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O fim da Idade Mendes

No fim das contas, a função primordial do ministro Gilmar Mendes à frente do Supremo Tribunal Federal foi a de produzir noticiário e manchetes para a falange conservadora que tomou conta de grande parte dos veículos de comunicação do Brasil. De forma premeditada e com muita astúcia, Mendes conseguiu fazer com que a velha mídia nacional gravitasse em torno dele, apenas com a promessa de intervir, como de fato interveio, nas ações de governo que ameaçavam a rotina, o conforto e as atividades empresariais da nossa elite colonial. Nesse aspecto, os dois habeas corpus concedidos ao banqueiro Daniel Dantas, flagrado no mesmo crime que manteve o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda no cárcere por 60 dias, foram nada mais que um cartão de visitas. Mais relevante do que tudo foi a capacidade de Gilmar Mendes fixar na pauta e nos editoriais da velha mídia a tese quase infantil da existência de um Estado policialesco levado a cabo pela Polícia Federal e, com isso, justificar, dali para frente, a mais temerária das gestões da Suprema Corte do país desde sua criação, há mais cem anos.

Num prazo de pouco menos de dois anos, Mendes politizou as ações do Judiciário pelo viés da extrema direita, coisa que não se viu nem durante a ditadura militar (1964-1985), época em que a Justiça andava de joelhos, mas dela não se exigia protagonismo algum. Assim, alinhou-se o ministro tanto aos interesses dos latifundiários, aos quais defende sem pudor algum, como aos dos torturadores do regime dos generais, ao se posicionar publicamente contra a revisão da Lei da Anistia, de cuja à apreciação no STF ele se esquivou, herança deixada a céu aberto para o novo presidente do tribunal, ministro Cezar Peluso. Para Mendes, tal revisão poderá levar o país a uma convulsão social. É uma tese tão sólida como o conto da escuta telefônica, fábula jornalística que teve o presidente do STF como personagem principal a dialogar canduras com o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás.

A farsa do grampo, publicada pela revista Veja e repercutida, em série, por veículos co-irmãos, serviu para derrubar o delegado Paulo Lacerda do comando da PF, com o auxílio luxuoso do ministro da Defesa, Nelson Jobim, que se valeu de uma mentira para tal. E essa, não se enganem, foi a verdadeira missão a ser cumprida. Na aposentadoria, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá tempo para refletir e registrar essa história amarga em suas memórias: o dia em que, chamado "às falas" por Gilmar Mendes, não só se submeteu como aceitou mandar para o degredo, em Portugal, o melhor e mais importante diretor geral que a Polícia Federal brasileira já teve. O fez para fugir de um enfrentamento necessário e, por isso mesmo, aceitou ser derrotado. Aliás, creio, a única verdadeira derrota do governo Lula foi exatamente a de abrir mão da política de combate permanente à corrupção desencadeada por Lacerda na PF para satisfazer os interesses de grupos vinculados às vontades de Gilmar Mendes.

O presidente do STF deu centenas de entrevistas sobre os mais diversos assuntos, sobretudo aqueles sobre os quais não poderia, como juiz, jamais se pronunciar fora dos autos. Essa é, inclusive, a mais grave distorção do sistema de escolha dos nomes ao STF, a de colocar não-juízes, como Mendes, na Suprema Corte, para julgar as grandes questões constitucionais da nação. Alheio ao cargo que ocupava (ou ciente até demais), o ministro versou sobre tudo e sobre todos. Deu força e fé pública a teses as mais conservadoras. Foi um arauto dos fazendeiros, dos banqueiros, da guarda pretoriana da ditadura militar e da velha mídia. Em troca, colheu farto material favorável a ele no noticiário, um relicário de elogios e textos laudatórios sobre sua luta contra o Estado policial, os juízes de primeira instância, o Ministério Público e os movimentos sociais, entre outros moinhos de vento vendidos nos jornais como inimigos da democracia.

Na imprensa nacional, apenas CartaCapital, por meio de duas reportagens ("O empresário Gilmar" e "Nos rincões de Mendes"), teve coragem de se contrapor ao culto à personalidade de Mendes instalado nas redações brasileiras como regra de jornalismo. Por essa razão, somos, eu e a revista, processados pelo ministro. Acusa-nos, o magistrado, de má fé ao divulgar os dados contábeis do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), uma academia de cursinhos jurídicos da qual Mendes é sócio. Trata-se de instituição construída com dinheiro do Banco do Brasil, sobre terreno público praticamente doado pelo ex-governador do DF Joaquim Roriz e mantido às custas de contratos milionários fechados, sem licitação, com órgãos da União.

Assim, a figura de Gilmar Mendes, além de tudo, está inserida eternamente em um dos piores momentos do jornalismo brasileiro. E não apenas por ter sido o algoz do fim da obrigatoriedade do diploma para se exercer a profissão, mas, antes de tudo, por ter dado enorme visibilidade a maus jornalistas e, pior ainda, fazer deles, em algum momento, um exemplo servil de comportamento a ser seguido como condição primordial de crescimento na carreira. Foi dessa simbiose fatal que nasceu não apenas a farsa do grampo, mas toda a estrutura de comunicação e de relação com a imprensa do STF, no sombrio período da Idade Mendes.

Emblemática sobre essa relação foi uma nota do informe digital "Jornalistas & Companhia", de abril de 2009, sobre o aniversário do publicitário Renato Parente, assessor de imprensa de Gilmar Mendes no STF (os grifos são originais):

      "A festa de aniversário de 45 anos de Renato Parente, chefe do Serviço de Imprensa do STF (e que teve um papel importante na construção da TV Justiça, apontada como paradigma na área da tevê pública), realizada na tarde do último domingo (19/4), em Brasília, mostrou a importância que o Judiciário tem hoje no cenário nacional. Estiveram presentes, entre outros, a diretora da Globo, Sílvia Faria, a colunista Mônica Bergamo, e o próprio presidente do STF, Gilmar Mendes, entre outros."

Quando festa de aniversário de assessor de imprensa serve para mostrar a importância do Poder Judiciário, é sinal de que há algo muito errado com a instituição. Essa relação de Renato Parente com celebridades da mídia é, em todos os sentidos, o pior sintoma da doença incestuosa que obriga jornalistas de boa e má reputação a se misturarem, em Brasília, em cerimônias de beija-mão de caráter duvidoso. Foi, como se sabe, um convescote de sintonia editorial. Renato Parente é o chefe da assessoria que, em março de 2009, em nome de Gilmar Mendes, chamou o presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP), às falas, para que um debate da TV Câmara fosse retirado do ar e da internet. Motivo: eu critiquei o posicionamento do presidente do STF sobre a Operação Satiagraha e fiz justiça ao trabalho do delegado federal Protógenes Queiroz, além de citar a coragem do juiz Fausto De Sanctis ao mandar prender, por duas vezes, o banqueiro Daniel Dantas.

 

Certamente em consonância com o "paradigma na área de tevê pública" da TV Justiça tocada por Renato Parente, a censura na Câmara foi feita com a conivência de um jornalista, Beto Seabra, diretor da TV Câmara, que ainda foi mais além: anunciou que as pautas do programa Comitê de Imprensa, a partir dali, seriam monitoradas. Um vexame total. Denunciei em carta aberta aos jornalistas e em todas as instâncias corporativas (sindicatos, Fenaj e ABI) o ato de censura e, com a ajuda de diversos blogs, consegui expor aquela infâmia, até que, cobrada publicamente, a TV Câmara foi obrigada a capitular e recolocar o programa no ar, ao menos na internet [ver, no Observatório da Imprensa, "Crônica de uma censura anunciada"].

Foi uma das grandes vitórias da blogosfera, até então, haja vista nem um único jornal, rádio ou emissora de tevê, mesmo diante de um gravíssimo caso de censura e restrição de liberdade de expressão e imprensa, ter tido coragem de tratar do assunto. No particular, no entanto, recebi centenas de e-mails e telefonemas de solidariedade de jornalistas de todo o país.

Registro moralizador

Não deixa de ser irônico que, às vésperas de deixar a presidência do STF, Gilmar Mendes tenha sido obrigado, na certa, inadvertidamente, a se submeter ao constrangimento de ver sua gestão resumida ao caso Daniel Dantas, durante entrevista no Youtube. Como foi administrada pelo Google, e não pelo paradigma da TV Justiça, a sabatina acabou por destruir o resto de estratégia ainda imaginada por Mendes para tentar passar à história como o salvador da pátria ameaçada pelo Estado policial da PF. Ninguém sequer tocou nesse assunto, diga-se de passagem. As pessoas só queriam saber dos HCs a Daniel Dantas, do descrédito do Judiciário e da atuação dele e da família na política de Diamantino, terra natal dos Mendes, em Mato Grosso. Como último recurso, a assessoria do ministro ainda tentou tirar o vídeo de circulação, ao menos no site do STF, dentro do sofisticado e democrático paradigma de tevê pública bolado por Renato Parente.

Como derradeiro esforço, nos últimos dias de reinado, Mendes dedicou-se a dar entrevistas para tentar, ainda como estratégia, vincular o próprio nome aos bons resultados obtidos por ações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), embora o mérito sequer tenha sido dele, mas de um juiz de carreira, Gilson Dipp. Ministro do Superior Tribunal de Justiça e corregedor do órgão, Dipp foi nomeado para o cargo pelo presidente Lula, longe da vontade de Gilmar Mendes. Graças ao ministro do STJ, foi feita a maior e mais importante devassa nos tribunais de Justiça do Brasil, até então antros estaduais intocáveis comandados, em muitos casos, por verdadeiras quadrilhas de toga.

É de Gilson Dipp, portanto, e não de Gilmar Mendes, o verdadeiro registro moralizador do Judiciário desse período, a Idade Mendes, de resto, de triste memória nacional. Mas que, felizmente, se encerra na sexta-feira (23/4).

 

* Leandro Fortes é repórter da revista CartaCapital em Brasília. É autor dos livros “Jornalismo Investigativo”, “Cayman: o dossiê do medo” e “Fragmentos da Grande Guerra”. Sua mais recente obra é “Os segredos das redações”. É criador do curso de jornalismo on line do Senac-DF e professor da Escola Livre de Jornalismo.

 

 

Pelo apoio eleitoral explícito

Não é novidade para ninguém que a imprensa – ou o de mais parecido com aquilo que hoje entendemos como tal – nasceu vinculada à política, aos políticos e aos partidos políticos. Historiadores da imprensa periódica nos países onde primeiro floresceu – sobretudo Inglaterra, França e Estados Unidos – concordam que ela começou política e, numa segunda fase, se transformou em imprensa comercial, financiada por seus anunciantes e leitores, chamando-se a si mesma de independente.

Apesar de todas as peculiaridades históricas, não há distinção em relação às origens políticas e partidárias da imprensa no Brasil. Escrevendo especificamente sobre "as reformas dos anos 50 [que] assinalaram a passagem do jornalismo político-literário para o empresarial", Ana Paula Goulart Ribeiro afirma:

“O jornalismo que se desenvolveu, no Rio de Janeiro, a partir de 1821 [com o fim da censura prévia] era profundamente ideológico, militante e panfletário. O objetivo dos jornais, antes mesmo de informar, era tomar posição, tendo em vista a mobilização dos leitores para as diferentes causas. A imprensa, um dos principais instrumentos da luta política, era essencialmente de opinião.” (Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50; E-Papers; 2007; p. 25).

Posição implícita

Estamos em ano eleitoral e os posicionamentos "implícitos" de apoio político partidário da grande mídia estão cada vez mais difíceis de simular. Os resultados comprometedoramente divergentes de pesquisas eleitorais, divulgados – ou omitidos – por institutos vinculados a diferentes grupos de mídia são apenas uma das muitas expressões públicas da partidarização crescente. Até mesmo a presidente da ANJ declarou que, sim, os "meios de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada" [ver, neste Observatório, "'Excrescências' do direito à comunicação"].

Não seria, então, democraticamente salutar que cada um dos veículos de comunicação do país explicitasse seu apoio eleitoral e abandonasse a falsa posição editorial de independência, como inusitada e corajosamente fez a própria presidente da ANJ?

O primeiro passo seria declarar: "Pelas razões x e y, apoiamos o candidato A, e não o candidato B". Ao assumir uma posição que já está implícita, tanto na pauta quanto no enquadramento de suas matérias, o veículo talvez ganhasse até mesmo em credibilidade, de vez que o leitor – que não é tolo – não se sentiria enganado.

Direito à informação e democracia

Há, no entanto, uma observação fundamental a ser feita. Seria salutar que jornais, revistas e concessionários do serviço público de rádio e televisão explicitassem editorialmente sua posição político-partidária. Se essa posição, todavia, contaminar deliberadamente a cobertura política, estará sendo violado o direito constitucional dos cidadãos de serem corretamente informados.

Declarar apoio político-partidário a candidatos em disputas eleitorais é comportamento rotineiro em democracias representativas e ajuda a tornar mais transparente todo o processo de disputa política. Isso não exime a grande mídia, no entanto, de seu compromisso ético e profissional com a verdade e o equilíbrio.

Na doutrina liberal, a informação correta, além de um direito do cidadão, serve de base primária para a formação de uma opinião pública autônoma e esclarecida, construtora das decisões do voto nas democracias.

Não é esse o compromisso fundamental da grande mídia?

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)

Rádios comunitárias: A promessa e a realidade

As rádios comunitárias nasceram no Brasil com a promessa de trazerem uma maior democratização às comunicações. O Brasil contava então – e conta ainda hoje – com um sistema concentrado em grandes redes, no qual a produção de conteúdos era bastante centralizada. Além disso, existia – e existe ainda hoje – um grande número de políticos que eram donos, direta ou indiretamente, de emissoras de rádio e de TV, fenômeno batizado de "coronelismo eletrônico".

Foi nesse contexto que a Lei nº 9.612/98, que criou oficialmente o serviço de radiodifusão comunitária, surgiu. Digo "oficialmente" porque muito antes, ainda na década de 1970, já existiam pequenas rádios que operavam em baixa potência, mas sem autorização. Foi justamente o crescimento desenfreado das rádios livres, especialmente no interior do país, que motivou a promulgação da lei das rádios comunitárias. Rádios que deveriam pertencer a todos e a ninguém, que deveriam estar abertas a qualquer um, sem distinção de classe, cor, credo ou opinião política. Uma rádio comunitária deveria estar livre dos interesses econômicos que norteiam rádios comerciais e dos interesses políticos daquelas que são instrumentos de um "coronel eletrônico".

Porém, o que a lei efetivamente criou foi um processo de outorga bastante complicado, repleto de exigências burocráticas, no qual apenas os mais fortes sobrevivem. E os mais fortes, nesse caso, são aqueles que contam com a ajuda providencial de políticos, que atuam como padrinhos das entidades que podem trazer-lhes algum ganho político, como mostra reportagem da dupla de repórteres Ana Paula Scinocca e Eugênia Lopes publicada no jornal O Estado de S. Paulo ("Políticos viram despachantes de luxo e apadrinham rádios comunitárias", 15/3/2010).

A figura do padrinho

Não por acaso, diversas pesquisas mostram que boa parte das mais de 3.900 rádios comunitárias autorizadas em todo o país estão longe de serem independentes. Na verdade, muitas delas pertencem a políticos e servem a interesses eleitorais específicos – o que o professor Venício A. de Lima e eu chamamos de "coronelismo eletrônico de novo tipo" em pesquisa publicada neste Observatório.

O "novo tipo", na verdade, designa apenas a esfera em que o fenômeno ocorre, que deixa de ser federal e passa a ser municipal. A estrutura de fundo permanece inalterada: concessões públicas, que deveriam prestar um serviço público, são utilizadas para fins particulares. Informação dá lugar a propaganda política e os prejuízos para a democratização das comunicações são enormes.

Há solução para o problema? Sim, por certo, e ela passa obrigatoriamente pela simplificação do processo de outorga. Com menos exigências, a figura do padrinho passa a ser dispensável. Entidades verdadeiramente comunitárias, por mais humildes que sejam, teriam a oportunidade de receber uma autorização para prestarem o serviço de radiodifusão. Teríamos assim mais rádios, mais pluralidade, mais fluxo de informações. Resta saber se há vontade política para se incentivar uma verdadeira democratização das comunicações.

* Cristiano Aguiar Lopes é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda.

O olhar solidário das favelas

A Escola de Fotógrafos Populares, sua agência e o banco Imagens do Povo são experiências do Observatório de Favelas. A escola pretende formar jovens moradores de favelas cariocas no ofício da fotografia e abrir-lhes caminho no mercado de trabalho. Mais do que isso: a escola busca realizar um trabalho de registro das comunidades populares a partir do olhar dos próprios moradores, além de difundir outras possibilidades de percepção dos espaços, distinta do olhar tradicional, marcado por sensacionalismo, pobreza e violência.

Para entendermos a importância desses projetos, que funcionam em conjunto com diversos outros do Observatório de Favelas, é importante pensarmos alguns conceitos. Entre eles, o de que os moradores das áreas populares vivem precariamente e são submetidos à dominação econômica e cultural das classes média e alta. Essa forma de exploração começou a se intensificar nos anos 1940, por ocasião do surgimento das primeiras favelas, e vem se exacerbando desde então. Uma de suas expressões é o conceito de “cidade partida”. De um lado, a cidade onde é formal e lógica a inclusão. De outro, a cidade da exclusão. A pobreza nas metrópoles, genericamente falando, não vem apenas dos salários baixos e dos empregos precários. A pobreza é resultante do reduzido acesso aos bens e serviços urbanos, tais como habitação, educação, saúde, segurança, entre outros. Falamos, portanto, de direitos à cidade que não foram respeitados e contemplados para todos os seus habitantes.

Valorização da participação popular

Segundo Diógenes Pinheiro, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professor no cursinho pré-vestibular popular dos Morros do Chapéu Mangueira e Babilônia, em Copacabana, o uso corrente e cada vez mais difundido do termo “cidadania” só pode ser compreendido se localizado na conjuntura política brasileira após o período autoritário, quando a tentativa de construção de uma sociedade democrática passava pela valorização da participação popular, pelo acesso e pela expansão do mundo dos direitos. “Atualmente, a permanência do termo cidadania em quase todos os projetos que se voltam para a compreensão das favelas indica, a nosso ver, duas dimensões complementares: de um lado, sua ausência visível, mesmo após quase 20 anos do restabelecimento da democracia no Brasil, mostrando que a democratização política e social seguiu a tradição brasileira de beneficiar prioritariamente a sua elite, incluindo aí as camadas médias, mas que não chegou às camadas populares. De outro lado, porém, essa ausência é cada vez mais tematizada, já que limita as liberdades básicas dessa elite, que se vê coagida pela presença envolvente das favelas e, principalmente, da violência, que hoje escapa dos limites das comunidades populares e chega ao asfalto.”

Assim, nesses discursos, a cidadania aparece, ou reaparece, como algo a ser doado “por uma elite iluminista, que vai à favela com seus projetos emancipatórios prontos e não vê o morador de espaços populares como um parceiro social, mas sim como alguém a ser trazido para o mundo da civilização, da cidade e seus valores. Sendo assim, um projeto de cidadania que não reconhece nas estratégias e nos estilos de vida desenvolvidos nas favelas nada de positivo”, afirma.

Existe uma desqualificação moral do outro, daquele que é diferente, no sentido de não repartir necessariamente os valores burgueses dominantes, traduzindo-se numa visão sobre os pobres em geral e os favelados em especial. Isso enfatiza dois lados: o da carência, onde são vistos como “coitadinhos”, logo inferiores; ou o “potencialmente criminoso”, que acha que o morador da favela tem mais tendência a ingressar no crime.

De sua parte, o poder público se apresenta de forma diferenciada diante do cidadão morador das favelas e daquele que habita a “cidade formal”. A discriminação aparece até nos projetos urbanísticos, ecológicos e sociais. Não se limpam praças de favelas com o mesmo empenho que são limpas as praças da zona sul, e a polícia age de forma totalmente diferente nos bairros nobres e nas favelas.

Há, na verdade, diversos graus de cidadania experimentados por quem ocupa posições assimétricas no território da cidade. Mas é importante destacar que, muitas vezes, a favela representa um projeto de cidade mais humano. Tomemos como exemplo a alta sociabilidade vista nas comunidades populares, onde quase todos os vizinhos se falam, onde há mais solidariedade nos momentos de dificuldade. Muitos economistas costumam se referir a essas comunidades como de “baixa renda”. Pergunto: por que insistir em defini-las sempre pelo negativo, pelo que não têm, por que não se referir a elas como comunidades de alta sociabilidade? A favela tem muito a dizer à cidade, basta ter abertura intelectual e afetiva para perceber isso.

Talvez por isso, os moradores das favelas cariocas teimem em não integrar uma ‘cidade partida’ e comungam inúmeras vezes os mesmos espaços da classe média formal. Para Diógenes Pinheiro, isso ocorre, por exemplo, nas festas. Há uma vocação para a felicidade nesta cidade que é única: a praia, a sensualidade, a beleza estão presentes e são pontos de encontro entre o morro e o asfalto. Os jovens, nas suas múltiplas tribos, são também um canal forte de ligação entre realidades e grupos diversos.

Hoje, as comunidades populares são palco de inúmeros movimentos e de diversas intervenções, seja de grupos locais, do Estado ou de organizações não-governamentais, todos voltados para atender suas principais demandas. No entanto, muitos projetos urbanos desconhecem que as comunidades querem ter atendidas as demandas de primeira, segunda e terceira ordem. Como necessidades de primeira ordem estão a habitação, água, luz e o saneamento, seguidas de saúde, educação e direitos. Finalmente, vêm as questões de gênero, racial, de identidades.

“Só um projeto articulado pode promover mudanças efetivas.” Dentro desse espírito, o projeto da Escola de Fotógrafos Populares funciona com 4 horas de aulas diárias. É fotografia de segunda a sexta-feira. Diferentemente de vários outros cursos, a escola substituiu o laboratório tradicional pelo ensino, por exemplo, da utilização do software Photoshop e suas formas de tratamento de imagem, além do manuseio de programas de gerenciamento de banco de imagens. Dessa forma, os fotógrafos que se formam e optam pelo documental podem colocar a edição de seus trabalhos na agência Imagens do Povo.

A Agência Escola de Fotógrafos Populares pretende trabalhar para que a fotografia seja um instrumento de arte, informação e de formação colocado a serviço do resgate da dignidade das classes populares e da ampliação dos direitos humanos. Trabalha com alunos vindos de várias comunidades e favelas. Tem também alguns estudantes da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Esse intercâmbio é fundamental.

O projeto parte da ideia de que democratizar a fotografia é derramar um olhar humano sobre a sociedade. Isso será feito através da produção e da difusão de imagens da realidade brasileira, especialmente das populações mais pobres que vivem nas periferias das grandes cidades, a partir do olhar dos próprios moradores desses espaços.

Direitos humanos

O sensacionalismo, a pobreza e a violência que caracterizam o olhar tradicional sobre as comunidades populares estão longe de dar conta da riqueza da experiência cotidiana vivida nesses espaços. Cabe, portanto, enfatizar também os sentimentos, os sonhos, o trabalho, o lazer, a diversão, a dor e a alegria. Enfim, a capacidade que as classes populares demonstram, cotidianamente, de resistir e persistir, de fazer da vida uma arte marcada por culturas e práticas diversas, mas que têm em comum a dignidade e a solidariedade.

O pano de fundo do projeto é discutir na sociedade e, principalmente, entre os moradores dos territórios populares, a comunicação e, portanto, a fotografia como um direito humano fundamental. Como diz o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas têm o direito de investigar a informação que desejam e de divulgá-la, sem sofrer censura, usando para isso de quaisquer meios.

Falamos, portanto, de dois grandes direitos: um universal e um individual, de todas as pessoas exercerem a comunicação, e o outro dos jornalistas profissionais. Um direito não pode ser censor do outro. Principalmente quando a comunicação contribui para estigmatizar e aumentar a violência nas favelas, nas áreas rurais e indígenas, nos espaços quilombolas. As comunidades têm de parir a própria comunicação para que sejam conhecidas em sua essência. Afinal, se não se divulga, se não se mostra, não se existe no conhecimento e no imaginário popular. Vivemos um momento em que a beleza das favelas, das comunidades rurais, dos sem-terra, dos quilombolas e dos índios está censurada, não é mostrada.

Mostrar o belo dessas pessoas e o bonito de suas lutas, para ajudar a sociedade dominante e a classe média a olhar com os óculos da dimensão da inclusão, da beleza e do fazer, é tão revolucionário quando denunciar as injustiças que esse povo sofre. A segregação começa na proibição de se mostrar o belo, a dignidade, a solidariedade, a vida em sua essência.

 

* João Roberto Ripper é idealizador do Projeto Agência-Escola Imagens do Povo.

 

 

Marcos regulatórios: Quem tem medo do debate?

[Sobre comentário para o programa radiofônico do OI, 7/4/2010]

Os feriados de Páscoa e as fortes chuvas no Rio deixaram para trás um assunto que voltou a ferver na semana passada. Outra vez, mais uma vez, uma vez mais a polêmica em torno da terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), anunciado em dezembro passado e mal digerido pela mídia nos meses seguintes, em especial nos tópicos relativos à responsabilidade social da mídia.

A pendenga avivou-se em meados de março, numa reunião ocorrida na Federação do Comércio, em São Paulo, com a presença de dirigentes de entidades empresariais da indústria da comunicação, quando o PNDH apanhou sem dó nem piedade de todos os palestrantes [ver "Os outros direitos humanos" (rolar a página)]. Foi ali, naquele encontro, que a presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, afirmou que os meios de comunicação no Brasil "estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada".

De longe, de perto

A frase infeliz repercutiu a torto e a direito, deu munição farta aos que veem na mídia um inimigo a ser eliminado, e recebeu tradução livre do ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que na terça-feira (30/3) afirmou, segundo a Folha de S.Paulo, que a presidente da ANJ "fala exatamente o que eu vinha dizendo como crítica. (…) `Na situação atual, em que os partidos de oposição estão muito fracos, cabe a nós dos jornais exercer o papel dos partidos´".

No mesmo dia a dirigente patronal rebateu o ministro, sublinhando que é papel da ANJ "defender a liberdade de expressão frente às seguidas tentativas do governo de criar regras para controlar os veículos de imprensa e os jornalistas". E deu como exemplos o projeto do Conselho Nacional de Jornalismo, as recomendações da Conferência Nacional de Comunicação e os pontos polêmicos do próprio Programa Nacional de Direitos Humanos.

Visto de longe, parece que estamos no limiar de atos institucionais ou da promulgação de decretos-lei. Visto de perto, são todas medidas – por mais polêmicas que sejam – que defendem a criação de marcos regulatórios, de alguma regulação que seja, sobretudo e principalmente para os canais de radiodifusão, que operam sob regime de concessão pública. Medidas que, ao fim e ao cabo, dependem de discussão e aprovação pelo Congresso Nacional – um "pequeno detalhe", aliás, convenientemente esquecido pelos críticos.

Por que, afinal, ter medo desse debate?

* Luiz Egypto é redator chefe do Observatório da Imprensa.