Televisão: Lobo-mau x Pollyana, na nova ordem digital

Jornais e sites especializados deram considerável destaque nos últimos dias a uma declaração de executivo da Rede Globo que lamenta a mudança de comportamento do mercado de comunicação com a disseminação da internet e da telefonia celular.

A afirmação foi feita durante participação na quinta edição do Fórum Internacional de TV Digital, no Rio. E diz respeito aos desafios [E AO IMPACTO] da nova ordem digital no meio televisivo. Com direito, inclusive, a um “nós éramos felizes e não sabíamos”.

Não se pode dizer que a declaração seja surpreendente [ou sequer novidadeira], afinal. A TV comercial aberta sempre se esquivou da idéia de adotar a multiprogramação – a possibilidade de ampliar o número de canais [quem sabe o de vozes e interesses] à disposição do brasileiro. Foi esta a queda de braço essencial que moveu os lobbies em favor da adoção do padrão japonês no país.

Em nome da “qualidade' da alta definição [que, por favor, ninguém seria capaz de dizer que não interessa] restringiu-se enormemente a idéia da multiplicação de canais – e, portanto, da suposta entrada de novos agentes no mercado de televisão aberta.

O maior dos truques neste sentido foi manter a mesma fatia do espectro [o “tubo” por onde trafegam os sinais] nas mãos de cada concessionário – ou seja, de cada grupo empresarial que recebe do Governo Federal o direito de explorar [EM TESE…] por determinado período, prorrogável ou não, o serviço de TV aberta.

A discussão, abafada ao máximo na época, contrapunha duas idéias. Uma defendia que o “dono” da outorga poderia fazer o que quisesse [como se vê, se quisesse…] com o espaço que sobra quando o sinal analógico [que ocupa todo o espectro,] é compactado digitalmente.

Na contraface, o argumento [encabeçado pelos movimentos em defesa da democratização das comunicações] era de que a outorga oferecia o direito de operar UM canal [ou seja, uma programação] e não de se usar o “tubo” inteiro. Não é preciso dizer quem levou a queda de braço…

A justificativa do diretor de engenharia da Globo, Fernando Bittencourt, no Fórum de TV Digital, é de que a ampliação do número de canais é inviável, do ponto de vista dos negócios.

E ele se respalda numa lógica simples: se o bolo publicitário [ou a “pizza”, como prefere] não vai crescer, não há o que justifique criar novos canais – o que demarca com clareza o posicionamento de que um patrimônio da sociedade como é a televisão existe apenas para servir a interesses empresarias, e não aos da população.

Não deixa de ser curioso constatar que a fala vem de uma empresa que mantém número razoável de [BONS!] canais na TV paga [com conteúdos de maior “interesse público”, na média, mas de acesso restrito]. O que permitiria supor que o investimento para a migração seria mínimo [OU NÃO?].

Outro trecho emblemático da fala de Bittencourt [fundamentado em números do mercado norte-americano…] se refere ao fato de que a TV não estaria perdendo audiência para as novas vias informativas e de entretenimento, mas diluindo-a entre outros meios, sem impactar o mercado de mídia. [Pollyana talvez fosse mais incisiva neste encontro com Lobo-mau no escuro da floresta digital…]

Em meio a todas as pressões da convergência de mídias e de discussões regulatórias [reverberadas pelo Congresso Nacional via PL-29, o projeto de lei que redefine papéis e espaços no cenário da TV paga e muda o jogo de forças com a produção independente e as empresas de telecomunicações], supor que as coisas têm chance de seguir como são parece semear girassóis em nuvens.

Chama atenção, também, o perfil dos profissionais destacados pelas emissoras para falar de TV digital em eventos sobre o tema. Assim como a Globo, Record e SBT foram representados na discussão por executivos de tecnologia – a Band, por seu vice-presidente.

Enquanto a TV digital continuar sendo tratada como mais um brinquedinho de engenheiros ou a nova lufada de impulsão das velas do mercado de eletroeletrônicos [sem encarar a fundo a inevitável reviravolta no modelo de negócios ou a nova lógica de empacotamento do conteúdo desta nova mídia – bidirecional, que faz do telespectador um ser ativo e participativo], a discussão continuará fora do foco que importa, em dissonância com os interesses [e necessidades] da sociedade.

É hora de fazer deste traste chamado televisor um porta-vasos, se muito. Mas se a mentalidade analógica não for aposentada junto, nada além vai florescer.

* Israel do Vale é diretor de programação e produção da Rede Minas.

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