A presença diária das novelas ajudou a moldar o perfil da família brasileira, influenciando suas escolhas e comportamento ao longo dos últimos 40 anos. Temas polêmicos e de apelo social abordados no horário nobre viraram assunto nas rodinhas de conversa. Personagens vividos na tela inspiraram nome de crianças. Enredos que traziam famílias pequenas, urbanas e de classe média acabaram influenciando a taxa de natalidade do País.
É o que mostra o estudo Novelas e Fertilidade: Evidências do Brasil (Soap Operas and Fertility: Evidence from Brazil), com base na análise de novelas exibidas entre 1965 e 1999. Engana-se, no entanto, quem pensa que a pesquisa aponta uma diminuição da atividade sexual dos casais provocada pelo vício de assistir à TV. Ao retratar um modelo familiar pequeno, urbano e de classe média, o trabalho aponta que as novelas teriam estimulado as mulheres a buscar a contracepção e a assumir um novo papel na sociedade.
A investigação começou há dois anos para o Centro de Pesquisa e Análise Econômica para o Desenvolvimento e tem como autores os economistas Alberto Chong e Suzanne Duryea, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de Eliana La Ferrara, da Universidade Bocconi (Itália). "Conhecíamos estudos de sociólogos brasileiros que apontavam um elo entre novelas e comportamento feminino e achamos que esse poderia ser um bom começo", conta o peruano Chong. Foram analisadas 115 novelas transmitidas pela Rede Globo no período e comparados dados da chegada do sinal da emissora em várias partes do País com informações dos Censos Demográficos de 1970 a 1991.
Os autores descobriram que 62,2% das personagens femininas não tinham filhos, 20,7% tinham apenas um filho e 9%, dois. Verificaram ainda que as mulheres que viviam em áreas cobertas pelo sinal da emissora apresentavam taxa de fecundidade muito menor. "Famílias de televisão são pequenas, ricas e felizes", diz um trecho do artigo. "Os pobres, quando retratados, têm mais filhos e suas faces revelam infelicidade", completa.
A exposição a esse padrão teria feito as pessoas optarem por menos filhos. "Percebemos que o efeito é maior em mulheres de classe econômica mais baixa e que se encontravam no meio ou no fim do período fértil, pois, para essas pessoas, a TV é a principal fonte de informação", diz Chong. "Chamou-nos a atenção o fato de que o único país em desenvolvimento, de tamanho comparável ao do Brasil, que vivenciou declínio tão grande na natalidade foi a China, onde há política rigorosa de planejamento familiar", explica. "Já no Brasil, principalmente no regime militar, o governo estimulava o crescimento populacional e alertou sobre perigos da pílula anticoncepcional."
Efeito demonstração
Dados do IBGE mostram que a taxa brasileira era de 6,3 filhos por mulher em 1960. Esse número passou para 5,8 em 1970 e 2,3 em 2000. Especialistas ouvidos pelo Estado são unânimes ao apontar a rápida urbanização do País, a inserção da mulher no mercado de trabalho e o acesso a métodos contraceptivos como fatores determinantes para a redução. Todos concordam, no entanto, que as novelas podem ter ajudado a acelerar o processo. "É o que chamamos de efeito demonstração", explica a coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da USP, Maria Immacolata Vassallo de Lopes. "A novela tem uma presença diária na vida do brasileiro. Quando um comportamento é repetidamente exposto, as pessoas tendem a imitá-lo", afirma.
A professora, no entanto, ressalta que "a novela não inventa, ela capta algo que existe e devolve para a sociedade, às vezes de forma mais avançada". Esse modelo familiar conjugal, diz Maria Immacolata, é típico da área urbana, mais retratada na ficção televisiva. "O urbano sempre exerceu forte atração pelo não urbano, tanto que as migrações aconteceram do campo para a cidade. As novelas podem ter levado as mulheres que viviam longe dos grandes centros a pensar sobre o que seria uma forma moderna de viver."
De acordo com a demógrafa Elisabeth Ferraz, coordenadora do departamento de pesquisas da ONG Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam), já havia um movimento de queda da fecundidade mesmo antes da penetração massiva das novelas no País. O perfil da população começou a mudar de rural para urbana na década de 50. Hoje, mais de 80% dos brasileiros vivem em cidades. "Enquanto no campo é vantajosa uma prole numerosa, pois significa mais mão-de-obra, na área urbana é muito caro mantê-la", diz.
O fato de a mulher deixar o âmbito doméstico para se inserir no mercado teve grande influência na fecundidade, conta Elisabeth. "Aliado a isso, surgiu uma sociedade que queria ter acesso a bens de consumo", diz. "Uma série de propagandas passou a retratar como família-padrão aquela composta pelo pai, a mãe e um casal de filhos. Você vê isso em comerciais de imóveis, de margarina, e não apenas na TV, mas em todas as mídias."
Na avaliação de Elisabeth, o que diferencia o caso brasileiro dos demais países em desenvolvimento foi a adoção de métodos contraceptivos altamente eficazes. "A esterilização feminina, ou laqueadura tubária, teve papel importante na redução dos índices brasileiros e, embora hoje esteja em declínio, continua sendo o meio mais usado para evitar a gravidez no País. A pílula vem em segundo lugar."
Para que o tamanho de uma população fique estável, a taxa de fecundidade deve ser de dois filhos por mulher – o chamado nível de reposição. Acima disso, há crescimento demográfico; abaixo, declínio. O índice brasileiro está em torno de 1,9. "E a tendência é que continue a cair", diz Juarez de Castro Oliveira, da Coordenação de População e Indicadores Sociais do IBGE."A previsão é que se estabilize por volta de 1,5 filho por mulher, equivalente a índices europeus." As conseqüências são imprevisíveis, diz. "O lado positivo é que as crianças representam hoje um peso muito menor para a população economicamente ativa. A Previdência, por outro lado, pesará cada vez mais. "