Câmara dos Deputados teve pressa para aprovar anistia a rádios e TVs

Medida Provisória entrou em votação no plenário apenas algumas horas depois do assunto ter sido analisado pela comissão mista responsável

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou na noite desta terça-feira, dia 21, a Medida Provisória (MP) 747/2016, que altera as regras do processo de renovação de outorga dos serviços de rádio e televisão previstas na Lei 5.785/1972. O relatório, de autoria do deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), havia sido aprovado na tarde do mesmo dia na comissão mista da MP.

A MP 747 altera o processo de concessão de rádios e TVs, determinando que interessados em renovar a concessão ou a permissão devem apresentar requerimento nos 12 meses anteriores ao término do respectivo prazo da outorga. As entidades que não fizerem o pedido de renovação no tempo previsto serão notificadas para que se manifestem em até 90 dias. Também será possível regularizar permissões que já estejam vencidas. Estas determinações “afrouxam” os deveres das emissoras, que prestam serviço por meio de uma concessão pública.

Na prática, a medida concede anistia ampla e geral às emissoras que estavam com suas concessões vencidas ou que não tinham solicitado a renovação no prazo legal. Quase a metade das emissoras de rádio de todo o país estão nesta situação, além de um grande número de emissoras de TV.

Rádios Comunitárias

Durante a apresentação do parecer do relator da MP 747/2016, os deputados e senadores presentes acordaram em incluir as rádios comunitárias na mesma anistia. Porém o deputado André Figueiredo (PDT-CE) alertou em plenário para o fato de o texto da Medida Provisória 747 separar em artigos diferentes a renovação de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão. Ele questionou as intenções do relator em separar os artigos. “O texto poderia fazer menção a concessões, permissões e autorizações de serviços de radiodifusão no mesmo artigo, e não deixar as autorizações que regem as rádios comunitárias em artigos diferentes. Isso sinaliza uma intenção de veto [posterior]”, destacou.

André Figueiredo apresentou destaque de emenda ao relatório, pretendendo incluir as rádios comunitárias no mesmo artigo da MP que trata das concessões, mas a proposta foi rejeitada por 184 votos a 160 pelo plenário.

Texto Aprovado

As rádios comunitárias que não renovaram suas concessões dentro do prazo serão atendidas em suas reivindicações, e aquelas que ainda não deram entrada no processo terão um período adicional de 60 dias para regularização.

Na votação em plenário, deputados retiraram do projeto o trecho que previa que concessionários só poderiam renovar os prazos de concessão, permissão e autorização se tivessem cumprido todas as “obrigações legais e contratuais, mantido a mesma idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público”.

A MP aprovada manteve os prazos de concessão, permissão e autorização em 10 anos para rádios e em 15 anos para TVs. O novo texto diz que os prazos poderão ser renovados por períodos sucessivos e iguais, mas não prevê mais como requisito para renovação que os concessionários cumpram obrigações legais e mantenham idoneidade técnica, financeira e moral.

Comissão Mista

Durante a tramitação, a MP 747/2016 recebeu 41 emendas. O relator acolheu integralmente duas delas, e uma terceira de forma parcial.

Uma das emendas acolhidas integralmente, de autoria do deputado Sandro Alex (PSD-PR), tratava sobre “ocupações e multifuncionalidades geradas pela digitalização das emissoras de radiodifusão, novas tecnologias, equipamentos e meios de informação e comunicação”. Essa emenda abre espaço à regulação da multifuncionalidade, caracterizando uma possível precarização do trabalho.

Já a emenda apresentada pelo deputado Esperidião Amin (PP-SC) foi parcialmente recebida. Ela listava uma série de questões a se levar em consideração para atestar a idoneidade moral prevista no projeto.

Mas a principal alteração no texto foi motivada pela emenda 27, de autoria do deputado André Figueiredo, que estende o mesmo benefício de anistia às rádios comunitárias e educativas. O texto segue agora para o Senado. Caso não seja votado até o dia 12 de março, os efeitos da medida perdem validade e ela será arquivada.

Uso indevido de MPs

O governo vem recebendo críticas por não oferecer tempo aos necessários debates sobre os temas de seu interesse, o que ocorreria durante a tramitação dos respectivos projetos no Legislativo. Ao invés disso, tem governado mediante a edição de uma série de medidas provisórias (MPs).

Ao contrário dos demais projetos discutidos no Congresso, que precisam ser aprovados para ter validade, as medidas provisórias têm efeito de lei e aplicação imediata já a partir de sua publicação. Depois de entrar em vigor é que a MP vai ser analisada pelo Congresso Nacional para ser transformada definitivamente em lei.

Desde que assumiu o cargo, Michel Temer já encaminhou para análise dos parlamentares um total de 41 MPs, sendo duas delas na primeira semana deste ano.

De acordo com alguns técnicos legislativos do Senado, responsáveis por acompanhar a correta tramitação dos projetos e medidas na Casa, o que está ocorrendo é “uma banalização das MPs”. A Medida Provisória é um instrumento com força de lei elaborado em casos de relevância e urgência, dizem os técnicos, e a maioria das medidas editadas no governo de Michel Temer não seguem esse critério.

Por: Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

LIÇÕES DO “ATLETIBA” CONTRA O MONOPÓLIO DA GLOBO

Postura das equipes demonstra a importância de resistir ao oligopólio midiático, cujo prejuízo para espectadores vai muito além do futebol

Por André Pasti*

O clássico de domingo 19 entre Atlético-PR e Coritiba (o “Atletiba”) entrará para a história como um capítulo na luta contra o monopólio da Globo no futebol brasileiro. Os clubes negaram o péssimo acordo financeiro proposto pela emissora para transmitir a partida e decidiram exibir o jogo em seus canais no Youtube e Facebook.

Com a torcida nas arquibancadas e os jogadores prontos para o jogo, o inacreditável aconteceu: a Federação Paranaense de Futebol, a pedido da Rede Globo, impediu a transmissão da partida online. Só haveria jogo sem transmissão, em recado da Globo aos clubes “rebeldes”. Como os clubes não recuaram, a federação impediu a partida de acontecer.

Acostumada a mandar no futebol nacional, a Globo não contava com a coragem das equipes. Com a ação, elas deram visibilidade aos prejuízos do monopólio da emissora ao esporte. Como discutimos há algumas semanas, os danos do monopólio de transmissões são muitos.

Desde o horário das partidas às dez da noite, péssimo para os torcedores trabalhadores e para os próprios jogadores, a campeonatos estaduais inteiros “escondidos” das torcidas. Do financiamento extremamente desigual dos direitos de imagem dos clubes, que inviabiliza o crescimento das equipes menores, à invisibilização do futebol feminino.

A frase “quem paga a banda, escolhe a música” tem sido usada há tempos pelos comentaristas submissos à Globo para justificar esses absurdos das decisões do monopólio. Nesse “Atletiba” ficou muito claro o quanto essa lógica é prejudicial a todos os envolvidos no esporte: não importavam os direitos dos jogadores, dos clubes, nem dos torcedores presentes na Arena da Baixada; não importava o futebol – só o interesse da emissora estava valendo.

Muitos torcedores brasileiros têm questionado o monopólio midiático no futebol, com campanhas como a “Jogo dez da noite, NÃO!”, que chegou a diversos estádios pelo País. No ano passado, a “Gaviões da Fiel” protestou com faixas “Rede Globo, o Corinthians não é seu quintal” e “Jogo às 22h também merece punição”. A novidade agora é o enfrentamento do monopólio pelos próprios clubes.

Combater o monopólio da mídia no futebol é possível, como comprova a experiência argentina. Lá, o programa “Futebol para Todos” e a regulação democrática da comunicação audiovisual (a famosa “Lei de Meios”) reconheceram o direito à audiência dos eventos esportivos pela população e o futebol como patrimônio cultural nacional.

As transmissões passaram a ser realizadas em diversos canais e horários, incluindo a televisão pública, com transmissões online gratuitas em alta qualidade. Além disso, as cotas de TV foram redistribuídas, melhorando a competitividade do campeonato nacional. Infelizmente, esses avanços estão sendo agora atacados pelo governo neoliberal de Maurício Macri.

Pode a internet abalar o poder da Globo?

Os clubes propuseram como alternativa à transmissão televisiva a exibição por suas contas nas plataformas Youtube e Facebook. Mas, se a intenção é fazer frente ao monopólio da Globo, é importante apontar alguns limites dessa transmissão online.

Em primeiro lugar, há uma disparidade de acesso: apenas metade (51%) das residências brasileiras possuem acesso à internet, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2015/CGI. Entre os usuários de internet, 31% não possuem acesso à banda larga. A mesma pesquisa revela que 97% dos domicílios brasileiros possuem televisão – com acesso a canais abertos.

Portanto, ainda é muito desigual no Brasil o alcance e o acesso possibilitado pela televisão aberta e pela internet. Essa desigualdade de acesso também se reflete entre as regiões do território brasileiro e nas distintas condições presentes nas cidades.

Outro limite está dado pelas plataformas escolhidas. Youtube e Facebook estão longe de ser plataformas livres. Pertencem a grandes empresas estadunidenses que estão concentrando a produção e circulação de informações nas redes.

Eles são novos “porteiros” digitais, decidindo o que desejam censurar, o que nós podemos visualizar, quais informações terão ou não destaque. Transferir a concentração do controle da informação dos conglomerados da radiodifusão para os conglomerados de internet seria apenas mudar os donos do monopólio.

É preciso pensar políticas que democratizem efetivamente a comunicação, considerando a realidade do território brasileiro. Vale lembrar que a televisão aberta – caso da Globo – é uma concessão pública, que deve atender ao interesse público e cumprir regras previstas em nossa Constituição.

Para além do futebol

A Globo segue agindo como a péssima “dona da bola” do futebol de rua**. A emissora mandou seu recado: ninguém poderia contrariar uma decisão do monopólio. Desta vez, no entanto, os clubes enfrentaram o canal e deram um exemplo de que é possível dizer não e lutar contra os danos do monopólio ao futebol nacional.

Aos que começaram a perceber os prejuízos do monopólio da Globo ao futebol, é preciso, também, fazer um alerta: os danos de uma mídia monopolizada vão muito além do esporte. Nossos direitos de cidadãos são ignorados ou atacados como os direitos dos torcedores no “Atletiba”.

O controle dos discursos em circulação tem permitido aos monopólios sustentar golpes de estado, invisibilizar e criminalizar movimentos sociais e pautas de direitos humanos, defender políticas danosas aos mais pobres, criminalizar a juventude negra das periferias, entre tantos outros problemas. A diversidade cultural, regional, étnica e sexual presentes em nosso país são tão prejudicadas pelo monopólio quanto o futebol.

Que o “Atletiba” seja o início de uma resistência em defesa do futebol e da comunicação como direitos de todos. Precisamos ampliar essa resistência e o combate ao monopólio midiático, dentro e fora do futebol.

**Em nota, o SporTV se isentou da responsabilidade no episódio de ontem, apesar de evidências de que a partida não ocorreu por conta da tentativa de transmissão via internet, segundo disse o 4º árbitro do jogo.

*André Pasti é doutorando em Geografia Humana na USP, professor do Cotuca/Unicamp e integrante do Coletivo Intervozes

Senador Agripino Maia faz manobra para não perder concessão de rádio e TV

Para livrarem-se de possível perda da concessão de radiodifusão, o senador e seu filho, o deputado Felipe Maia, venderam a participação no Sistema Tropical de Comunicação

Numa manobra para tentar escapar de punição e para não perder sua concessão de radiodifusão, o senador JoséAgripino Maia (DEM-RN) e seu filho, o deputado federal Felipe Maia (DEM-RN), venderam suas ações no Sistema Tropical de Comunicação. Essa manobra atende a uma recomendação do Ministério das Comunicações, conforme divulgado pela jornalista Eliana Lima no jornal Tribuna do Norte.

Em dezembro do ano passado, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte (MPF-RN) ajuizou ação civil pública contra a União, a emissora TV Tropical (afiliada da Record TV no Rio Grande do Norte), a Rádio Libertadora Mossoroense e outras quatro rádios, todas pertencentes ao senador e seu filho.

A ação do MPF pede ao Ministério das Comunicações que casse as outorgas de concessão da TV Tropical e das emissoras de rádio. No pedido, o MPF afirma que José Agripino e Felipe Maia ferem a Constituição Federal ao figurarem como sócios dessas empresas de comunicação.

Segundo o procurador Rodrigo Telles, que assina a ação,  “a liberdade de expressão, o direito à informação, a proteção da normalidade e legitimidade das eleições, do exercício do mandato eletivo e os demais preceitos fundamentais decorrentes do princípio democrático precisam ser preservados”. Desta forma, Telles pede na ação o cancelamento da concessão, permissão e/ou autorização do serviço de radiodifusão sonora e de som e imagem outorgado à TV Tropical, Rádio Libertadora Mossoroense, Rádio Ouro Branco, Alagamar Rádio Sociedade Ltda., Rádio Curimataú de Nova Cruz Ltda. e Rádio A Voz do Seridó.

O MPF pede ainda que a União, por intermédio do Ministério das Comunicações, seja condenada a realizar nova licitação para os serviços de radiodifusão outorgados às rés e a se abster de conceder renovações ou futuras outorgas do serviço de radiodifusão às rés ou a outras pessoas jurídicas das quais José Agripino e Felipe Maia sejam ou venham a ser sócios, enquanto forem titulares de mandato eletivo.

De acordo com o artigo 54, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal, é vedado a parlamentares serem sócios ou associados de pessoas jurídicas concessionárias do serviço público de radiodifusão. “E assim o é em razão de seu potencial (da radiodifusão) de funcionar também e, no mais das vezes, preponderantemente, como órgão de imprensa, impondo-se assim que a vedação incida inevitavelmente em face das empresas concessionárias que detenham em seus quadros sociais deputados e senadores”, argumentou o procurador.

“Mudança” no comando do grupo

O Sistema Tropical pertence ao espólio do ex-governador Tarcísio Maia, tendo hoje como sócia majoritária a viúva Tereza Maia, mãe do senador Agripino Maia. O senador Agripino e o filho Felipe Maia são sócios minoritários. Eles estão vendendo suas participações para Otho Maia e Ana Sílvia Maia, membros da mesma família.

Essa movimentação reforça a tese de que esta é apenas uma operação formal, dado o  receio de Agripino e Felipe de que a ação do MPF resulte na perda da concessão do serviço de radiodifusão sonora ou de som e imagens.

Com a publicação de decreto pelo Palácio do Planalto no último dia 8 de fevereiro, no qual autoriza a alteração de nomes no comando do grupo Tropical de Comunicação, o Ministério das Comunicações ignora os apontamentos feitos pelo MPF e se porta de forma conivente com a operação.

Os Donos da Mídia

O projeto “Excelências”, vinculado ao Transparência Brasil, aponta que, na atual legislatura (2015-2019), 43 deputados são concessionários de serviços de rádio ou TV, o que representa 8,4% do total dos membros da Câmara dos Deputados. Proporcionalmente, o Senado Federal é ainda mais marcado por este fenômeno, já que 19 senadores são concessionários – o que representa 23,5% dos membros da Casa. Entre estes senadores, figuram Aécio Neves (PSDB-MG), Edison Lobão (PMDB-MA), Fernando Collor de Mello (PTB-AL), o próprio Agripino Maia (DEM-RN), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Jader Barbalho (PMDB-PA), Acir Gurcacz (PDT-RO) e Roberto Coelho Rocha (PSDB-MA).

Os números apresentados pelo projeto “Excelências” revelam que, para além da vinculação juridicamente registrada de políticos com os serviços de radiodifusão, existe ainda os casos em que os parlamentares mantêm influência sobre as empresas a partir de laranjas ou de parentes que ocupam posições no quadro societário dos veículos.

O domínio político sobre os meios de comunicação expõe um grave conflito de interesses, uma vez que o próprio Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões e permissões de radiodifusão. Atualmente, algumas ações civis públicas movidas nos estados e duas ADPFs (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), a 246 e a 379, ambas ajuizadas no Supremo Tribunal Federal pelo PSOL, questionam as concessões dadas a políticos.

As arguições ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF) estão fundamentadas sobre o fato de que a Constituição é descumprida quando atos do Executivo permitem que políticos com mandato eletivo sejam beneficiados com a outorga de concessões de emissoras de rádio e de televisão. A ADPF 246 foi protocolada em dezembro de 2011, enquanto que a ADPF 379, em dezembro de 2015. Ambas contam com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República. Ambas aguardam a apresentação de voto de um mesmo ministro, Gilmar Mendes.

O fato de concessões públicas estarem no poder de políticos resulta em falta de isonomia, em desrespeito ao pluralismo e em uma grave ameaça ao interesse público, pois o sistema brasileiro de regulação de radiodifusão não prevê a existência de um agente independente para deliberar sobre a distribuição do espectro eletromagnético. Deste modo, tal deliberação é realizada por um procedimento licitatório no qual os parlamentares do Congresso Nacional ocupam um papel central, analisando as outorgas realizadas pelo Poder Executivo.

INFORMAÇÕES MAL APURADAS CONTRIBUEM PARA SENSAÇÃO DE CAOS NO ES

Relações entre a mídia e governos locais ainda são entrave ao direito à informação; violência no Espírito Santo é caso singular desta situação

Por Cinthya Paiva e Augusto Cesar Brandão*

O Espírito Santo vive uma de suas maiores crises de segurança pública. Embora boa parte dos policiais militares que estava aquartelada tenha retornado aos postos de trabalho no início desta semana, as informações sobre o fim da paralisação e sobre os acordos feitos entre os policiais militares e o governo estadual ainda são desencontradas e confusas.

Desencontro e confusão na apuração e publicização das informações, aliás, marcaram todo o período, mostrando mais uma vez a incapacidade da imprensa capixaba em produzir informações contundentes sobre o que estava acontecendo de fato no Estado.

Muito do que chegou ao conhecimento do público nacional foram boatos, a maioria divulgados via redes sociais como Facebook e Whatsapp e sem muita garantia de procedência. Não se sabe, por exemplo, se alguns vídeos postados foram produzidos pelos próprios policiais para difundir o clima de insegurança e pressionar o governo a abrir negociação.

Esta falta de informação não ocorre por acaso. Assim como na maioria dos estados do País, no Espírito Santo grupos de mídia possuem relação muito estreita com o poder institucionalizado, ora em função das relações interpessoais construídas, ora porque os governos estaduais são grandes financiadores da imprensa local, por meio de anúncios publicitários.

Tudo isto acaba dificultando processos de apuração da notícia quando esta envolve denúncias de corrupção ou pressão de grupos sobre governos. Basta lembrar que, no início dos anos 2000, quando acontecia a CPI do Narcotráfico – que acabou na prisão do presidente da Assembleia Legislativa do Estado, José Carlos Gratz – os primeiros veículos de imprensa a repercutir o assunto foram os nacionais como Veja, Época e IstoÉ, sendo seguidas depois pela imprensa local.

No episódio recente do aquartelamento dos PMs, as informações também foram pouco apuradas.  Para se ter uma ideia, na sexta-feira 10, o Jornal Nacional noticiou que o governo estadual havia realizado um acordo com as Associações de Policiais Militares para encerrar a suposta “greve”. Informação que não foi confirmada minutos depois pelo Secretário Estadual de Direitos Humanos, Julio Pompeu, em entrevista coletiva transmitida ao vivo por algumas cadeias de TV.

Vale lembrar que um dos principais grupos de mídia capixaba, a Rede Gazeta, é afiliada da TV Globo, logo, deve ter sido a origem da informação equivocada emitida pelo JN.

Não bastasse isto, logo após a entrevista coletiva do representante do governo, foi iniciada outra entrevista coletiva, desta vez com as Associações dos Policiais Militares, interlocutores do acordo que encerrou a suposta “greve”.

Apesar do interesse público desta entrevista, que poderia esclarecer parte do que estava acontecendo no estado, ela não teve transmissão ao vivo pela grande imprensa local, nem tampouco apareceu como informe em plantões de notícia, sendo acessível apenas por um link no Facebook, colocado pelos próprios PMs e reproduzido nas páginas da imprensa na internet.

É importante destacar que as Associações dos Policiais Militares, que supostamente entraram em acordo com o governo, não eram, até então, protagonistas do movimento de reivindicações de ajuste salarial e melhores condições de trabalho – que estava sendo protagonizado por mulheres, amigos e familiares dos PMs, que cercaram os portões dos quartéis.

E não houve, por parte da imprensa local, qualquer questionamento sobre esta nova interlocução, nem sobre o fato de ela ter gerado o “acordo” firmado com a categoria – o que coloca o próprio acordo em cheque. Também não foi questionado o uso de helicópteros da Polícia Militar para retirar dos quartéis os policiais que aparentemente queriam voltar ao trabalho, mas estavam sendo impedidos de sair.

Aumento da criminalidade

Outro ponto-chave em toda a crise capixaba foi a cobertura sobre o aumento da criminalidade. É claro que a maior parte dos vídeos divulgados com cenas de assaltos à mão armada, saques e tiroteios não teve os grandes meios como principais divulgadores.

A maior parte circulou pelas redes sociais, especialmente, o Whatsapp. Porém, é questionável o papel da imprensa tradicional de não apurar a origem destes vídeos e apenas reproduzi-los em suas reportagens, o que, certamente, contribuiu para o aumento da sensação de insegurança e de falta de ordem.

Todos os dias, a imprensa local divulgava os dados “extraoficiais” dos assassinatos de pessoas – que passou de 140 em 10 dias de paralisação –, tendo como fonte o Sindicato da Polícia Civil.

Organizações de direitos humanos questionaram estes números e denunciaram possível participação de PMs nestas mortes chamadas, até então, de “acertos de contas” entre bandidos. Esta possibilidade encontra eco no histórico comprometimento da PM capixaba com grupos paramilitares e esquadrões de extermínio, mas quase nada se apurou sobre isto.

Depois de muita cobrança da sociedade, os veículos de imprensa locais começaram a destacar repórteres para apurar quem eram os mortos. Ainda assim, é preciso pesquisar com maior profundidade as circunstancias de cada morte e acompanhar os inquéritos que serão abertos pela Polícia Civil para investigar os casos.

Criminalização do movimento

A Constituição veda aos policiais militares o direito de fazer greve, uma vez que a função da manutenção da ordem e segurança pública por meio de armas de poder letal é indelegável, motivo pelo qual a categoria optou por fazer um movimento de aquartelamento amparado nos familiares, que impediam a entrada e a saída de viaturas e dos próprios PMs dos quartéis. As reivindicações do movimento eram melhores salários, bonificações e melhores condições de trabalho.

O enfoque maior da imprensa, no entanto, foi na ilegitimidade do papel das mulheres dos policiais aquartelados e a responsabilização da própria PM pela insegurança nas ruas. Em nenhum momento o governador do estado, Paulo Hartung, foi questionado por não ter aberto diálogo imediato com a categoria de policiais – como se não houvesse responsabilidade da gestão estadual no atual estado de caos pelo qual passou o Espírito Santo.

Além disso, o governo também já declarou que vai abrir processo administrativo disciplinar contra mais de 700 PMs para apurar se houve crime de motim e já foram indiciados 155 policiais, que após passarem por um processo administrativo disciplinar, poderão ser demitidos.

Valeria questionar ao governador e secretários estaduais – papel da imprensa fazer tais questionamentos – se, na conjuntura de suposto aumento da criminalidade e de falta de recursos para o reajuste de salário (justificativa do Governo para não fazer negociação), é acertada a decisão de punir os insurgentes. Mas, até agora, sobre isto, segue prevalecendo o silêncio.

O suposto acordo firmado previa que os policiais militares deveriam comparecer ao trabalho às 07 horas da manhã seguinte (sábado, dia 11). Ainda assim, na segunda-feira, dia 13, ônibus de algumas linhas não passaram por certos bairros e outras linhas ficaram desativadas.

As atividades de ônibus e shoppings foram suspensas às 21h. Algumas escolas não tiveram atividades regulares como anunciado. Ainda, três ônibus foram queimados e em Vila Velha, cidade da Grande Vitória, e o Convento da Penha, ponto turístico da cidade, foi assaltado.

Com o fim da paralisação noticiada na última sexta-feira, aos poucos policiais militares estão retornando às ruas. Informe da assessoria da Secretaria de Estado da Segurança (Sesp) disse na terça, dia 14, que 2.351 policiais militares responderam ao chamado operacional feito pelo comando geral da PMES em todo o Estado. E que o policiamento ostensivo durante aquele dia contou com 157 viaturas. O chamado operacional começou no último sábado com cerca de 600 policiais retornando aos seus pontos de trabalho.

A mídia noticiou a volta das atividades normais após o acordo, mais uma vez, cumprindo o papel de correia de transmissão de informações oficiais do governo. O que se tem observado, no entanto, é que algumas mulheres de PMs ainda seguem movimentando as portas dos quartéis. Não se sabe ao certo se houve um acordo de fato com a categoria ou se o próprio movimento foi minado por dentro. Pode ser que o “acordo” feito com a categoria não esteja tão selado assim.

Cinthya Andrade de Paiva Gonçalves é advogada e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Augusto Cesar Coutinho Brandão é gestor de projetos e neurolinguista.

Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital em 16 de fevereiro de 2017.

“Conversem com suas esposas”: as imagens midiáticas da greve dos PMs

Como o jornalismo legitimou o esvaziamento das imagens das “mulheres” e do debate político na cobertura da greve de policiais do Espírito Santo

Por André Keiji Kunigami*

Trata-se de uma cena familiar do cinema: a personagem feminina é punida, mesmo que indiretamente, pela catástrofe que se armou. O serial killer corre, arma nas mãos, seguido de perto por uma câmera sôfrega que nos envolve, espectadores, fisicamente na ação, eventualmente alcançando a menina que vai ser morta diante de nossos olhos. No cinema de horror clássico, a mocinha que possui alguma agência é a primeira a ser morta pelo assassino, e o filme produz seu efeito pedagógico a partir da eliminação dessa agência.

Façamos agora um corte para a semana passada no Brasil, quando, durante a crise instaurada pela paralisação da PM capixaba, em 10 de fevereiro de 2017, podia-se ler na manchete do El País: “Governo do Espírito Santo endurece o tom e diz que as mulheres serão penalizadas”. A relação sem dúvida se dá num nível do imaginário midiático, e por isso mesmo revela complexidades, ambiguidades e nós discursivos que valem a pena explorar.

Dos muitos acontecimentos recentes no cenário político brasileiro talvez um dos que tenham mobilizado mais a opinião pública foi a recente paralisação da Polícia Militar do Espírito Santo. O evento se iniciou em 4 de fevereiro, quando oito mulheres, esposas de policiais, bloquearam a saída da 2ª companhia do 6º batalhão da PM em Serra, região metropolitana de Vitória, reivindicando aumento salarial e melhoria das condições de trabalho.

O Espírito Santo é o estado que menos paga aos seus policiais militares. Em poucos dias, a situação tomou proporções de calamidade pública, ocasionando mais de cem homicídios (não especificados até agora), fechamento de escolas, comércio e órgãos públicos, paralisação da circulação de ônibus e uma atmosfera de medo generalizado por todo o estado, culminando com o envio das Forças Armadas e o clima de paranoia nacional com a possibilidade de ações similares em outros lugares do País.

Ao fim, mais de setecentos policiais foram indiciados por “crime de revolta”, e a narrativa que opõe uma categoria profissional contra a sociedade foi construída pela mídia corporativa, especialmente no uso das imagens.

Uma das questões mais marcantes desse evento tão político quanto midiático foi justamente o que chamarei de seu dispositivo: as “esposas” ou “mulheres” dos policiais – palavra muito utilizada pela grande mídia para descrever e personalizar as iniciadoras do processo em que culminou a crise. Digo um dispositivo porque o simples fato de terem sido aquelas mulheres das famílias dos policiais a iniciarem a paralisação tornou-se um mecanismo sutil de distração ativado pela mídia: não é o Estado, são os policiais; não são os policiais, são as famílias; não são as famílias, são as mulheres.

Um dispositivo que não apenas personaliza um problema de ordem estrutural e sistêmica, mas também se arrisca a reproduzir uma penalização dos corpos femininos no exato momento que eles se tornam agentes políticos – ou dos próprios policiais, quando se enfatiza hipótese de ser tudo uma “armação”, um subterfúgio que se utiliza das famílias para produzir uma falsa paralisação forçada, uma vez que a greve não é um direito militar.

Ou seja, o dispositivo, que é possibilitado pela presença física daquelas mulheres diante dos batalhões e das câmeras, também inclui os próprios policiais: todos saem perdendo. Mas em qualquer uma das hipóteses, o fato é que aquelas mulheres são desprovidas de sua ação como sujeitos para se tornarem um instrumento que permite o esvaziamento – legitimado pela mídia – do debate político que deveria ali se instalar: a desmilitarização da polícia e a violência do Estado.

Um dispositivo que organiza as forças que estão ali em confronto de forma a deslocá-lo: não se trata mais dessas pautas, mas sim da proteção da sociedade “de bem”. Em vez de mudança, manutenção.

De fato, o grande nó da narrativa discursiva construída pela mídia trata-se justamente da relação entre PM e esposas, traçando conjecturas sobre a possível ação conjunta entre as duas partes. O pêndulo oscila entre afirmar a ação das mulheres ou representá-las como apenas parte do plano de greve dos policiais. Por exemplo, no dia 6 de fevereiro, a BBC publicou uma das primeiras abordagens focadas nas mulheres, relatando que os próprios policiais não sabiam da articulação, feita por redes sociais.

Na reportagem da Mídia Ninja de 8 de fevereiro, a voz é dada especificamente às familiares que se organizaram para protestar. Por outro lado, o portal G1 no dia 11 do mesmo mês anuncia que “coordenadores das forças militares e autoridades governamentais não dão credibilidade a isso pois acreditam que os PMs usam os familiares para tentar escapar de punição”.

O G1 volta a suspeitar no dia 13: “As mulheres sempre alegam que são elas que estão no comando da paralisação. Mas, para as autoridades, essa é uma tentativa de encobrir o que, na verdade, seria um motim dos PMs”. Logo em seguida, o texto nos relembra: “Sem policiamento nas ruas, uma onda de violência se instaurou”.

Numa disputa marcada por pânico, incertezas e imagens de violência, um dispositivo emerge a partir das flutuações de posições que o evento pode ter – quem fere, quem é ferido: os policiais militares, em sua estrutura de trabalho precarizada, ou a sociedade que deve ser defendida?

A estratégia que se solidifica é, obviamente, aquela que coloca os dois grupos como antagonistas. “Os empresários precisam de paz”, anunciava-se na caminhada das famílias pela paz na capital Vitória, segundo relatos, deixando claro a favor de que “sociedade” se fala.

Nas imagens, a construção desse dispositivo torna-se ainda mais clara, mesmo que talvez de forma oblíqua. Primeiro, em vídeo de 7 de fevereiro, quando a situação havia recém-adquirido contornos de calamidade, o jornal Extra, do grupo Globo, publica um vídeo no qual, de maneira bastante ensaiada e artificializada, um policial militar negocia com “um grupo de mulheres” que se encontra do outro lado do portão do 8º Batalhão, em Colatina.

Em segundo plano, outro policial filma a cena com seu celular. As falas são hesitantes e teatralizadas, como um script mal praticado que ainda não se fixou na memória do seu ator. O grupo de menos de dez mulheres responde, e uma delas discorre sobre a lista de condições e reivindicações para a câmera. Em comentário de um leitor, lê-se: “Encenação ridícula…”. Nesse vídeo, o espetáculo é uma farsa, orquestrada pela PM e executada pelas “mulheres”.

As "mulheres" dos policiais militares

Em outro vídeo, de 11 de fevereiro, agora da GloboNews, o repórter narra, por telefone, o acordo assinado entre PM e governo do estado, e a resistência por parte delas de acatar a negociação da qual não participaram.

“As mulheres continuam impedido a saída [dos policiais]”, diz o repórter, enquanto vemos em looping repetido por inúmeras vezes uma sequência de imagens: um grupo de policiais em um batalhão, mulheres protestando, homens das Forças Armadas com fuzis e tanques de guerra nas ruas, um carro fugindo pela praia, pessoas saqueando lojas, um carro da guarda municipal atrás de alguém em uma rua deserta.

Uma montagem de imagens “amadoras” que, na necessidade da televisão de sempre ter imagens, é repetida muitas vezes enquanto a âncora e o repórter debatem o porquê da insistência das mulheres em manter o protesto: “Quando o acordo começa a avançar essas mulheres saem, e quando elas retornam, retornam com outra proposta”, explica o repórter.

Uma montagem mostrando um estado de caos que, na sua repetição incessante sob as falas dos jornalistas da GloboNews, torna-se produto das próprias mulheres, que no discurso são referidas como empecilhos à paz.

Numa imagem, trata-se de uma encenação. Na outra, trata-se de teimosia daquelas mulheres. Falta ou excesso de verdade. Em ambos os casos, diz-se “as imagens não mentem”, mesmo quando mostrando a sua própria mentira (como no caso do Extra).

Acima de tudo, em ambos, essas “mulheres” são utilizadas pela mídia como mecanismo discursivo – e estético – que, seja como um coro ensaiado ou como agentes da desordem, funcionam como um dispositivo que regula forças que se recusam a ceder.

Do seu lugar de desejo por transformação, elas são capturadas por um dispositivo construído em imagens e discursos que logram cindir a sociedade em partes – a que deve ser defendida, e aquela que deve ser exterminada (juventude negra, pobre e periférica).

Não são mais as mulheres dos policiais, são um dispositivo-“mulheres” que reorganiza reivindicações e revoltas, transformando-as em perigo à sociedade de bem e englobando o outro lado frágil da relação institucional que são os próprios policiais, trabalhadores precarizados.

Para a mídia, um espetáculo transmitido nacionalmente em tempo real, que garante a vitimização do governo estadual (Paulo Hartung, sem partido, e seu vice César Colnago, PSDB) e que se constrói a partir do sutil esvaziamento do debate político e da mobilização de sentimentos conservadores e tradicionalistas. “Conversem com suas esposas”, não à toa, foi sugerido pelo governo como solução ao impasse.

*André Keiji Kunigami é pesquisador, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e cursa doutorado em Literatura e Cinema na Universidade de Cornell (EUA)

Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital.