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O olhar solidário das favelas

A Escola de Fotógrafos Populares, sua agência e o banco Imagens do Povo são experiências do Observatório de Favelas. A escola pretende formar jovens moradores de favelas cariocas no ofício da fotografia e abrir-lhes caminho no mercado de trabalho. Mais do que isso: a escola busca realizar um trabalho de registro das comunidades populares a partir do olhar dos próprios moradores, além de difundir outras possibilidades de percepção dos espaços, distinta do olhar tradicional, marcado por sensacionalismo, pobreza e violência.

Para entendermos a importância desses projetos, que funcionam em conjunto com diversos outros do Observatório de Favelas, é importante pensarmos alguns conceitos. Entre eles, o de que os moradores das áreas populares vivem precariamente e são submetidos à dominação econômica e cultural das classes média e alta. Essa forma de exploração começou a se intensificar nos anos 1940, por ocasião do surgimento das primeiras favelas, e vem se exacerbando desde então. Uma de suas expressões é o conceito de “cidade partida”. De um lado, a cidade onde é formal e lógica a inclusão. De outro, a cidade da exclusão. A pobreza nas metrópoles, genericamente falando, não vem apenas dos salários baixos e dos empregos precários. A pobreza é resultante do reduzido acesso aos bens e serviços urbanos, tais como habitação, educação, saúde, segurança, entre outros. Falamos, portanto, de direitos à cidade que não foram respeitados e contemplados para todos os seus habitantes.

Valorização da participação popular

Segundo Diógenes Pinheiro, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professor no cursinho pré-vestibular popular dos Morros do Chapéu Mangueira e Babilônia, em Copacabana, o uso corrente e cada vez mais difundido do termo “cidadania” só pode ser compreendido se localizado na conjuntura política brasileira após o período autoritário, quando a tentativa de construção de uma sociedade democrática passava pela valorização da participação popular, pelo acesso e pela expansão do mundo dos direitos. “Atualmente, a permanência do termo cidadania em quase todos os projetos que se voltam para a compreensão das favelas indica, a nosso ver, duas dimensões complementares: de um lado, sua ausência visível, mesmo após quase 20 anos do restabelecimento da democracia no Brasil, mostrando que a democratização política e social seguiu a tradição brasileira de beneficiar prioritariamente a sua elite, incluindo aí as camadas médias, mas que não chegou às camadas populares. De outro lado, porém, essa ausência é cada vez mais tematizada, já que limita as liberdades básicas dessa elite, que se vê coagida pela presença envolvente das favelas e, principalmente, da violência, que hoje escapa dos limites das comunidades populares e chega ao asfalto.”

Assim, nesses discursos, a cidadania aparece, ou reaparece, como algo a ser doado “por uma elite iluminista, que vai à favela com seus projetos emancipatórios prontos e não vê o morador de espaços populares como um parceiro social, mas sim como alguém a ser trazido para o mundo da civilização, da cidade e seus valores. Sendo assim, um projeto de cidadania que não reconhece nas estratégias e nos estilos de vida desenvolvidos nas favelas nada de positivo”, afirma.

Existe uma desqualificação moral do outro, daquele que é diferente, no sentido de não repartir necessariamente os valores burgueses dominantes, traduzindo-se numa visão sobre os pobres em geral e os favelados em especial. Isso enfatiza dois lados: o da carência, onde são vistos como “coitadinhos”, logo inferiores; ou o “potencialmente criminoso”, que acha que o morador da favela tem mais tendência a ingressar no crime.

De sua parte, o poder público se apresenta de forma diferenciada diante do cidadão morador das favelas e daquele que habita a “cidade formal”. A discriminação aparece até nos projetos urbanísticos, ecológicos e sociais. Não se limpam praças de favelas com o mesmo empenho que são limpas as praças da zona sul, e a polícia age de forma totalmente diferente nos bairros nobres e nas favelas.

Há, na verdade, diversos graus de cidadania experimentados por quem ocupa posições assimétricas no território da cidade. Mas é importante destacar que, muitas vezes, a favela representa um projeto de cidade mais humano. Tomemos como exemplo a alta sociabilidade vista nas comunidades populares, onde quase todos os vizinhos se falam, onde há mais solidariedade nos momentos de dificuldade. Muitos economistas costumam se referir a essas comunidades como de “baixa renda”. Pergunto: por que insistir em defini-las sempre pelo negativo, pelo que não têm, por que não se referir a elas como comunidades de alta sociabilidade? A favela tem muito a dizer à cidade, basta ter abertura intelectual e afetiva para perceber isso.

Talvez por isso, os moradores das favelas cariocas teimem em não integrar uma ‘cidade partida’ e comungam inúmeras vezes os mesmos espaços da classe média formal. Para Diógenes Pinheiro, isso ocorre, por exemplo, nas festas. Há uma vocação para a felicidade nesta cidade que é única: a praia, a sensualidade, a beleza estão presentes e são pontos de encontro entre o morro e o asfalto. Os jovens, nas suas múltiplas tribos, são também um canal forte de ligação entre realidades e grupos diversos.

Hoje, as comunidades populares são palco de inúmeros movimentos e de diversas intervenções, seja de grupos locais, do Estado ou de organizações não-governamentais, todos voltados para atender suas principais demandas. No entanto, muitos projetos urbanos desconhecem que as comunidades querem ter atendidas as demandas de primeira, segunda e terceira ordem. Como necessidades de primeira ordem estão a habitação, água, luz e o saneamento, seguidas de saúde, educação e direitos. Finalmente, vêm as questões de gênero, racial, de identidades.

“Só um projeto articulado pode promover mudanças efetivas.” Dentro desse espírito, o projeto da Escola de Fotógrafos Populares funciona com 4 horas de aulas diárias. É fotografia de segunda a sexta-feira. Diferentemente de vários outros cursos, a escola substituiu o laboratório tradicional pelo ensino, por exemplo, da utilização do software Photoshop e suas formas de tratamento de imagem, além do manuseio de programas de gerenciamento de banco de imagens. Dessa forma, os fotógrafos que se formam e optam pelo documental podem colocar a edição de seus trabalhos na agência Imagens do Povo.

A Agência Escola de Fotógrafos Populares pretende trabalhar para que a fotografia seja um instrumento de arte, informação e de formação colocado a serviço do resgate da dignidade das classes populares e da ampliação dos direitos humanos. Trabalha com alunos vindos de várias comunidades e favelas. Tem também alguns estudantes da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Esse intercâmbio é fundamental.

O projeto parte da ideia de que democratizar a fotografia é derramar um olhar humano sobre a sociedade. Isso será feito através da produção e da difusão de imagens da realidade brasileira, especialmente das populações mais pobres que vivem nas periferias das grandes cidades, a partir do olhar dos próprios moradores desses espaços.

Direitos humanos

O sensacionalismo, a pobreza e a violência que caracterizam o olhar tradicional sobre as comunidades populares estão longe de dar conta da riqueza da experiência cotidiana vivida nesses espaços. Cabe, portanto, enfatizar também os sentimentos, os sonhos, o trabalho, o lazer, a diversão, a dor e a alegria. Enfim, a capacidade que as classes populares demonstram, cotidianamente, de resistir e persistir, de fazer da vida uma arte marcada por culturas e práticas diversas, mas que têm em comum a dignidade e a solidariedade.

O pano de fundo do projeto é discutir na sociedade e, principalmente, entre os moradores dos territórios populares, a comunicação e, portanto, a fotografia como um direito humano fundamental. Como diz o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas têm o direito de investigar a informação que desejam e de divulgá-la, sem sofrer censura, usando para isso de quaisquer meios.

Falamos, portanto, de dois grandes direitos: um universal e um individual, de todas as pessoas exercerem a comunicação, e o outro dos jornalistas profissionais. Um direito não pode ser censor do outro. Principalmente quando a comunicação contribui para estigmatizar e aumentar a violência nas favelas, nas áreas rurais e indígenas, nos espaços quilombolas. As comunidades têm de parir a própria comunicação para que sejam conhecidas em sua essência. Afinal, se não se divulga, se não se mostra, não se existe no conhecimento e no imaginário popular. Vivemos um momento em que a beleza das favelas, das comunidades rurais, dos sem-terra, dos quilombolas e dos índios está censurada, não é mostrada.

Mostrar o belo dessas pessoas e o bonito de suas lutas, para ajudar a sociedade dominante e a classe média a olhar com os óculos da dimensão da inclusão, da beleza e do fazer, é tão revolucionário quando denunciar as injustiças que esse povo sofre. A segregação começa na proibição de se mostrar o belo, a dignidade, a solidariedade, a vida em sua essência.

 

* João Roberto Ripper é idealizador do Projeto Agência-Escola Imagens do Povo.

 

 

A mídia que balança o berço

Nestes tempos de crianças expostas a tantos tipos de mídia, o velho provérbio “a mão que balança o berço governa o mundo” propicia uma reflexão sobre quem é realmente a maior autoridade na estrutura familiar. Tomando-se por autoridade aquele que provê a manutenção da família, supõe-se que ambos, marido e mulher, dividam entre si esse papel de governar a educação dos filhos. No entanto, cada vez mais, as crianças expressam valores e anseios contrários aos da educação recebida em casa e na escola. O fato é que elas dependem dos exemplos adultos para a construção de sua identidade. E, por acreditarem no que ouvem ou vêem, em sua lógica infantil, passam a ver a mídia [1] como outra autoridade dentro de casa.

Por meio dos sites, jogos eletrônicos, revistas, mensagens comerciais e programas inadequados, a mídia propõe-se a satisfazer, de várias formas, os desejos infantis que, pela manobra persuasiva, converte em necessidades. Expresso em números (Interscience, 2003), o resultado desse bombardeio de mensagens e apelos comerciais é de 80% de influência das crianças nas compras da família. Isso concorre para diminuir a autoridade dos pais perante os filhos. A propósito, há alguns meses, muita gente viu um comercial de automóvel equipado com um aparelho de DVD, insinuando que a atuação dos pais pode ser dispensável na vida dos filhos mediante a aquisição de determinada tecnologia. A mensagem mostrava dois carros na estrada. Num deles, os pais se desesperavam por não saber como conter as rusgas entre os filhos pequenos enquanto, no outro, equipado com o aparelho DVD, o clima era de total tranqüilidade pela atenção das crianças presa à tela.

O que melhor explica o fato dos filhos aderirem tão mais prontamente a tantas mensagens da mídia e desdenhar os ensinamentos dos pais é a permissividade expressa por ela das duas formas mais sedutoras para a criança: a ausência do “não”, palavrinha incômoda porém decisiva para a demarcação dos limites imprescindíveis à socialização; e a reverência irrestrita às vontades das crianças que só faz ampliar nelas a fantasia de poder ter tudo.

Um pequeno recorte na trama do filme de Curtis Hanson: “A Mão que balança o berço” – título, aliás, inspirado no citado provérbio, como explicita a fala de um de seus protagonistas –, ilustra essa atração dos pequenos por adultos complacentes demais com os desejos infantis. A trama gira em torno de uma babá aparentemente dedicada e afetuosa que começa a se apropriar das duas crianças de um jovem casal de forma lenta e sedutora. Valendo-se de sua maior disponibilidade de tempo junto aos pequenos, a babá permite à garotinha mais velha – cerca de cinco anos – assistir a um gênero de filme vetado à ela pelos pais em função de sua pouca idade. Como é de se esperar, a garotinha logo entende a babá como mais amorosa que seus pais.

De modo geral, tal cumplicidade com os caprichos infantis está presente em diversos tipos de mídia dirigidos às crianças. E a tendência é antecipar-se, cada vez mais, essa interferência na educação delas. Por isso, quem tiver hoje nos braços seu recém-nascido já não pode deixar para mais tarde a preocupação com os impactos da comunicação midiática na formação dos pequenos. Ela já está do lado do berço na forma dos programas para bebês.

Se nos faltam ainda dados de pesquisa para saber o que acontecerá, daqui a alguns anos, com os bebês “educados” via TV, não faltam experiências e estudos sobre a formação do psiquismo. Um bebê não tem estrutura mental para saber sequer quem é e o que é; não tem idéia de suas dimensões físicas; desconhece o mundo à sua volta e, sobretudo, é fusionado com sua mãe, tendo-a como uma extensão de si mesmo. Como concluiu o psicanalista e pediatra Donald Winnicott, um dos mais brilhantes estudiosos do desenvolvimento infantil, “não existe tal coisa chamada bebê, significando com isso que se decidirmos descrever um bebê, encontrar-nos-emos descrevendo um bebê e alguém. Um bebê não pode existir sozinho, sendo essencialmente parte de uma relação”.

Sendo assim, o que pensar sobre a relação de um bebê com um aparelho de televisão que fala e age, sem estabelecer um contato real com ele? Uma das primeiras formas de contato da criança com o mundo é a identificação projetiva, mecanismo psíquico por meio do qual ela projeta aspectos de si mesma sobre o outro enquanto sente como seus determinados aspectos deste outro em virtude do estado de fusionamento em que se encontra. Sendo assim, é fundamental refletir sobre o quê um bebê irá projetar na caixa de uma TV (sem sua mãe dentro), com uma seqüência de imagens ainda sem sentido ou valor para ele? E, pior ainda, que aspectos ele tomará do aparelho e da produção eletrônica como partes de si mesmo?

Se não podemos prever o futuro, olhemos o que já acontece, no presente, com tantas crianças que nos rodeiam, no cotidiano ou na prática clínica: natural nos primeiros anos de vida, o narcisismo (amor a si mesmo) e a onipotência (certeza de poder ser e ter tudo) andam durando além do previsto quando, até por volta dos seis anos, deveriam ter se convertido na capacidade de se preocupar com o outro. O que estará estimulando, então, nas crianças, o prolongamento dessas características? Quem pensou em interesse comercial, acertou no x da questão que envolve hoje a preocupação com os impactos da publicidade e de determinados tipos de entretenimento na formação das crianças. Alheio aos danos que pode trazer ao psiquismo infantil, o objetivo do marketing é implantar o quanto antes na criança a necessidade de consumir.

Como diz Suzan Linn, doutora em Educação e professora de Psiquiatria da Escola de Medicina de Harvard, em seu livro Crianças do consumo – A Infância Roubada, “quando nos referimos a produtos especificamente projetados para crianças “do berço à universidade” pode ser o máximo que alguém possa almejar, mas muitos fabricantes buscam lealdade à marca que dure do berço ao túmulo”.

Na reportagem “A perigosa relação do bebê com a TV”, do Jornal Observatório da Imprensa – a jornalista Leneide Duarte-Plon destaca um dos trechos do manifesto assinado pelos cientistas franceses Pierre Delion e Bernard Golse publicado por este jornal: "Numa época em que se fala muito de ecologia, é preciso que nos conscientizemos de que proteger nossos filhos do risco de desenvolver uma forma de dependência em relação à tela luminosa é uma forma de ecologia do espírito. Por isso, é urgente que nos mobilizemos para a criação de uma moratória que proíba a existência desses canais, antes que a ciência possa conhecer melhor a relação da criança pequena com a tela".

Pelo tanto que evoluímos, chega a parecer irreal que tenhamos hoje que nos revolver em argumentos para impedir que se continue penetrando um terreno tão frágil e misterioso como a psique de um bebê. E isso sob a proposta, desculpe, descabida de ampliar-lhe a inteligência e a criatividade como afirmam alguns argumentos de vendas desses programas para os pequenos.

Nascidos em berço de ouro ou em cestos pobres de palha, as perspectivas dentro de cada bebê estão intactas nessa fase do broto e não demandam outros cuidados além dos prescritos pela natureza. Os mais caros entre eles são o calor do seio materno, o alimento saudável, as vozes amorosas e a mão protetora que governa seu passo a passo até o contato pleno com a vida real.

Se há tanta preocupação com o desenvolvimento dos bebês, que ela seja convertida, então, para a melhora social do “berço” que os abrigará ao nascer. Nada substitui o amor e os efeitos que só ele pode produzir na construção de um novo indivíduo. Recordando uma vez mais a sabedoria e prudência de Winnicott: “Ainda temos muito que aprender sobre os primeiros tempos de uma criança e talvez só as mães possam dizer o que queremos saber”.

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[1] A mídia é, muitas vezes, legitimada pela audiência que os pais lhe prestam.

* Maria Helena Masquetti é psicológa do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, e  assina, no “Le Monde Diplomatique Brasil”, a coluna Consumo & Direitos.

A reinvenção do cinema e os jurássicos

A digitalização e a internet podem transformar todo o processo cinematográfico, democratizando a produção e multiplicando as platéias. Mas, agarrada a seu monopólio, a indústria do audiovisual quer manter as tecnologias superadas e a idéia de que arte é para quem pode pagar.

O cinema mudou pouco até o advento das tecnologias digitais. O som, a cor, melhoramentos nas películas, na projeção, entre muitos outros, foram aperfeiçoamentos numa tecnologia básica que se consolidou no finalzinho do século 19, na famosa sessão dos irmãos Lumière. O modelo básico de produção, de circulação e de exibição permaneceu o mesmo. Já a digitalização das imagens e sons mudou tudo. Criou um paradigma novo, em que todas as etapas do processo cinematográfico se transformam: a captação, montagem, finalização; a difusão, que já nem precisa ser física; e a exibição, que gera novos formatos, espaços, relações. Essas mudanças implicam também, é obvio, em novas bases e condições econômicas para todas as etapas.

Este período – e processo – de adaptação do paradigma de cinema, que estamos vivendo, tem curiosas similitudes com o que aconteceu na época do surgimento do cinema. Durante um tempo, não se sabia muito bem o que fazer com ele. É certo que aquilo podia dar dinheiro, mas não havia um modelo de negócio (como se diz hoje) estabelecido. Que formato deveria ter o espetáculo; como devia ser negociado, distribuído, exibido? Os primeiros vintes anos do cinema foram de formatação do produto, com o desenvolvimento da linguagem e o estabelecimento de uma narrativa adequada ao consumo. Foi um período de formação de platéias, que evoluíram das feiras e teatros de variedades para as salas fixas proletárias e finalmente para um público mais "respeitável". Foram anos de uma verdadeira guerra, para que se estabelecesse um modelo de comercialização entre produtores, distribuidores e exibidores.

Hoje há interessantes analogias com aquelas situações. As novas tecnologias criam novas possibilidades, que se tornam formatos, que necessitam de novas formas de distribuição e consumo, engendrando novos mercados, que pedem novos modelos de comercialização. E quanto isto estará mexendo com a linguagem?

O fato é que essa etapa de grandes transformações está estruturada em um modelo. Um modelo que não é muito duradouro, que ainda não tem regras estáveis – apenas entendimentos comerciais mais ou menos provisórios. Uma situação que procura segurança, tão cara aos grandes negócios, mas que de momento trava batalhas complexas e violentas pela repartição dos mercados. Uma realidade que, para a quase totalidade da população e para os produtores e realizadores audiovisuais, é elitista, excludente, unilateral e concentradora.

Há trinta anos, o Brasil tinha pouco mais da metade da população de hoje e pouco menos de 5 mil salas de cinema. O número de espectadores, por ano, andava em torno de 300 milhões. Nos anos 70 e 80, o modelo foi se transformando, de um cinema barato e popular para o figurino atual. Houve um período de crise aguda, quando o número de salas caiu para cerca de 900 e o público para quase 70 milhões anuais. Foi o fim dos cinemas na grande maioria das cidades e o desaparecimento dos cinemas de bairro.

Depois de uma "recuperação", sob o novo modelo de consumo de elite, nos multiplexes de xópins, o número de salas chegou a 2.200. No entanto, essas salas são bem menores que as daquele tempo não tão distante (que tinham 500 lugares ou mais) e fica a dúvida de se houve efetivamente um aumento do número de assentos oferecidos. Porque o público cresceu pouco, e tem rondado em torno de 90 milhões de espectadores anuais.

O senso comum diagnostica rapidamente: "é por causa do vídeo, do DVD, da TV a cabo, da banda larga". No entanto, nos países onde há mais acesso a todos esses recursos audiovisuais, o cinema apresenta números muito mais significativos. Nos EUA, são quase 40 mil salas de cinema. Mesmo no México, com condições mais parecidas e a metade da nossa população, o número de salas de cinema é 40% maior.

Em outras palavras, segundo dados de uma distribuidora estadunidense, mais ou menos 10% da população "vai pelo menos uma vez por ano ao cinema". Ou seja, 90% não vão nunca. Mais de 60% dos jovens entre 15 e 29 anos, nunca foram ao cinema. Outro corte: 92% dos municípios brasileiros não têm sala de cinema. Aliás, quase a metade dos cinemas (48%) está concentrada nos estados de São Paulo e Rio. Sergipe, com 75 municípios, só tem cinemas em Aracaju; de fato, 17 estados brasileiros têm 15% das salas de cinema do País.

Do lado da produção, o Brasil hoje faz quase 70 filmes de longa metragem por ano. No entanto, pelo menos 30% desses filmes simplesmente não são exibidos. Dos que conseguem chegar aos cinemas, quase todos são exibidos em situações muito precárias – de salas, datas – raramente atingindo números minimamente significativos. Explicando melhor: os filmes brasileiros ocupam cerca de 10% do mercado de exibição, ou seja, atingem em torno de 9 milhões de espectadores por ano. Desse público, uns dois terços concentra-se em dois ou três filmes (geralmente os que têm participação financeira de distribuidoras hollywoodianas, ou estão associados a empresas de comunicação), conforme o ano. E os outros 30, 40 filmes "partilham" o restante do público. Resumindo: 10% de um mercado que mal atinge 10% da população, significa que o cinema nacional se relaciona com menos de 1% dos brasileiros.

Que não se confunda esta constatação com uma forma qualquer de xenofobia. O cinema mundial — quer dizer, europeu, asiático, latino-americano, e mesmo o dos Estados Unidos, quando não é produto das corporações daquele bairro famoso de Los Angeles — enfrenta uma situação ainda pior. Na verdade é o concorrente, por excelência, do cinema brasileiro na mesma estreita faixa de 10% do mercado. O cinema plural, mundial, é geralmente exibido num circuito ainda mais limitado, de menos de uma dezena de cidades brasileiras, que contam com um bom "circuito de arte". No ano passado, durante várias semanas, dois títulos apenas ocuparam mais de 70% de todas as salas do País. Logo em seguida esse número passou para três títulos, em cerca de 80% dos cinemas. Ou seja, mesmo com uma arquitetura multiplex, a exibição é cada vez mais simplex, concentrada. Hoje entra no Brasil um terço do número de filmes que vinha nos anos 80, inclusive norte-americanos. E 85% das bilheterias de cinema no Brasil estão concentrados em três distribuidoras de Hollywood.

As tecnologias digitais, associadas aos recursos propiciados pela internet, criam condições para uma democratização muito grande da produção. A distribuição elimina as cópias em película — que custam milhares de reais cada uma — e a própria instalação de salas e equipamentos de projeção diminuem muito de custo. Tudo aponta para a oportunidade e a necessidade de um modelo de circulação dos produtos audiovisuais em bases diferentes das atuais e, principalmente, com ingressos a preços compatíveis com o poder aquisitivo da população. É como um novo parto do cinema, na virada de outro século.

No entanto, na transição de paradigmas, a chamada indústria do audiovisual tem procurado garantir um controle exclusivo do processo, garantindo suas "margens" através da manutenção de tecnologias superadas, pela restrição do acesso e com a preservação de uma situação geral de monopólio. Desta forma, o modelo não serve para o público, não atende às necessidades dos realizadores e impede uma verdadeira integração cultural com o mundo.

* Felipe Macedo assina a coluna Cineclubismo no Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.