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valorizar quem constrói a rede no país internet como agenda nacional

Pesquisa revela que 55% dos brasileiros não percebem vida online fora da plataforma criada por Mark Zuckerberg

Por Jonas Valente*

A Fundação Mozilla publicou neste mês uma versão preliminar de um relatório anual sobre a “Saúde da Internet” (Internet Health, no termo empregado pela entidade). O conceito abarcaria a plena realização do potencial da rede, incluindo a “criatividade coletiva, a invenção e livre expressão”. Essa condição inclui cinco eixos: (1) o grau de abertura (capacidade de produzir e difundir sem barreiras ou impedimentos); (2) o quão a rede é acessível para todos; (3) quem controla e o quão centralizada é a rede; (4) o nível de segurança e privacidade; e (5) a apropriação e o empoderamento dos internautas para lidar com as tecnologias e usar os recursos disponibilizados pela web.

O estudo traz um dado alarmante: 55% dos brasileiros consideraram que o Facebook é a Internet. Ou seja, mais da metade dos entrevistados afirmou não perceber vida online fora da plataforma. O País perde apenas para Índia, Indonésia e Nigéria nesta visão, que tiveram índices de resposta maiores. Já nos Estados Unidos, apenas 5% dos entrevistados igualaram a web ao Facebook. O levantamento foi divulgado originalmente pelo site Quartz, especializado em economia digital.

Embora o fenômeno não seja exclusividade tupiniquim, o alerta trazido pelo dado é potencializado pelo crescente avanço do Facebook no Brasil. O país é o terceiro em número de usuários da plataforma (90 milhões), atrás apenas dos EUA (191 milhões) e da Índia (195 milhões).

Se considerada a proporção entre o total da população, o Brasil sobe para a segunda colocação com 45%, apenas atrás dos EUA (59%), os dois muito acima da Índia (14%). Considerando a diferença entre a conectividade entre os dois – maior lá (75%) do que aqui (59%) – e o fato de que a questão teve baixíssimo índice de endosso na terra de Trump, o Brasil assume posição de destaque neste assustador ranking: oito em cada 10 brasileiros conectados estão na plataforma.

A estatística, contudo, não é uma percepção desviante de internautas com baixa apropriação tecnológica, mas reflete um objetivo almejado pela plataforma: ser A Internet ou, na impossibilidade disso, a principal porta de entrada para ela. A primeira estratégia, e mais ousada para isso, é o projeto Free Basics, em que a empresa busca parceria com governos e operadoras para ofertar acesso à “Internet” a pessoas de baixa renda (não à toa o projeto era chamado originalmente de Internet.org). No entanto, não se trata de Internet, mas de um pacote que envolve o acesso ao Facebook e a determinados aplicativos e sites escolhidos por ele. Neste caso, a web seria literalmente o Facebook para bilhões de pessoas, se confirmadas as intenções de Zuckerberg. O projeto foi alvo de críticas por entidades de todo o mundo.

WebA Fundação Mozilla alerta para o perigo da concentração de propriedade na Internet

Império econômico
A segunda estratégia é no âmbito do mercado. Se por um lado a companhia não está, ainda, avançando verticalmente (seja na produção de conteúdo audiovisual próprio, como faz a Amazon, ou entrada no mercado de fabricantes de dispositivos, como fez a Microsoft e o Google), por outro, ela constituiu uma hegemonia no mundo das plataformas digitais. Atualmente são 1,79 bilhão de usuários únicos, sendo mais de 1 bilhão com uso frequente. Além disso, a empresa controla o segundo e o terceiro aplicativos mais usados do mundo, o Whatsapp e o Facebook Messenger, ambos na casa de 1 bilhão de usuários.

Ela ainda adquiriu outro app na lista dos maiores do mundo: o Instagram, com 600 milhões de usuários, sendo 100 milhões somente no segundo semestre de 2016. A exceção e o obstáculo ao império de Zuckerberg estão na China, onde o aplicativo WeChat é adotado por 90% dos internautas, segundo o relatório. Para além das mensagens instantâneas, ele é usado para outros serviços como transações bancárias, agendamento de taxis e compras.

O relatório da Fundação Mozilla alerta para o perigo da concentração de propriedade na Internet e apresenta uma defesa enfática de um ambiente mais descentralizado. “Descentralização é a chave para garantir que a Internet continue um recurso público que é saudável e disponível para todos nós e que não é controlado por poucos governos ou conglomerados. Se conseguimos fazer isso, é possível que a Internet permaneça a força para a liberdade e a criatividade humanas. Se não, o futuro deverá ser mais distópico”.

Filtros, algoritmos e “efeito bolha”
A terceira estratégia do Facebook está no controle da circulação de informação. Ela passa pela definição da dinâmica de funcionamento do feed de notícias (denominado na empresa de NewsFeed), o mecanismo que seleciona os posts disponibilizados a cada usuário na sua timeline. Ele se baseia em um algoritmo no qual o Facebook define quem e o que deve ter mais peso. O domínio deste fluxo não é trivial. Segundo o relatório 2016 de Notícias Digitais do Instituto Reuters, 72% dos brasileiros entrevistados afirmaram usar as redes sociais como fontes de informação.

Uma primeira questão a ser levantada diz respeito à organização das timelines por meio de algoritmos. Esses sistemas de processamento e decisão automatizada em si são alvo de diversos questionamentos (como nessa entrevista dos integrantes do Intervozes, Marina Pita e André Pasti). No caso específico do Facebook, o uso do NewsFeed também tem gerado fortes polêmicas. Uma delas são as críticas ao chamado “efeito bolha”, segundo o qual a pessoa visualiza apenas o conteúdo relacionado à sua ideologia, em um claro prejuízo ao debate democrático e à diversidade de opiniões.

Outra polêmica são os casos de censura de determinados conteúdos, como a exposição de seios ou outras partes do corpo de mulheres. O Ministério da Cultura chegou a processar a plataforma por este motivo. A empresa adotou em determinado momento uma “curadoria de conteúdos” com jornalistas como forma de mediação para a filtragem do NewsFeed e dos Trending Topics (assuntos mais comentados), mas a experiência também foi alvo de críticas. Em seguida, a companhia decidiu deixar o algoritmo funcionando sem esta supervisão, mas se viu novamente envolta em forte questionamento após ele favorecer notícias falsas.

O levantamento do relatório da Fundação Mozilla mostra como há uma parcela representativa de brasileiros totalmente refém dos filtros estabelecidos pelo Facebook. O controle das notícias dá à plataforma a condição de decidir quem vai ter visibilidade e quem não terá. Seja na escolha de um critério ou em um veto deliberadamente político, o Facebook tem o poder de “porteiro” (gatekeeper, termo usado para designar o comando das mídias tradicionais que definem o que é publicado) junto a mais de 90 milhões de brasileiros.

Notícias falsas e parcerias
Outra questão é a potencialização das notícias falsas como consequência do “efeito bolha”.  Levantamento do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP revelou que na semana do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, três das cinco notícias mais compartilhadas eram falsas. Também nos EUA o Facebook foi questionado pela sua influência nas eleições presidenciais de 2016. No Brasil, esse efeito bolha potencializa a radicalização política e a ofensiva de criminalização da esquerda e dos direitos sociais em curso. As notícias falsas cumprem papel importante neste processo, sem um contraponto em outros tipos de mídia.

Mas a profusão dessas informações sem lastro na realidade também gerou questionamentos e levou o Facebook a abrir outra frente para tentar realizar o controle do fluxo de informações. A direção da empresa anunciou no fim de 2016 a criação de um mecanismo de classificação de notícias como falsas ou verdadeiras. Então, além do controle da circulação, a plataforma terá o poder de atestar o que é verdade e o que não é, podendo elevar a hegemonia da mesma de forma preocupante.

Além disso, lançou neste ano o “Projeto Jornalismo”, em que vai firmar parcerias com organizações de mídia. A medida é uma jogada para tentar se posicionar próximo às organizações que dispõem de alguma imagem de credibilidade. Mas é também o aprofundamento de outra tática de ambiente de circulação de notícias: o Instant Articles.

Pelo projeto, empresas de mídia podem fechar parcerias para que suas matérias apareçam diretamente na plataforma, sem ter que direcionar o leitor para o site do veículo. Segundo o Facebook, o recurso acelera em 10 vezes a velocidade de carregamento de um texto, aumenta em 20% a leitura e diminui em 70% a chance de abandono antes do fim. Em 2016, o serviço passou a ser usado por veículos brasileiros como Estadão, Exame e outros. Ou seja, o usuário passará a consumir notícias sem sair da plataforma. Esta medida reforça a percepção registrada no levantamento da Fundação Mozilla e pode contribuir para que o quadro de concentração na Internet não só não se altere como se aprofunde.

“Efeito antolho”
Esse mundo confinado do Facebook consiste, em última instância, em um fenômeno apelidado aqui de “efeito antolho” (viseira colocada nos cavalos para que olhem somente para frente). Para além do controle e enviezamento interno da plataforma já abordados, esse efeito tem implicações ainda mais graves quando usuários ignoram todo o mundo de possibilidades presente na Internet com fontes de informação, serviços e aplicativos e resume sua experiência ao Facebook.

Isso diminui em muito o potencial da web para os mais diversos campos. Estudantes, acadêmicos ou todo tipo de interessado em uma temática podem estar deixando de usar a Rede para pesquisar um mundo de fontes (a “biblioteca online” Wikipedia, por exemplo, tem 16 bilhões de acessos mensais). Artistas e criadores podem estar deixando de produzir imagens, vídeos e áudios em distintos repositórios e dentro de inúmeros circuitos de troca. Cidadãos podem estar deixando de acompanhar as ações e os gastos de governos e políticos por meio de espaços como o Portal da Transparência, prática que deveria ser cotidiana em uma conjuntura em que se fala tanto de combate à corrupção.

Tal cenário sinaliza um retrocesso preocupante. Nos debates sobre inclusão digital, ganhou força a preocupação com o que ficou conhecido como “alfabetização digital”: não bastava garantir acesso, era necessário fazer com que os internautas se apropriassem das tecnologias e dos recursos para a plena participação no mundo online. A percepção evidenciada na pesquisa dá um passo atrás nesse movimento, levantando a questão de que não se trata apenas de aprender a lidar com os recursos tecnológicos, mas de conhecimento do que é a Internet e da criação de uma cultura de fruição deste meio que vá além da timeline do Facebook.

A afirmação pode parecer trivial para o leitor deste texto que dispõe desta consciência, mas se justifica pela força do dado indicado pelo levantamento e deve ser tratada como um dado alarmante. Além disso, ela deve ser percebida no contexto das estratégias listadas componentes de um perigoso movimento do Facebook para de fato fazer com que a percepção limitada se torne realidade de fato com a tentativa de “cercar” a Internet e fazer da navegação uma experiência limitada à plataforma. Em um momento em que se discutem os riscos reais à democracia no Brasil, e por que não dizer do mundo, colocar o debate sobre a relevância do Facebook e desses impactos é fundamental.

Outros dados do relatório:

– Há hoje 1,1 bilhão de sites na web;
– Há 1 bilhão de obras com licenças Creative Commons, que permitem a reprodução, alteração e reuso;
– 27% dos sites são feitos na plataforma wordpress, baseada em tecnologia de código aberto;
– Há um avanço de medidas de proteção de copyright que ameaça a inovação e é anacrônica em relação à vida digital atual;
– Em 2016, ocorreram 51 derrubadas da Internet em 18 países;
– 3,3 bilhões de pessoas possuem acesso à Internet, 50% da população;
– 58% da população mundial não tem dinheiro para pagar por um serviço de banda larga;
– A China é o país com o segundo maior número de internautas, mas somente 2% do conteúdo circulante na web é em mandarim;
– 52% dos sites são em inglês, embora somente 25% da população mundial compreenda o idioma;
– A estimativa é que somente 16% da população dos países mais pobres esteja conectada em 2020;
– O ranking existente sobre liberdade na rede ainda lista 65 países classificados nos quais a web não é livre ou é parcialmente livre;
– Os 10 países mais ricos embolsam 95% da renda obtida com aplicativos. Economias emergentes ficam apenas com 1% desse valor;
– 94% das buscas em smartphones são feitas no Google;
– Somente 50% dos estadunidenses se preocupam com a quantidade de dados sobre eles disponível na web;
– Somente um vazamento de dados, relatado pelo Yahoo, atingiu 1 bilhão de pessoas.

*Jonas Valente é jornalista, doutorando em Sociologia da Tecnologia na UnB e membro do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Legislação deve proteger dados pessoais, reivindicam entidades

Excesso de informações para adesão a serviços e acesso a arquivos sem relação com a finalidade dos dispositivos contratados são alguns dos problemas constatados

Representantes de entidades da sociedade civil consideram que o Projeto de Lei 5276/2016, do Poder Executivo, possui uma melhor definição para proteção de dados pessoais do que o Projeto de Lei (PL) 4060/2012. O primeiro é resultado de um amplo debate público promovido de forma on-line pelo Ministério da Justiça, que teve duração de quase seis meses e recebeu mais de 1.100 contribuições. Ambos os projetos tramitam de forma apensada na Comissão Especial sobre Tratamento e Proteção de Dados Pessoais da Câmara dos Deputados.

Segundo Bruno Bioni, do grupo de pesquisa em políticas públicas de acesso à informação da Universidade de São Paulo (Gpopai/USP), a definição apresentada no PL 4060/2012 é reducionista, pois só considera como informação pessoal os dados exatos e únicos sobre a pessoa. “É preciso entender que fragmentos de dados agregados também podem identificar uma pessoa. Essa é uma definição expansionista que é utilizada por conselhos em todo o mundo com uma preocupação real de defender os dados pessoais do cidadão”, afirma.

O pesquisador cita o artigo 13 do PL 5276/2016 como imprescindível na definição de dados anônimos que devem ser protegidos. “Pedaços de informações que, quando unificados, passam a ter rosto e endereço não podem ser ignorados na proteção de dados. Esse é um conceito de segurança jurídica aliado à inovação”, frisa Bruno.

Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, entende que a proteção dos dados pessoais é fundamental e que o Brasil carece desse debate. “Existe uma mercantilização brutal do uso de dados. Precisamos passar por um processo educativo. A legislação precisa reequilibrar a relação entre mercado e usuário. A maior parte da população nem sabe que seus dados são coletados”, destaca. Bia, Bruno e outros representantes de entidades da sociedade civil participaram no dia 14 de uma audiência pública de debate sobre os projetos em tramitação.

A coordenadora lembra que a legislação da maioria dos países europeus traz elementos que favorecem aos usuários tomarem conhecimento de quais dados estão sendo compartilhados. “Essas legislações trabalham para garantir ao cidadão esse entendimento e, assim, assegurar o consentimento livre, informado, inequívoco e expresso” deste usuário sobre o compartilhamento de informações a seu respeito.

Acesso desnecessário a dados dos usuários
Bia Barbosa critica as táticas usadas por algumas empresas para colher dados dos usuários, citando como exemplo os aplicativos que pedem acesso a vários arquivos de dispositivos móveis (celulares, tablets, etc) que não são necessários para suas funcionalidades. Ela defende que o titular seja informado sobre a coleta e o uso que será feito dos dados. Também enfatiza que o usuário deve ter poder de decisão quanto à eliminação dos dados no momento da rescisão do contrato.

A coordenadora do Intervozes destaca que a inclusão de alguns termos deve ser assegurada na legislação, entre os quais:
– o entendimento de que as atividades contratadas têm boa fé;
– o princípio da finalidade (os dados recolhidos devem ter uma função específica declarada para a realização do serviço);
– a granulação de acesso aos dados, de forma que haja níveis de permissão na utilização de um serviço e o usuário possa decidir se quer ou não permitir acesso em alguma pasta de seu aparelho;
– a garantia de que as aplicações trabalharão com uma coleta mínima de dados;
– a possibilidade do titular dos dados se opor, retificar, corrigir e revogar as informações;
– a destruição dos dados a partir da decisão do usuário de rescindir o contrato.

Agente regulador independente X autorregulação
Para Rafael Zanatta, pesquisador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o PL 4060/2012 desmonta tudo o que se avançou na proteção de dados nos últimos anos. Ainda assim, ele acredita que é possível dialogar com empresários para definir uma melhor solução para o consumidor.

“Temos alinhamento e acordo em algumas questões, como a regulação por uma autoridade independente, que irá garantir a segurança jurídica, expertise técnica e implementação das políticas públicas, mas divergimos no que se trata ao conceito limitado de dados pessoais e dados sensíveis. Também divergimos sobre a falta de responsabilização das empresas sobre lesões, fraudes, etc., como defendem estas empresas”, ressalta Rafael.

Ainda sobre o agente regulador, as entidades que estiveram presentes na audiência pública defendem que o mesmo seja criado a partir do Estado, pois a autorregulação – que é defendida pelos empresários – só regula o setor privado. E o setor público também faz uso da coleta de dados. Para as entidades, essa autoridade deve ser independente para garantir a privacidade e segurança dos dados pessoais.

Os representantes da sociedade civil reforçam que o projeto de lei de proteção de dados que está em discussão na comissão especial da Câmara dos Deputados não pode excluir a responsabilidade das empresas que recolhem os dados, quando houver um vazamento de informação por uma terceira parte. Na forma como se encontra, o PL 4060/2012 fere o Código de Defesa do Consumidor, o Marco Civil da Internet e jurisprudências já firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Cadastro Nacional de Acesso à Internet agride liberdade de expressão, afirmam especialistas

A Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados realizou nesta terça-feira, 13, audiência pública para debater o Projeto de Lei 2390/2015, que cria o Cadastro Nacional de Acesso à Internet. Um ponto muito abordado pelos palestrantes no encontro foi o de que o mecanismo pode violar direitos, entre eles a liberdade de expressão e o acesso livre à informação, além de não ser eficaz no atendimento ao objetivo para o qual foi proposto, que é o de proteger crianças e adolescentes de conteúdo impróprio.

Cristine Hoepers, gerente-geral no Centro de Estudos, Respostas e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil, apresentou em sua fala preocupações com o projeto do ponto de vista técnico. “A internet é uma rede global baseada em padrões abertos sem controle centralizado. A criação de um cadastro pode criar um ponto de falha de acesso à internet”, disse ela. Ou seja, qualquer instabilidade no cadastro poderia parar a rede no país. Cristine ainda destacou que o ponto de controle centralizado da internet poderia causar vulnerabilidade de todo o sistema a códigos maliciosos, tornando-se alvo para ataques e roubo de informações.

A representante da Associação Brasileira de Internet, Carol Conway, explanou sobre os softwares de controle parental, mais apropriados para o monitoramento de conteúdo e a proteção de crianças e adolescentes propostos do que a criação de um cadastro nacional. “Hoje, [os softwares de controle] são a melhor solução, por não interferirem na rede. Esses programas de controle dos pais permitem bloquear os sites indesejados. Não são muito conhecidos, mas são muito úteis”, frisou, destacando a importância de uma ampla divulgação desses programas.

Conway lembra que o Marco Civil da Internet no Brasil, considerado um exemplo a ser seguido por vários países europeus, destaca em seus artigos 3º e 7º a garantia da liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a preservação e garantia da neutralidade das redes. Além disso, ele já prevê a proteção de crianças e adolescentes em seu artigo 29, que trata sobre controle parental e porteira de acesso (indicação de site impróprio para menores) como forma de proteção da infância.

Outra questão levantada na audiência foi a possibilidade das pessoas procurarem provedores de fora do país, por não concordarem com o sistema de cadastro. “Essas questões influenciam inclusive na questão da economia brasileira, já que os usuários buscarão por provedores de fora do país” para garantirem sua privacidade e direitos, alerta Carol Conway.

Estruturação para combater crimes

O presidente da SaferNet Brasil, Thiago Tavares, apresentou dados sobre o impacto da criação de um Cadastro Nacional de Acesso à Internet para a sociedade brasileira. “Em 2007, já fizemos esse debate no Senado e a proposta foi superada com o debate que gerou o Marco Civil da Internet. O que falta é uma conscientização do usuário de como se portar na web”, argumentou ele, reforçando que o valor que seria investido para a criação do cadastro pode ser revertido para a estruturação dos órgãos responsáveis por combater os crimes praticados na internet.

“Hoje existem mais de 100 mil notificações de crimes contra crianças e adolescentes na rede. Porém, falta estrutura para que a Polícia Federal, Ministério Público e Polícia Civil consigam resolver os casos e aplicar as punições”, lamenta.

“O projeto é bem-intencionado, mas pode ter efeitos colaterais indesejados”, avalia Thiago Tavares. Ele também destaca que o custo para implantar a medida seria de bilhões, o que mesmo assim não garantiria sua eficiência, já que o cadastramento poderia ser facilmente burlado caso os usuários utilizassem redes abrigadas no exterior.

Um exemplo para fortalecer o uso consciente da internet, segundo Tavares, é o projeto Ministério Público pela Educação Digital nas Escolas, desenvolvido pelo Ministério Público Federal. Ele oferece a educadores das redes públicas e privadas de ensino subsídios para o desenvolvimento de atividades pedagógicas para o uso seguro e cidadão da internet.

Projeto regride em direitos fundamentais

Bia Barbosa, coordenadora-executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, reforça que direitos fundamentais estarão em risco com a criação do cadastro para acesso à internet. “Esse cadastro pede um conjunto de dados que ficaria sob ‘proteção do poder público’, e esse é um fator que permite que direitos fundamentais possam ser comprometidos e violados caso o projeto seja aprovado nos termos atuais, como temos apontado na Coalisão Direitos na Rede”, explica ela.

A coordenadora lembra que a obrigatoriedade e a restrição de acesso na forma como são trazidos no projeto de lei afetam o direito de acesso à informação. “A realização de um cadastro que precisa do deferimento de ‘alguém’ é já restritiva por si mesma. Além disso, a navegação dos usuários dependerá de uma aprovação que poderá acontecer ou não, devido a problemas técnicos”, enfatiza.

Bia também destaca que não estão claros no projeto pontos importantes como quem vai definir se os sites e seus conteúdos são apropriados ou não, a quem cabe fazer a análise desse conteúdo e quais os critérios que serão utilizados nesta análise? “Há aqui um indicativo de violação à liberdade de expressão e comunicação. A internet é um  espaço de informação, mas também um espaço de liberdade de expressão”.

Há ainda o ponto relevante da vigilância na internet, muito criticada em países europeus. Conforme lembra Bia, além da violação da privacidade ocasionada por esta vigilância, existe um forte risco de que esse “grande banco de dados” seja passível de invasão. “Os próprios direitos das crianças e adolescentes podem ser violados por serem usados para fins comerciais”, aponta.

Para Bia Barbosa, o caminho para proteger crianças e adolescentes de conteúdo impróprio na internet passa por um necessário “enfrentamento cultural do problema”, pela disseminação de melhores práticas para os pais e pela classificação do conteúdo de maneira indicativa, como o que já existe na TV, só que adaptado para a internet – indicação da faixa etária apropriada por tipo de conteúdo disponibilizado. “Temos que aproveitar as boas práticas que o Estado já desenvolveu e aplicá-las para o conteúdo da internet”, destaca.

A visão do autor do projeto

O deputado Franklin Lima (PP-MG), autor do Projeto de Lei 2390/2015, entende não haverá restrição de acesso à internet aos maiores de idade. “A internet continuará a mesma. Só quero criar um aplicativo que exija um cadastro dos usuários, para saber qual é a idade da pessoa, e que esse aplicativo bloqueie sites que não são recomendados para essa idade”.

Apesar de ter uma intenção justa, a medida é considerada um equívoco, pois não seria viável realizar a classificação de toda a rede, também devido à incompatibilidade com os termos de uso de outros países. Além de não ser eficiente e eficaz, pelos motivos apontados acima, a criação do cadastro nacional pode se tornar muito onerosa aos cofres públicos.

A deputada Luiza Erundina (Psol-SP) acompanha o andamento do projeto e acredita que o tema se torne complexo por envolver muitas áreas e assuntos, inclusive o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por isso, deveria ser estudado e debatido por mais tempo. “Não cabe ao Estado tutelar o desenvolvimento da criança”, enfatizou Erundina.

O PL 2390/2015, em análise na CCTCI, tem como relator o deputado Missionário José Olímpio (DEM-SP). O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado ainda por outras três comissões: Seguridade Social e Família; Finanças e Tributação; Constituição e Justiça e de Cidadania.

Coalizão Direitos na Rede

A Coalizão Direitos na Rede é uma rede independente de organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da internet livre e aberta no Brasil. Formada em julho de 2016, busca contribuir para a conscientização sobre o direito ao acesso à internet, a privacidade e a liberdade de expressão de maneira ampla. O coletivo atua em diferentes frentes por meio de suas organizações, de modo horizontal e colaborativo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Brasileiro está desprotegido diante do Estado que vende dados pessoais

Envio de informações de aposentados do INSS a empresa de crédito consignado demonstra a barbárie em que se encontra o direito à privacidade

Por Marina Pita*

Boa parte das pessoas respondem com um simples “eu não tenho nada a esconder” quando questionadas sobre suas necessidades de privacidade. Em geral, as pessoas pensam que quem não faz nada errado não precisa ter seus dados salvaguardados e acessíveis apenas a quem tiver autorização. Mas não é bem assim, e um caso recente pode nos ajudar a mostrar como são grandes os riscos da falta de privacidade.

No final de setembro, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) ajuizou uma ação civil pública contra o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) por ter permitido acesso aos dados dos aposentados e demais beneficiários da Previdência Social à Tifim Recuperadora de Crédito e Cobranças Ltda. A Tifim usa os dados para oferecer crédito consignado a aposentados por correspondência.

De acordo com o MPF-SP, os dados foram obtidos ilegalmente. Ao final do processo, a Procuradoria quer que a Justiça condene o INSS e a empresa ao pagamento de indenizações por danos morais individuais e coletivos.

Este não é um caso isolado de desrespeito do Estado no uso de dados dos cidadãos. Em 2013, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) repassou informações cadastrais de 141 milhões de brasileiros para a Serasa, empresa privada que gerencia um banco de dados sobre a situação de crédito dos consumidores do País.

Em nenhum momento foi perguntado aos cidadãos se eles queriam ou autorizavam a entrega de suas informações para empresas privadas de crédito ou de qualquer outro ramo econômico. Aliás, a ausência de acordo entre Estado e cidadãos sobre como seus dados serão utilizados é notória nas esferas federal, estadual, municipal, além de autarquias públicas.

Por fim, diante do assombro público e indignação causados pela divulgação do acordo do TSE com a Serasa, o contrato foi cancelado. Mas ninguém está seguro.

Ambos os casos provam que não é apenas para esconder ilegalidades que serve e privacidade, mas também para proteger os cidadãos nas relações de consumo e garantir que não haja vantagem justamente da parte economicamente mais forte.

Demonstram, ainda, a total falta de respeito, bom senso e ética do Estado brasileiro com os dados dos cidadãos, sem falar no desrespeito à Constituição, e, em consequência, a urgência de aprovação de uma lei de proteção de dados pessoais.

A entrega dos dados dos cidadãos pelo Estado é uma das formas mais absurdas de violação da privacidade, porque os cidadãos não têm a opção de não entrega das informações. É obrigado a entregar o Imposto de Renda todos os anos, por exemplo, e quem garante que estes dados serão mantidos em segurança dentro dos órgãos do governo?

Que não haverá repasse entre pastas e que uma delas chegará a formalizar acordo com empresa privada? As guardas legais para isso são frágeis, uma vez que o Brasil é um dos poucos países do mundo que até hoje não têm uma lei de proteção de dados pessoais.

Enquanto isso, permanece o impasse pela votação do PL 5276/16, que segue em tramitação na Câmara dos Deputados, relegado a segundo plano após o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

O PL, formulado e reformulado a partir de uma série de debates e negociações com os diversos atores interessados, estabelece que o tratamento de dados pessoais pela administração pública requer que o responsável informe ao titular as hipóteses em que será admitido o tratamento de seus dados.

O PL conta com uma seção específica para regular o tratamento de dados pessoais pelo poder público, em que deve ser realizado para atendimento de sua finalidade pública, na perseguição de interesses públicos.

De acordo com o texto, os órgãos do poder público devem informar as hipóteses em que realizam o tratamento de dados pessoais, com fácil acesso e atualizado constantemente – de preferência em seus sítios na web. O uso compartilhado de dados pessoais pelo poder público também deve atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas. E, finalmente, o PL veda ao poder público transferir dados pessoais a entidades privadas.

Mais uma vez, insistimos: é urgente a aprovação de uma lei de dados pessoais no Brasil porque, entre várias outras razões, o agravamento da crise econômica eleva o grau de risco de ampliação da promiscuidade entre poder público e entidades de crédito privadas. Quem perde são todos os cidadãos.

*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes

Projeto de lei privatiza infraestrutura de acesso à rede; entenda

Texto apoiado pelo governo acaba com obrigações das operadoras de telefonia e deixa a internet nas mãos do mercado, inviabilizando a universalização

Por Marina Pita

Em meio ao tsunami para acabar com os direitos sociais que varre o País, também avança na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL 3453/2015) que autoriza a Anatel a transformar as concessões do regime público de telefonia em autorizações de serviço em regime privado.

O projeto do deputado Daniel Vilela (PMDB-GO) altera a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/1997 – LGT) e concretiza a revisão do modelo regulatório das telecomunicações no País.

Tudo isso – prestem atenção – sem debate com a sociedade e sem aprofundamento na análise do impacto socioeconômico de tamanha alteração. O resultado pode ser desastroso em termos de garantia de acesso à internet a todos os brasileiros.

Na prática, o PL 3453 é a tradução dos interesses das operadoras em acabar com o modelo de concessão de serviços em regime público – adotado para os serviços identificados como essenciais para a sociedade.

O regime público faz com que as operadoras tenham de cumprir obrigações de universalização (possibilitar o acesso de qualquer pessoa ou instituição de interesse público ao serviço de telecomunicações, independentemente de sua localização e condição socioeconômica); de continuidade (possibilitar aos usuários dos serviços sua fruição de forma ininterrupta, sem paralisações injustificadas, devendo os serviços estar à disposição dos usuários, em condições adequadas de uso), qualidade e modicidade tarifaria (controle das tarifas).

Atualmente, apenas a telefonia fixa é prestada em regime público. Diversas organizações da sociedade civil defendem e atuam para que o acesso à internet também seja considerado serviço essencial – como preveem o Marco Civil da Internet e a própria LGT – e que passe a ser prestado no regime público com as obrigações decorrentes de universalização, continuidade e modicidade tarifaria. Esta é a real necessidade do País, como lembra a Campanha Banda Larga.

E, no entanto, o que o PL faz é justamente acabar com o único serviço prestado em regime público, o serviço de telefonia fixa e, ainda, sem incluir a banda larga no hall de serviços essenciais.

E mais, a mudança proposta no PL 3453 permite às empresas transformarem o valor dos bens reversíveis à União ao fim do período de concessão (cerca de 20 bilhões de reais, estimados pelo Tribunal de Contas da União) em investimentos privados.

Ou seja, os bens públicos que deveriam pertencer à União pelo seu caráter estratégico aos serviços de telecomunicação podem ser revertidos para construção de redes de banda larga privadas das quais usufruem apenas as operadoras sem quaisquer obrigações com os cidadãos ou com o Estado brasileiro.

A opção é extremamente preocupante. Só para ter uma ideia, de 2015 para 2016 o acesso residencial à internet ficou estagnado – em 2016, apenas 51% dos lares brasileiros têm acesso à rede, contra 50% no ano anterior, de acordo com dados da pesquisa TIC Domicílios do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), órgão ligado ao NIC.br.

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Regime privado é um empecilho para a democratização do acesso à internet

Ao todo, 32,8 milhões de domicílios estão desconectados no Brasil – destes, aproximadamente 30 milhões são de famílias das classes C, D e E, segundo aponta a pesquisa. A desigualdade econômica e a concentração urbana aparecem aqui como fatores de exclusão digital – na classe D e E, apenas 16% dos lares estão conectados à internet. Na área rural, somente 22% dos lares têm acesso à rede – bem abaixo dos 56% das residências em áreas urbanas.

O País pode ter chegado ao limite de acessos sob os atuais preços da banda larga fixa e, sem instrumentos eficazes para garantir infraestrutura em locais remotos ou de baixa atratividade econômica, ampliar a competição e garantir preços mais baixos.

Assim, é provável que a internet – o principal meio de acesso a informação, comunicação, entretenimento e pelo qual já depende grande parte da economia – se mantenha acessível apenas para a metade mais rica do País, aprofundando o fosso de desigualdade.

Diversos estudos apontam que o regime privado é altamente benéfico para as operadoras de serviço, porém, é extremamente limitador para o poder regulatório por parte do Poder Público e um empecilho para a democratização das telecomunicações, especialmente nos serviços de dados.

A revisão do modelo regulatório das telecomunicações vai definir em muito o modelo de desenvolvimento brasileiro nos próximos anos e, por isso, requer cautela e debate. Não é o que estamos observando neste momento, em que a tramitação do PL 3453 está sendo feita rapidamente, como uma prioridade do governo Temer.

No começo de outubro, o projeto só não foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados porque os deputados do PT e do PSOL se uniram para derrubar a sessão com pedido verificação de quórum e apresentação de requerimento de audiência pública – que deve acontecer nas próximas semanas, para organização dos diversos atores sociais interessados. A ideia é garantir ao menos um espaço de debate sobre o projeto antes de sua votação.

O projeto tramita em caráter conclusivo na Câmara do Deputados – o que acelera o processo de votação – depois que a mesa diretora negou o requerimento do PSOL para que a proposta passasse pela Comissão de Defesa do Consumidor. Agora, cabe à sociedade civil se mobilizar contra o rolo compressor que pode atropelar o frágil direito de acesso aos serviços de telecomunicações no Brasil.