Bloqueio da ferrovia: por trás da notícia

No dia 21 de agosto, O Liberal anunciou, em sua primeira página, ter tido acesso a um plano secreto, definido durante reunião realizada dois dias antes por representantes de movimentos sociais na sede da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em Belém. “Há evidências – fortes e várias – de que está em andamento uma nova interdição da Estrada de Ferro de Carajás, que liga o Estado do Pará ao Maranhão e é operada pela mineradora Vale.”

Embora a notícia fosse um “furo” (isto é, exclusiva), o jornal não a considerava “nenhuma novidade”. Isso porque “patrimônios privados, inclusive e sobretudo os da Vale, sempre estiveram na mira de bandidos travestidos de atores sociais, a expressão que a intelectualidade – ou parte dela – cunhou para se referir a criminosos”.

Desta vez, porém, haveria mais do que uma novidade: nada menos do que três, na aritmética viciada do diário do grupo Maiorana. “A primeira é de que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) não agirá sozinho, mas auxiliado por outras entidades e movimentos sociais; a segunda é que se pretende interditar a ferrovia em duas frentes, uma no Pará, outra no Maranhão; e a terceira é que os preparativos para a mobilização que precede a interdição” aconteceram dentro da sede da CNBB. “Em cada novidade, um excesso”, observou o jornal.

O Liberal sugeriu então que “os aparelhos de repressão do Estado” se mobilizem em duas frentes, como o fariam os presumíveis autores da interdição, e de forma concatenada, “para que possam reprimir na medida do necessário. Se uma ilegalidade pode ser engendrada racionalmente, por que não poderá a polícia, também racionalmente, preparar sua reação?”. Quanto à reunião preparatória da interdição, ocorrida dentro de um prédio de entidade ligada à Igreja Católica, o jornal achava conveniente “associar crimes a pecados – e vice-versa”, alertando: “Para pecados e crimes, há sanções”.

Base de dados

Todas essas graves informações o jornal disse as ter obtido junto a uma “fonte anônima”. Essa mesma fonte, que pediu para ter seu nome resguardado, revelou a O Liberal em seguida que estava “sendo redigido um documento para ser entregue ao governo paraense” até o final da tarde desse mesmo dia, 22. O documento mostraria que “a ameaça feita pelo movimento social é 'concreta' e deve ser investigada”.

A uma comissão de representantes da CNBB, Comitê Dorothy Stang, Comitê Intereligioso, Missionários Combonianos do Brasil Nordeste e Conferência dos Religiosos do Brasil, que foi à redação entregar uma nota oficial sobre a campanha “Justiça nos Trilhos”, responsabilizada pela autoria do plano, um editor do jornal disse que a fonte anônima era da secretaria de segurança do Estado. Os dias se passaram, o documento não apareceu, a fonte foi esquecida e O Liberal abandonou completamente o tema. Porta-vozes da administração Ana Júlia Carepa, consultados pelo Jornal Pessoal, negaram terem recebido qualquer informação sobre o tal bloqueio da ferrovia, muito menos um documento escrito.

Na nota enviada ao jornal, padre Gustavo Covarrubias Rodríguez, vice-provincial dos Missionários Combonianos do Brasil Nordeste, expressou “o mais enérgico repúdio” à matéria de O Liberal. “Nela, entre outras coisas inverídicas e absurdas, e de colagens de dados cruzados, desconexos e incompletos, cita-se a minha presença num encontro promovido pela equipe coordenadora da campanha 'Justiça nos Trilhos', no dia 19 de agosto do ano presente. Indigna-nos, sobretudo, a forma absurdamente prolixa, tendenciosa e difamatória da matéria, ligando-os a hipotéticos atos ilegais que afetam a companhia Vale. A própria campanha, na qual nós temos representantes da nossa entidade, sempre moveu-se dentro do marco jurídico vigente”, disse o religioso.

Os participantes do encontro ficaram intrigados: como o jornal conseguiu as informações se não mandou ninguém para cobrir a reunião? Dela participaram apenas poucas pessoas, integrantes da campanha, que enviou convites a todos os veículos de comunicação e apresentou a pauta dos debates através do seu site na internet. Nenhum órgão da imprensa se interessou pela pauta. Não havia estranhos no auditório da CNBB. As exposições consistiram na apresentação da campanha através de um power point e de um folder.

A campanha, segundo artigo escrito pelo jornalista Rogério Almeida, logo depois das matérias de O Liberal, foi criada “para a produção de base técnica que possa subsidiar um grande debate durante o Fórum Social Mundial, que tem como Belém como sede, em janeiro de 2009”. Seu objetivo é “o acúmulo de informação e forças no Pará e Maranhão e exterior para a realização de grande debate sobre os impactos da ferrovia de Carajás. Nesse sentido, a partir de uma parceria com universidades do Maranhão e Pará, vem construindo uma base de dados jurídicos e sócio-econômicos”. Outra ação da frente é “a mobilização em municípios impactados pela ferrovia e nas capitais dos estados, São Luís e Belém”.

Prática rotineira

Ao noticiar fato tão grave com base numa “fonte anônima” (ou muito mais precária do que anônima), sem fazer qualquer checagem própria depois, e abandonando o tema sem esclarecer se a denúncia é verídica ou falsa, O Liberal mais uma vez desserviu a opinião pública com seu procedimento leviano no trato com as informações. Uma coisa é bloquear a ferrovia de Carajás, uma concessão pública outorgada à Companhia Vale do Rio Doce por 50 anos, como ocorreu seis vezes nos últimos meses, e outra é tentar avaliar o impacto que o grande empreendimento representa para a população, e tirar mais benefícios do que os disponíveis, notoriamente insuficientes e injustos (daí o título da campanha: “justiça nos trilhos”).

Nenhum dado concreto sequer insinuou essa intenção durante o encontro realizado na sede da CNBB. Ao anunciá-lo de forma estrepitosa e superficial, sem uma fonte de crédito, O Liberal mostra que seu propósito não é manter os paraenses bem informados, mas valer-se da informação para objetivos não declarados. Propósito semelhante ao daqueles que sonegam as informações do público ou as manipulam para tirar proveito do poder que têm. No caso do jornal dos Maiorana, essa já é uma prática rotineira e, por isso mesmo, lesiva aos interesses superiores da sociedade.

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Imprensa ruim

Alguém precisa dar um basta à ignomínia, já que os personagens responsáveis por essas “coisas” mergulharam no cinismo comercial e no desrespeito pela sociedade.

O caderno de polícia da edição da última segunda-feira do Diário do Pará, de propriedade do deputado federal Jader Barbalho, bateu o recorde de violência impressa. Na capa, três corpos de pessoas desfiguradas pelos tiros que receberam, em execuções sumárias. O olho de um dos mortos está praticamente fora da órbita, pressionado pela bala que penetrou em seu rosto, dilacerando-o. E assim saiu na fotografia, como se ela estivesse num laudo cadavérico, para circular apenas entre peritos do instituto médico-legal. Dentro do caderno, mais nove fotos de "presuntos", incluindo o olho reprisado.

Como os profissionais da imprensa resolveram desprezar os princípios éticos da profissão e seus deveres como cidadãos, cabe a pergunta: os promotores do Ministério Público do Estado que deviam cuidar dos direitos humanos não lêem jornal? Não incluem a manipulação da imagem dos três “pês” (pobres, pretos e prostitutas) e correlatos em suas atribuições? E o sindicato dos jornalistas, o que faz?

Triste é esta época para ser jornalista no Pará.

* Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal em Belém.

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