“Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele apoio foi um erro”. Assim a Folha de São Paulo abre a semana em que se completam os 50 anos do golpe que instalou uma brutal ditadura civil-militar no Brasil: buscando justificativa para o seu apoio à repressão do Estado no que considera uma posição pertinente às condições da época. O editorial do jornal, publicado no dia 30 de março (domingo), segue linha parecida com a opinião do Estadão publicada nos dias 28 e 31 e com o mea culpa feito pelo O Globo no dia 31 de agosto do ano anterior.
No sumário título escolhido para o texto “Editorial: 1964”, a Folha opta por evitar qualquer posicionamento ou menção diante do fato histórico de que apoiou a Ditadura Militar no Brasil. Se inicia a redação criticando “a violência que a ditadura representou”, logo em seguida faz questão de distribuir “a responsabilidade pela espiral de violência” entre os “dois extremos” (direita e esquerda). Depois de compartilhar a responsabilidade da violência entre carrascos e vítimas, chega ao centro do seu argumento: “Isso não significa que todas as críticas à ditadura tenham fundamento”. A defesa aberta da Ditadura Militar vem em seguida.
A Folha destaca as “realizações” do regime, para negar a ideia de que teria sido um período de “estagnação ou retrocesso”. Tece elogios ao crescimento econômico promovido pela ditadura, à modernização, e “revela” o que seria o seu principal avanço social: a queda da mortalidade infantil. Para concluir afirma que se tratou de um período de “aprendizado” e que “é fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas circunstâncias”.
O Estado de São Paulo conta que o seu diretor Júlio Mesquita Filho foi um dos conspiradores do golpe, mas tenta expiar sua culpa destacando o seu rompimento com a Ditadura após o “desvio” que teria sido a edição do AI-2. Busca justificar o “inevitável” apoio pelo temor de que o presidente Jango, correligionário de Getúlio Vargas, instaurasse uma “república sindicalista em aliança com os comunistas”.
O Globo admite que as manifestações das ruas de 2013 arrancaram da empresa uma declaração pública sobre a “verdade dura” de que o grupo de empresas da família apoiou a Ditadura. Reconhece explicitamente como erro o apoio prestado, afirmando que “a democracia é um valor absoluto e, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma”, embora se preocupe na maior parte do texto em salvar a imagem do veículo e de Roberto Marinho que sempre teria estado “ao lado da legalidade” – esquecendo que o golpe de Estado não coube nesse conceito.
Redução de danos e interesses
“Com o objetivo de produzir novas memórias sobre a ditadura civil-militar na ocasião dos 50 anos do golpe de 1964, a Folha insiste em relativizar o próprio golpe”, critica Igor Sacramento, doutor pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECA/UFRJ) e um dos organizadores do livro “Jornalismo e o golpe de 1964”, ainda por ser lançado.
Sacramento se diz indignado com o editorial da Folha, no qual o golpe “ não é visto como um golpe de Estado conduzido pelos militares e apoiado por diversos setores da sociedade civil, como pela maior parte das empresas de comunicação, por exemplo, mas como meramente uma reação ao pretenso avanço do comunismo na política nacional”. “Novamente, 50 anos depois, a retórica do "perigo vermelho" é retomada como justificativa para aquele golpe de Estado”, explica.
Os interesses econômicos e comerciais, além dos ideológicos, são considerados pelo pesquisador como pontos fundamentais para entender o apoio das empresas de jornalismo à Ditadura. “É interessante observar que o grupo Folha, além dos benefícios do governo, também recebeu um tratamento especial de empresas nacionais e multinacionais, no que diz respeito à publicidade. Em 1965, aproveitando-se de mais duas oportunidades oferecidas pelo golpe, o grupo adquiriu os jornais Última Hora e o Notícias Populares”, afirma. Segundo ele, os jornais teriam se beneficiado também com facilidades na compra de papel, matéria-prima do setor.
A memória da ditadura a associa hoje a algo negativo e a internet torna mais difícil esconder algumas informações. Como ficou impossível negar o apoio prestado no passado, as grandes empresas jornalísticas resolveram no cinquetenário do golpe minimizar os danos e apresentar sua versão. Assim explica Mônica Mourão, que em sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) aborda o trabalho de comunistas nas redações de jornal.
“A seleção que esses veículos estão fazendo tenta minimizar os danos de suas ligações com a Ditadura”, explica Mourão, que também é militante do Intervozes. Segundo ela, a tese de reação à radicalização não se sustenta. “Existiam vários grupos de oposição à ditadura que não eram necessariamente “radicais", como o próprio PCB. Era impossível que alguém que trabalhasse no jornal não entendesse que se tratava de um regime de exceção. Eles estão tentando esquecer o que é desconfortável”, explica.