Cerca de 200 ativistas se reuniram a um grupo de parlamentares na última quinta-feira (14), na Assembléia Legislativa de São Paulo, para manifestar o repúdio da sociedade civil ao substitutivo do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) ao Projeto de Lei 89 de 2003, apelidado pelos organizadores de “AI-5 Digital”. A referência às restrições a liberdades democráticas impostas pelo regime militar em 1968 tem encontrado eco em milhares de usuários da Internet, que temem o cerceamento à liberdade de expressão e de criação no ambiente virtual com a aprovação do projeto.
O texto do senador Azeredo ao PL 89/2003 pretende ampliar o controle sobre o uso da Internet sob o pretexto de combater delitos cometidos na rede. Ele prevê a violação de redes e dispositivos para obtenção de dados sobre os acessos dos usuários e a criminalização de práticas como a troca de dados sem autorização dos “legítimos titulares de rede”, além de obrigar os provedores de acesso a armazenarem as informações sobre os dados de endereçamento eletrônico e as conexões realizadas nos três anos anteriores.
A grande maioria dos presentes destacou o viés autoritário e policialesco da iniciativa do senador tucano e as semelhanças com o estado de exceção promovido há 40 anos, no regime militar. Partindo desta avaliação, Sérgio Amadeu, professor da Faculdade Cásper Líbero e um dos organizadores do ato, defendeu veementemente uma ampla articulação pela derrubada do projeto. Marcelo Branco, estudioso das tecnologias da informação e da comunicação, e Luiz Moncau, advogado do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) também ressaltaram os problemas técnicos e jurídicos dos dispositivos do substitutivo.
A crítica foi endossada por parlamentares presentes, entre os quais os deputados estaduais Simão Pedro (PT) Rui Falcão (PT) e Carlos Giannazzi (PSOL), os deputados federais Ivan Valente (PSOL-SP) e Paulo Teixeira (PT-SP). Rui Falcão lembrou os métodos utilizados pelo DOPS para reconhecer aqueles que discordavam do regime.
Carlos Giannazzi defendeu que o PL 89 faz parte de uma tradição autoritária que marca a história brasileira. Já Ivan Valente destacou a recente criminalização dos movimentos sociais e indicou que o projeto contra os cibercrimes se insere nesse contexto. Entre as diversas falas, as críticas contra os bancos e as grandes corporações, defensoras e prováveis beneficiadas pelo projeto, também se fizeram presentes no ato.
Diferente do sentimento geral dos presentes, o deputado Paulo Teixeira preferiu não atacar frontalmente o senador Eduardo Azeredo e atribuiu as “imprecisões” do projeto à pouca familiaridade do parlamentar com o tema. Apesar do tom cortês, o petista tem sido um dos principais interlocutores do movimento contra o substitutivo dentro da Câmara dos Deputados e acusou os partidários da aprovação de quererem aplicar a “rigidez das leis de propriedade intelectual à Internet”.
A Internet é livre
Uma das melhores intervenções da noite foi realizada pelo cantor Fernando Aniteli, do grupo Teatro Mágico. A banda, que dispensa gravadoras e intermediários, construiu uma carreira sólida divulgando suas músicas através da Internet, sem nenhum custo para seus apreciadores. “Ninguém pensa em criminalizar o jabá. Há anos o artista brasileiro é obrigado a se render a isso”. O “jabá”, lembrado por Aniteli, é um instrumento utilizado pelas gravadoras no qual elas pagam para que rádios e TVs abram espaço para seus artistas. Para o artista, a Internet é o único espaço onde o artista pode se manifestar alheio a interesses comerciais.
Pedro Ekman, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, lembrou que este ano haverá a Conferência Nacional de Comunicação e defendeu a necessidade de que a sociedade civil ocupe este espaço, que pouco a pouco vai sendo dominado pelo empresariado. Ekman ainda comparou a ambição controladora do PL 89 à falta de transparência nas outorgas e renovações de concessões de rádio e TV.
A dúvida de Suplicy
Entre discursos inflamados, a fala do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) destoou pela dúvida em relação ao conteúdo da matéria. Suplicy narrou seu desconforto ao receber e-mails ofensivos e anônimos e deixou implícito seu apoio a uma idéia apresentada pelo jornalista Ricardo Kotscho: a da criação de uma espécie de cadastro nacional de internautas. Pouco familiarizado com o tema, o senador se esqueceu que mesmo cartas impressas também podem ser anônimas.
Suplicy mostrou boa vontade em discutir a questão, mesmo não assumindo a comparação com o AI-5. “Mas respeito o sentimento do movimento”, disse. Ao final, o senador leu uma carta do ministro da Justiça, Tarso Genro, que defendeu a “premissa da democratização do acesso à Internet”, destacou o perigo da aprovação da atual redação e garantiu empenho na elaboração de um novo texto em articulação com o movimento. “Minha convicção é que se altere o projeto significativamente antes dele chegar à sanção do presidente”, concluiu Suplicy, evitando antecipar qual seria a postura do Palácio do Planalto.
Derrubada integral ou parcial
“Os poderosos dominam pela esperança ou pelo medo. É isso que estão tentando criar: um ambiente hobbesiano”, afirmou Sérgio Amadeu sobre o discurso anti-pedofilia do senador Azeredo. “A maior parte da rede de pedofilia está fora da Internet, e quando houver, já existem leis para punir”. Para Amadeu, o PL 89 terá pouca eficácia, pois o texto contém uma série de deficiências. “O principal objetivo é criar um clima de incerteza jurídica”. Paulo Teixeira acredita que o projeto, da maneira que está, assumiu uma “cara só”: a dos interesses econômicos. “É preciso ouvir toda a sociedade”, defendeu.
Amadeu espera que o projeto seja definitivamente enterrado ou, pelo menos, que os três artigos polêmicos sejam vetados. Há ainda a discussão de um novo texto a partir do Executivo, mas derrotar o atual parece ser a prioridade do movimento. “Tarso Genro vem de uma tradição democrática, e espero que ele a mantenha”, afirmou, sem se esquecer dos obstáculos impostos pela correlação de forças do Congresso brasileiro. “O PL 89 só será aprovado se o PT e a base aliada quiserem”, previu.
Mobilização exitosa
Sobre o ato, Amadeu conta que ele era uma incógnita, pois foi convocado apenas pela Internet. “Convocamos em uma casa legislativa para sensibilizar os parlamentares. No Brasil há essa novidade, o ativismo encontrando a institucionalidade”. Marcelo Branco também se diz otimista com o movimento. “Acredito que este é o início da construção de um código civil de direitos”, afirma. “Não devemos apenas ser contra este projeto, mas devemos continuar adiante.”
Além de demonstrar que este debate tem se tornado mais amplo e numeroso, a ocasião também impôs outra necessidade, agora que o diálogo com a institucionalidade deve se tornar mais freqüente. “É preciso incluir digitalmente os parlamentares, porque convenhamos…”, assume Branco, incrédulo com certas pérolas de nossos representantes.