto à universidade para saber se a parede havia sido cedida aos alunos. No documento, ele classificou o ato como vandalismo, identificou um dos responsáveis e pediu a punição do grupo [Zero Hora, 26 de agosto de 2008, p. 44].

Nesse caso, para que a mídia pudesse ser minimamente isenta, comprometida com a sociedade, Zero Hora arcaria com sua responsabilidade e esboçaria uma tentativa (pelo menos) de contextualizar a “questão quente” movimentada por detrás de uma pendência estéril. Para fugir dos grilhões de um assunto vago, qual seja, a legalidade ou não da pintura, a retomada sintética das concepções políticas daqueles que pintaram o painel e daqueles que se opuseram a ele, mas também os respectivos significados que ambos os grupos atribuem ao conhecimento científico e suas “utilidades” promoveriam um nível de qualidade superior ao tradicional periódico.

Numa época em que o jornalismo consiste, ao fim e ao cabo, em um tipo de indústria que fabrica a desinformação, a busca pela profundidade poderia ajudar a salvá-lo do pior. Entretanto, talvez seja mais fácil vender informações superficiais, ao passo em que a profundidade aqui requisitada poderia desestabilizar alguns pilares edificantes na atualidade daquilo que Gramsci [Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Volume 2, 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004] alcunhou “aparelhos privados de hegemonia”.

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Eis os endereços para visitar as matérias de Zero Hora realizadas até o dia 30/08/08 (disponíveis durante 30 dias na internet):
** 26 de agosto de 2008, "Parede pintada gera processo na Ufrgs "
** 27 de agosto de 2008, "Diretor critica decisão da Ufrgs que liberou grafite "
** 27 de agosto de 2008, "’Fui muito ingênua’, diz autora "
** 28 de agosto de 2008, "Mais tinta na parede da controvérsia "

* Bernardo Caprara é jornalista diplomado pela PUC-RS, graduando em Licenciatura no curso de Ciências Sociais, pela Ufrgs e pesquisador-bolsista do Departamento de Ciência Política da Ufrgs.

Televisão: Lobo-mau x Pollyana, na nova ordem digital

Jornais e sites especializados deram considerável destaque nos últimos dias a uma declaração de executivo da Rede Globo que lamenta a mudança de comportamento do mercado de comunicação com a disseminação da internet e da telefonia celular.

A afirmação foi feita durante participação na quinta edição do Fórum Internacional de TV Digital, no Rio. E diz respeito aos desafios [E AO IMPACTO] da nova ordem digital no meio televisivo. Com direito, inclusive, a um “nós éramos felizes e não sabíamos”.

Não se pode dizer que a declaração seja surpreendente [ou sequer novidadeira], afinal. A TV comercial aberta sempre se esquivou da idéia de adotar a multiprogramação – a possibilidade de ampliar o número de canais [quem sabe o de vozes e interesses] à disposição do brasileiro. Foi esta a queda de braço essencial que moveu os lobbies em favor da adoção do padrão japonês no país.

Em nome da “qualidade' da alta definição [que, por favor, ninguém seria capaz de dizer que não interessa] restringiu-se enormemente a idéia da multiplicação de canais – e, portanto, da suposta entrada de novos agentes no mercado de televisão aberta.

O maior dos truques neste sentido foi manter a mesma fatia do espectro [o “tubo” por onde trafegam os sinais] nas mãos de cada concessionário – ou seja, de cada grupo empresarial que recebe do Governo Federal o direito de explorar [EM TESE…] por determinado período, prorrogável ou não, o serviço de TV aberta.

A discussão, abafada ao máximo na época, contrapunha duas idéias. Uma defendia que o “dono” da outorga poderia fazer o que quisesse [como se vê, se quisesse…] com o espaço que sobra quando o sinal analógico [que ocupa todo o espectro,] é compactado digitalmente.

Na contraface, o argumento [encabeçado pelos movimentos em defesa da democratização das comunicações] era de que a outorga oferecia o direito de operar UM canal [ou seja, uma programação] e não de se usar o “tubo” inteiro. Não é preciso dizer quem levou a queda de braço…

A justificativa do diretor de engenharia da Globo, Fernando Bittencourt, no Fórum de TV Digital, é de que a ampliação do número de canais é inviável, do ponto de vista dos negócios.

E ele se respalda numa lógica simples: se o bolo publicitário [ou a “pizza”, como prefere] não vai crescer, não há o que justifique criar novos canais – o que demarca com clareza o posicionamento de que um patrimônio da sociedade como é a televisão existe apenas para servir a interesses empresarias, e não aos da população.

Não deixa de ser curioso constatar que a fala vem de uma empresa que mantém número razoável de [BONS!] canais na TV paga [com conteúdos de maior “interesse público”, na média, mas de acesso restrito]. O que permitiria supor que o investimento para a migração seria mínimo [OU NÃO?].

Outro trecho emblemático da fala de Bittencourt [fundamentado em números do mercado norte-americano…] se refere ao fato de que a TV não estaria perdendo audiência para as novas vias informativas e de entretenimento, mas diluindo-a entre outros meios, sem impactar o mercado de mídia. [Pollyana talvez fosse mais incisiva neste encontro com Lobo-mau no escuro da floresta digital…]

Em meio a todas as pressões da convergência de mídias e de discussões regulatórias [reverberadas pelo Congresso Nacional via PL-29, o projeto de lei que redefine papéis e espaços no cenário da TV paga e muda o jogo de forças com a produção independente e as empresas de telecomunicações], supor que as coisas têm chance de seguir como são parece semear girassóis em nuvens.

Chama atenção, também, o perfil dos profissionais destacados pelas emissoras para falar de TV digital em eventos sobre o tema. Assim como a Globo, Record e SBT foram representados na discussão por executivos de tecnologia – a Band, por seu vice-presidente.

Enquanto a TV digital continuar sendo tratada como mais um brinquedinho de engenheiros ou a nova lufada de impulsão das velas do mercado de eletroeletrônicos [sem encarar a fundo a inevitável reviravolta no modelo de negócios ou a nova lógica de empacotamento do conteúdo desta nova mídia – bidirecional, que faz do telespectador um ser ativo e participativo], a discussão continuará fora do foco que importa, em dissonância com os interesses [e necessidades] da sociedade.

É hora de fazer deste traste chamado televisor um porta-vasos, se muito. Mas se a mentalidade analógica não for aposentada junto, nada além vai florescer.

* Israel do Vale é diretor de programação e produção da Rede Minas.