Cadastro Nacional de Acesso à Internet agride liberdade de expressão, afirmam especialistas

A Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados realizou nesta terça-feira, 13, audiência pública para debater o Projeto de Lei 2390/2015, que cria o Cadastro Nacional de Acesso à Internet. Um ponto muito abordado pelos palestrantes no encontro foi o de que o mecanismo pode violar direitos, entre eles a liberdade de expressão e o acesso livre à informação, além de não ser eficaz no atendimento ao objetivo para o qual foi proposto, que é o de proteger crianças e adolescentes de conteúdo impróprio.

Cristine Hoepers, gerente-geral no Centro de Estudos, Respostas e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil, apresentou em sua fala preocupações com o projeto do ponto de vista técnico. “A internet é uma rede global baseada em padrões abertos sem controle centralizado. A criação de um cadastro pode criar um ponto de falha de acesso à internet”, disse ela. Ou seja, qualquer instabilidade no cadastro poderia parar a rede no país. Cristine ainda destacou que o ponto de controle centralizado da internet poderia causar vulnerabilidade de todo o sistema a códigos maliciosos, tornando-se alvo para ataques e roubo de informações.

A representante da Associação Brasileira de Internet, Carol Conway, explanou sobre os softwares de controle parental, mais apropriados para o monitoramento de conteúdo e a proteção de crianças e adolescentes propostos do que a criação de um cadastro nacional. “Hoje, [os softwares de controle] são a melhor solução, por não interferirem na rede. Esses programas de controle dos pais permitem bloquear os sites indesejados. Não são muito conhecidos, mas são muito úteis”, frisou, destacando a importância de uma ampla divulgação desses programas.

Conway lembra que o Marco Civil da Internet no Brasil, considerado um exemplo a ser seguido por vários países europeus, destaca em seus artigos 3º e 7º a garantia da liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a preservação e garantia da neutralidade das redes. Além disso, ele já prevê a proteção de crianças e adolescentes em seu artigo 29, que trata sobre controle parental e porteira de acesso (indicação de site impróprio para menores) como forma de proteção da infância.

Outra questão levantada na audiência foi a possibilidade das pessoas procurarem provedores de fora do país, por não concordarem com o sistema de cadastro. “Essas questões influenciam inclusive na questão da economia brasileira, já que os usuários buscarão por provedores de fora do país” para garantirem sua privacidade e direitos, alerta Carol Conway.

Estruturação para combater crimes

O presidente da SaferNet Brasil, Thiago Tavares, apresentou dados sobre o impacto da criação de um Cadastro Nacional de Acesso à Internet para a sociedade brasileira. “Em 2007, já fizemos esse debate no Senado e a proposta foi superada com o debate que gerou o Marco Civil da Internet. O que falta é uma conscientização do usuário de como se portar na web”, argumentou ele, reforçando que o valor que seria investido para a criação do cadastro pode ser revertido para a estruturação dos órgãos responsáveis por combater os crimes praticados na internet.

“Hoje existem mais de 100 mil notificações de crimes contra crianças e adolescentes na rede. Porém, falta estrutura para que a Polícia Federal, Ministério Público e Polícia Civil consigam resolver os casos e aplicar as punições”, lamenta.

“O projeto é bem-intencionado, mas pode ter efeitos colaterais indesejados”, avalia Thiago Tavares. Ele também destaca que o custo para implantar a medida seria de bilhões, o que mesmo assim não garantiria sua eficiência, já que o cadastramento poderia ser facilmente burlado caso os usuários utilizassem redes abrigadas no exterior.

Um exemplo para fortalecer o uso consciente da internet, segundo Tavares, é o projeto Ministério Público pela Educação Digital nas Escolas, desenvolvido pelo Ministério Público Federal. Ele oferece a educadores das redes públicas e privadas de ensino subsídios para o desenvolvimento de atividades pedagógicas para o uso seguro e cidadão da internet.

Projeto regride em direitos fundamentais

Bia Barbosa, coordenadora-executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, reforça que direitos fundamentais estarão em risco com a criação do cadastro para acesso à internet. “Esse cadastro pede um conjunto de dados que ficaria sob ‘proteção do poder público’, e esse é um fator que permite que direitos fundamentais possam ser comprometidos e violados caso o projeto seja aprovado nos termos atuais, como temos apontado na Coalisão Direitos na Rede”, explica ela.

A coordenadora lembra que a obrigatoriedade e a restrição de acesso na forma como são trazidos no projeto de lei afetam o direito de acesso à informação. “A realização de um cadastro que precisa do deferimento de ‘alguém’ é já restritiva por si mesma. Além disso, a navegação dos usuários dependerá de uma aprovação que poderá acontecer ou não, devido a problemas técnicos”, enfatiza.

Bia também destaca que não estão claros no projeto pontos importantes como quem vai definir se os sites e seus conteúdos são apropriados ou não, a quem cabe fazer a análise desse conteúdo e quais os critérios que serão utilizados nesta análise? “Há aqui um indicativo de violação à liberdade de expressão e comunicação. A internet é um  espaço de informação, mas também um espaço de liberdade de expressão”.

Há ainda o ponto relevante da vigilância na internet, muito criticada em países europeus. Conforme lembra Bia, além da violação da privacidade ocasionada por esta vigilância, existe um forte risco de que esse “grande banco de dados” seja passível de invasão. “Os próprios direitos das crianças e adolescentes podem ser violados por serem usados para fins comerciais”, aponta.

Para Bia Barbosa, o caminho para proteger crianças e adolescentes de conteúdo impróprio na internet passa por um necessário “enfrentamento cultural do problema”, pela disseminação de melhores práticas para os pais e pela classificação do conteúdo de maneira indicativa, como o que já existe na TV, só que adaptado para a internet – indicação da faixa etária apropriada por tipo de conteúdo disponibilizado. “Temos que aproveitar as boas práticas que o Estado já desenvolveu e aplicá-las para o conteúdo da internet”, destaca.

A visão do autor do projeto

O deputado Franklin Lima (PP-MG), autor do Projeto de Lei 2390/2015, entende não haverá restrição de acesso à internet aos maiores de idade. “A internet continuará a mesma. Só quero criar um aplicativo que exija um cadastro dos usuários, para saber qual é a idade da pessoa, e que esse aplicativo bloqueie sites que não são recomendados para essa idade”.

Apesar de ter uma intenção justa, a medida é considerada um equívoco, pois não seria viável realizar a classificação de toda a rede, também devido à incompatibilidade com os termos de uso de outros países. Além de não ser eficiente e eficaz, pelos motivos apontados acima, a criação do cadastro nacional pode se tornar muito onerosa aos cofres públicos.

A deputada Luiza Erundina (Psol-SP) acompanha o andamento do projeto e acredita que o tema se torne complexo por envolver muitas áreas e assuntos, inclusive o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por isso, deveria ser estudado e debatido por mais tempo. “Não cabe ao Estado tutelar o desenvolvimento da criança”, enfatizou Erundina.

O PL 2390/2015, em análise na CCTCI, tem como relator o deputado Missionário José Olímpio (DEM-SP). O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado ainda por outras três comissões: Seguridade Social e Família; Finanças e Tributação; Constituição e Justiça e de Cidadania.

Coalizão Direitos na Rede

A Coalizão Direitos na Rede é uma rede independente de organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da internet livre e aberta no Brasil. Formada em julho de 2016, busca contribuir para a conscientização sobre o direito ao acesso à internet, a privacidade e a liberdade de expressão de maneira ampla. O coletivo atua em diferentes frentes por meio de suas organizações, de modo horizontal e colaborativo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

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