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Entidades debatem Liberdade de Expressão e Direitos Humanos na Internet

Realizado pelo Intervozes com parceria do CNDH, o seminário “Liberdade de Expressão e Direitos Humanos na Internet: em busca do equilíbrio” reuniu movimentos sociais e ativistas da rede, em Brasília

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social realizaram, nesta terça-feira, dia 22, em Brasília, o Seminário Liberdade de Expressão e Direitos Humanos na Internet: em busca do equilíbrio.

A atividade contou com a participação de várias entidades de direitos humanos e de defesa da internet, que juntos construíram um diálogo para efetivação dos direitos humanos dentro dos espaços virtuais da rede.

Segundo Iara Moura, conselheira do CNDH e integrante do Intervozes, não se trata de restringir o direito à liberdade de expressão, mas sim de proteger grupos que são historicamente negligenciados, não só no mundo real, mas também no espaço digital. “O efeito silenciador vem do próprio discurso. Precisamos promover um debate público e aberto de forma democrática”, destacou. Iara mencionou ainda o acúmulo histórico sobre o tema, como o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA), que destaca princípios norteadores para Liberdade de Expressão e Internet.

O procurador Domingos Neto, coordenador do Grupo de Trabalho Comunicação Social da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) reforçou que a internet é “um instrumento que potencializa a realização plena do artigo 19”, pois ela permite que qualquer um com acesso à rede possa não só consumir, mas também produzir comunicação.

Para os temas referentes à garantia dos Direitos Humanos na internet, ele frisou que o artigo 222 da Constituição Federal diz, no parágrafo 3º: “Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221”.

Ele conclui que esse olhar sobre o artigo reforça que toda produção da internet deverá respeitar os princípios de preferências para finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, como descrito no artigo 221. “O discurso de ódio não tem espaço nesse artigo. A internet é uma experiência coletiva que a gente vive e que deve ser respeitada de forma coletiva e não sobre as ‘minhas’ regras”, finalizou.

Entidades representativas de direitos das mulheres, LGBTI e movimento de negros destacaram a importância da internet para suas organizações, porém eles também relatam que é justamente na rede que acontecem os maiores ataques. “O mundo online para a população LGBTI é muito importante, pois é lá que estamos encontrando ajuda, apoio e organização, porém, ao mesmo tempo é um espaço de muita violência e a maioria tem base é fomentada por grupos religiosos”, lamentou Carlos Magno Fonseca, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis e Intersexos (ALBTI).

Laura Tresca, ativista da Artigo 19, reforçou que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, assim como qualquer outro direito. “Ela pode, e deve, ser restringida se baseando nos parâmetros dos direitos humanos internacionais, porém o que a gente vê é que essa restrição só acontece quando se tratam de políticos para calar as vozes dissidentes”.

Para os presentes, é unânime que não se devem criar novas leis em relação aos crimes cometidos pela internet. O consenso é que as regras do código penal são aplicáveis também no ambiente virtual.

Paulo Rená, do Instituto Beta para Internet e Democracia (Ibidem), afirmou que a internet ainda é um espaço limitado e centralizado em zonas economicamente atrativas. “Não é calando as vozes que resolveremos a questão dos direitos fundamentais”.

A advogada Flávia Lefèvre, conselheira do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), alertou sobre a importância de se fortalecer os espaços já existentes, como o CGI.br. Ela lembrou que hoje a entidade passa por um ataque, promovido pelo governo, que visa a enfraquecer a participação da sociedade e fortalecer as ações das empresas de telecomunicações. “Temos que fortalecer os mecanismos de gestão da internet, para que as teles não desmontem a participação que se tem hoje. Neste momento, o envolvimento de todos para o processo de revisão do processo de governança multiparticipativa no Brasil é fundamental para a preservação de direitos humanos, direito à comunicação, direito à informação e dos direitos de consumidores”.

Criado em 1995, o CGI.br é responsável pelo estabelecimento das diretrizes do setor; a promoção de estudos e padrões técnicos para segurança e serviços de internet; recomendações de procedimentos e padrões técnicos e promoção de programas de pesquisa e desenvolvimento.

No dia 08, deste mês o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações iniciou uma consulta pública com intenção de alterar o modelo do CGI.br, principalmente em relação às atribuições e à composição do Comitê. A atitude do governo de forma unilateral e sem diálogo prévio no interior do CGI.br é considerada um equívoco para entidades que defendem a internet no Brasil e que compõe a Coalizão Direitos na Rede.

O seminário discutiu ainda o papel das plataformas no combate às violações de direitos e na responsabilização de infratores e a importância de assegurar a aplicação do Marco Civil da Internet na garantia da defesa dos direitos humanos na rede.

A lei 12.965/14 , conhecida popularmente como o Marco Civil da Internet, rege o uso da rede no Brasil, definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web no país.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Como se expressa a sexualidade em tempos de Big Data?

Compreender como a internet pode servir para defesa ou violação de direitos sexuais é uma das tarefas para a emancipação de mulheres e LGBTQI

Por Marina Pita*

Quando soube que a Índia se incumbiu da tarefa de proibir sites pornôs, um amigo disse: mas afinal, a web serve para quê, se não para isso? A frase pode soar desrespeitosa para muita gente que realiza mil e uma atividades online, em um espaço digital aberto. Mas o fato é que um dos importantes usos da web é, sim, exercer a sexualidade – e reivindicar direitos relacionados a ela.

Considerando, entretanto, que há padrões normativos e que, em alguns países, qualquer diferença em relação a eles pode ser severamente punida, é preciso se debruçar sobre o impacto da vigilância massiva na internet também em relação à questão da sexualidade.

É isso que a Associação para o Progresso das Comunicações (Association for Progressive Communications, APC) quer entender agora, por meio da recém-lançada pesquisa sobre sexualidade online “EroTICS”.

Historicamente, as práticas de vigilância foram desenvolvidas de forma majoritária ao lado do patriarcado e da colonização. Mesmo antes do advento da computação, eram os corpos das mulheres, da população LGBTQI e das pessoas negras que estavam sob constante vigilância e controle. Afinal, quando o contexto social já é marcado por relações sexistas, então a tecnologia de vigilância (e outras) tenderá a amplificar tais tensões e desigualdades.

Big Data (grande conjunto de dados armazenados) e a prática de processá-los não podem, assim, ser pensados independentemente do contexto amplo em que foram criados e em que se desenvolveram.

É importante, neste sentido, ressaltar que a vigilância não se dá mais por alvos específicos, mas por meio da coleta massiva, pela generalização do conceito de suspeito e pela própria criação de suspeitos por meio de processos algorítmicos. Além disso, a nova coleta de dados se dá, em geral, de forma remota, praticamente invisível aos cidadãos objeto da vigilância. Ocorre, em geral, sem adequado consenso e com intensa transmissão de dados.

Tudo isso tem uma implicação diferente para mulheres, LGBTQI e negros. “A vigilância de hoje enquadra as pessoas em categorias, designando riscos e valores, de forma que têm implicações reais em suas opções de vida. Há profunda discriminação, o que torna a vigilância não apenas uma questão de privacidade, mas de justiça social”, afirmou David Lyon no livro “Surveillance as Social Sorting: Privacy, Risk and Digital Discrimination”, citado no artigo de Nicole Shephard, “Big Data and Sexual Surveillance”.

Shepard lembra que a coleta de dados comercial para enquadramento em tipos sociais, tradicionalmente não entendida como vigilância, também tem implicância no desenvolvimento das relações de gênero e sexualidade, entre outros. “O corpo e suas interações virtuais têm o potencial de ser reconstituído, controlado, ‘merketizado’ e quase literalmente vendido para maior oferta”, afirma.

Assim, mais do que nunca se faz necessário questionar como o cenário digital de coleta e processamento de dados afeta a sexualidade e a identidade de gênero, bem como aqueles que utilizam a internet como ferramenta para se expressar nestes âmbitos. É o que busca a terceira pesquisa global EroTICs.

Em suas edições anteriores, realizadas em 2013 e 2014, a pesquisa apurou, por exemplo, que 98% dos ativistas de direitos sexuais consideram que a internet é crucial para o seu trabalho. Por outro lado, 51% já receberam mensagens violentas ou ameaçadoras em decorrência de sua atuação nas redes.

Esses e outros dados levantados pela EroTICs levaram à inclusão de orientação sexual e identidade de gênero no relatório sobre criptografia, anonimato e direitos humanos nas comunicações digitais do Relator Especial da ONU para Liberdade de Opinião e de Expressão, em 2015.

O relatório faz uma séria de recomendações aos Estados que fazem parte da ONU, como treinamento sobre questões de gênero para policiais e funcionários responsáveis pela aplicação das leis e a exclusão de crimes de violência sexual de disposições de anistia no contexto dos processos de resolução de conflitos.

A ideia é prevenir violações e abusos contra defensores – e principalmente defensoras – de direitos humanos, a partir da compreensão de que há uma discriminação sistêmica e estrutural enfrentada por mulheres ativistas.

Para esta edição, a pesquisa dá preferência a militantes de direitos sexuais menos contemplados nos anos anteriores, como migrantes, refugiados, jovens, idosos, pessoas com deficiência e pessoas que enfrentam discriminações adicionais baseadas em raça, casta ou religião.

É possível responder ao questionário até 17 de agosto, em inglês ou em espanhol, e ajudar a colocar o gênero e a sexualidade no mapa das pesquisas sobre usos e riscos da internet. Essas dimensões da vida humana também precisam ser consideradas e problematizadas num momento de profundas transformações que o desenvolvimento traz.

*Marina Pita é jornalista e integra a Coordenação Executiva do Intervozes.

Teles avançam na verticalização e ameaçam provedores de conteúdo

Mudança no cenário de organização das empresas de tecnologia da informação e comunicações pode gerar perdas econômicas e culturais

Por Marina Pita*

Há um movimento de fusões e aquisições no mercado de telecomunicaçõesocorrendo que merece atenção. Tanto por parte daqueles que se preocupam com direito do consumidor e concorrência, quanto por parte daqueles que entendem a importância da diversidade cultural.

Em outubro de 2016, a AT&T, operadora norte-americana de telecomunicações, anunciou a compra da Time Warner, terceiro maior conglomerado do mundo do ramo de entretenimento, dono da HBO e da Turner, por exemplo. No mesmo ano, a Verizon, outra empresa de telecomunicações norte-americana, anunciou a aquisição do Yahoo, empresa de conteúdo na internet.

Em junho último, a operadora francesa Vivendi, que bem antes disso já havia declarado seu interesse em fortalecer a área de entretenimento (ela já controla a Universal Music e a EMI), anunciou o lançamento de uma plataforma de vídeo, a Studio+, em parceria com a operadora Vivo, para concorrer com o Netflix. Mais recentemente, e em uma escala muito menor, a Telefônica Brasil comprou as ações do Terra Networks Brasil, também uma empresa de conteúdo para a web.

Por ocasião do anúncio do negócio, Ricardo Sanfelipe, vice-presidente de estratégia digital e inovação da Vivo, afirmou ao jornal Valor Econômico: “É uma fronteira que está sendo derrubada”, citando a compra do Yahoo pela Verizon. Esta barreira, a qual Sanfelipe se refere, é a separação entre as empresas da camada de conteúdo e as empresas da camada de infraestrutura (a rede física que suporta a Internet).

Se as empresas de telecomunicações, em um primeiro momento, perderam a corrida para competir no ambiente chamado Over The Top (OTT) – a camada superior da Internet, a do conteúdo – e ficaram relegadas à venda da conexão e à construção de infraestrutura, atividades atualmente consideradas commodities e, portanto, de baixo valor agregado, está claro que está em curso uma nova estratégia para dar a volta por cima. E, a grande aposta está em usar a rede como vantagem competitiva para a entrega de conteúdo.

Uma das formas de garantir tal vantagem é oferecendo acesso às plataformas próprias sem descontar da franquia de dados dos usuários da rede. Em um mercado como o brasileiro, em que a grande maioria das pessoas conta com um plano de dados móvel, com limite de franquia baixo, esta parece ser uma cartada inteligente, se olhada a partir da perspectiva do negócio. O problema é que se olhada a partir da perspectiva do direito do consumidor e da concorrência, a estratégia se torna extremamente preocupante, visto que fere o princípio da neutralidade de rede. E, veja bem, isso já está acontecendo silenciosamente.

A Claro, do grupo mexicano de telecomunicações e entretenimento America Móvel, já vem atuando desta forma no Brasil. O pacote Claro Músicas, concorrente de plataformas de streaming como o Spotify, não é descontado do pacote de dados dos clientes Claro. A oferta foi divulgada em novembro de 2016 e é uma contra ofensiva ao TIMmusic by Deezer, aplicativo de músicas cujo tráfego é gratuito para clientes de vários planos da TIM.

A verticalização do setor de telecomunicações, por meio da ampliação dos negócios na área de produção e distribuição de conteúdo, pode significar uma mudança importante na economia das comunicações à medida que o acesso à conexão à Internet cresce, mesmo que precariamente. No caso de países que contam com grupos nacionais fortes na área de produção e distribuição de conteúdo, como é o caso do Brasil, com a Rede Globo, há uma grande possibilidade de queda de braço.

Não é de hoje que Globo e empresas de telecomunicações divergem nos modelos de negócio envolvendo conteúdo over the top e regras de funcionamento das redes de telecomunicações.

A própria aprovação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) – para regular o uso da Internet no Brasil por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para usuários e de diretrizes para a atuação do Estado – é resultado, mesmo que parcialmente, desta disputa. A Globo, em determinado momento, se convenceu da importância da neutralidade de rede, que impede o favorecimento ou a discriminação do tráfego em redes de telecomunicações e passou a explicar o conceito, bem como a fazer cobertura favorável à aprovação do MCI. Não seria espantoso descobrir que também tenha mexido algumas de suas “pecinhas” no Congresso Nacional.

Não apostemos demais na disputa

Mas o modelo também cresce, nem sempre com operadoras de telecomunicações oferecendo o chamado zero-rating (quando determinado tráfego não é descontado da franquia) para aplicativos próprios, mas também por meio de acordos com plataformas online populares.

A T-Mobile, operadora de telecomunicações norte-americana, por exemplo, mantém uma oferta chamada Binge On, em que o tráfego gerado por diversos serviços de vídeo não são descontados da franquia de dados. A Three, também operadora norte-americana, seguiu o mesmo caminho e passou a oferecer o Go Binge, um plano de dados com liberação de tráfego para o Netflix,  SoundCloud, Deezer e TVPlayer.

Ou seja, é possível que haja uma acomodação dos interesses de operadoras e plataformas de conteúdo e já há experiências exitosas nesse sentido, com anuência das agências reguladoras, o que é ainda mais preocupante. Por isto, não é prudente apostar mais do que algumas fichas na pressão das plataformas de conteúdo – ao lado dos consumidores e ativistas por uma web livre e aberta – pela defesa da neutralidade de rede.

Resta saber se a verticalização das empresas de telecomunicação, seja ela para fazer frente às empresas de conteúdo online ou simplesmente para gerar uma acomodação entre os interesses destes dois setores, será benéfica para os usuários, para a inovação, para a economia dos países tecnologicamente periféricos e para a diversidade cultural.

Este é um tipo de questionamento que só poderá ser respondido se os órgãos competentes estiverem atentos à movimentação que ocorre no setor, coletando dados sobre tais movimentações e analisando se elas respondem ao objetivo de garantir ao país sua soberania econômica e cultural.

*É jornalista e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Anatel ignora lei e atropela Conselho para aprovar plano de metas

Ao desprezar regra que prevê que Conselho Consultivo deve apreciar proposta de revisão de metas de universalização, agência exclui participação social

Por Flávia Lefèvre*

Visando as privatizações que ocorreram em julho de 1998, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de 1997, estabeleceu que a primeira fase dos contratos de concessão do serviço de telefonia fixa comutada (STFC) teria como termo final dezembro de 2005 e que poderiam ser renovados por, no máximo, mais 20 anos, sem possibilidade de prorrogação.

A LGT também condicionou a possibilidade de prorrogação dos contratos de concessão ao cumprimento das obrigações que foram estabelecidas pelo primeiro Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU – Decreto 2.592 de 15 de maio de 1998), que tinha o foco na implantação de redes de suporte ao STFC e de telefones de uso público, bem como o cumprimento de obrigações de continuidade na prestação deste serviço.

Chegado dezembro de 2005, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) certificou o cumprimento das metas estabelecidas pela LGT e os novos contratos de concessão foram assinados pelo prazo de mais 20 anos, com início a partir de janeiro de 2006 e termo final em dezembro de 2025.

Desses contratos, considerando a intensa dinâmica do setor,  constou a previsão de revisão das concessões a cada 5 anos e, nesse contexto, as obrigações de universalização foram sendo redefinidas por meio de mais três decretos: em 2003, 2008 e o último em 2011.

Para a definição dos PGMUs, a LGT estabeleceu que a Anatel deve elaborar uma proposta que, antes de ser encaminhada ao Poder Executivo para edição do respectivo decreto, deve obrigatoriamente passar pela apreciação do Conselho Consultivo da agência. Isto porque o Conselho Consultivo é o órgão de participação institucionalizada da sociedade civil nas atividades e nas decisões da Agência, cujos 12 participantes representam o governo, os consumidores, organizações da sociedade civil e as empresas, sendo indicados pela sociedade civil ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e nomeados por decreto do Presidente da República.

Ocorre que, justificando as críticas das quais a Anatel vem sendo alvo, há anos, algumas inclusive feitas por diversos acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), apontando atuação que privilegia os interesses dos agentes econômicos regulados em detrimento dos interesses dos consumidores e falta de transparência, a agência e o Poder Executivo têm deixado há anos de agir no sentido de nomear todos os membros para o Conselho Consultivo, que muitas vezes fica sem quórum para tomar decisões.

É o que está acontecendo neste exato momento. O Conselho Consultivo não tem membros nomeados nem para garantir o quórum mínimo, em razão do que o processo de revisão quinquenal dos contratos de concessão, que já deveria ter sido finalizado em dezembro de 2015, está pendente, pois depende da apreciação do PGMU pelo Conselho Consultivo para que possa ser enviado ao MCTIC.

O histórico de não nomeações de integrantes para o Conselho Consultivo revela fato grave: todos os governos, sem distinção, desde a instalação da agência em 1997, foram relapsos e descomprometidos com a garantia de participação da sociedade nas decisões de grande importância ocorridas no âmbito da Anatel.

E é nesse contexto a mais recente ilegalidade perpetrada pela agência. No último dia 30 de maio, o atual presidente da Anatel anunciou que não iria mais esperar a aprovação do PLC 79/2016, que propõe alterações radicais na LGT, para assinar os contratos de concessão e que também iria ignorar a obrigatoriedade de o PGMU passar pelo Conselho Consultivo, como determina a lei, por impossibilidade de realização das reuniões e, sendo assim, já encaminhou a proposta ao MCTIC.

É lamentável que o presidente da Anatel tenha omitido no ofício, por meio do qual encaminhou a proposta de PGMU ao MCTIC, que a última reunião, marcada em janeiro de 2017 para a análise pelo Conselho Consultivo, foi cancelada por ordem dele, sob a alegação de que a agência não possuía recursos para arcar com as passagens aéreas dos conselheiros. Afirmo isso porque fui membro do conselho até fevereiro deste ano.

O descaso da Anatel e do MCTIC quanto a respeitar os instrumentos legais instituídos com vistas a revestir de algum grau de democracia a definição de instrumentos regulatórios voltados para o cumprimento de políticas públicas de telecomunicações é inadmissível. Primeiro porque houve um desgaste enorme de recursos financeiros e humanos da agência em processos de elaboração de propostas tanto de contrato de concessão quanto de plano geral de universalização e também de revisão do Plano Geral de Outorgas, ignorando a LGT e tomando por base um projeto de lei altamente  controverso. Tanto é assim que o PLC 79/2016 está judicializado no Supremo Tribunal Federal (STF) e, por força disto, com o trâmite suspenso no Senado Federal.

Ou seja, a Anatel gastou tempo e dinheiro público num processo realizado sem nenhum respaldo legal, atrasando a revisão dos contratos de concessão ou mesmo uma outra decisão no sentido de antecipar o vencimento desses contratos e estabelecer um novo caminho com base nas diretrizes fixadas na LGT que está em vigor. Algo que poderia contribuir para a definição de novas políticas públicas que induzissem a novos investimentos em redes de fibra ótica para dar suporte ao acesso a Internet em banda larga, atendendo às demandas da sociedade, abrindo a oportunidade de utilização do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), estendendo-se o regime público para a infraestrutura que dá suporte à banda larga.

É o que as entidades envolvidas há anos na Campanha Banda Larga é um Direito Seu! vêm propondo com respaldo no art. 65, da LGT.

A edição de decreto do novo PGMU sem discussão  com a sociedade civil, especialmente neste momento, é extremamente preocupante, posto que a proposta elaborada pela Anatel reduz radicalmente obrigações de universalização e deixa de utilizar saldo bilionário em favor dos consumidores. Saldo este decorrente de processo de troca de metas ocorrido em 2008 e que deveriam ser utilizados em favor da implantação pelo menos de “backhaul – infraestrutura de rede de suporte ao STFC para conexão em banda larga, interligando as redes de acesso ao backbone da operadora”, conforme definição do Decreto 6.424/2008.

Está claro, então, que a Anatel e o MCTIC não têm interesse de discutir políticas públicas com a sociedade civil. Se tivessem, atuariam no sentido de manter o Conselho Consultivo completo e funcionando de modo a estimular os debates e abrir espaço para que outros agentes menos poderosos do que as grandes concessionárias do STFC – que hoje concentram o market share também da telefonia móvel e do serviço de acesso à Internet – pudessem contribuir de forma mais intensa para o processo regulatório.

E com sua resistência para os processos democráticos, estes órgãos atropelam os princípios da administração pública e contaminam os atos da agência, que vêm sendo reiteradamente questionados pelo TCU e Ministério Público, de quem esperamos providências urgentes, diante dessas novas e graves ilegalidades.

*Flávia Lefèvre é advogada, conselheira na PROTESTE – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e atualmente representa a sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.BR)

Protejam a criptografia do WhatsApp, inclusive dele mesmo

Os debates em torno do bloqueio do aplicativo têm como pano de fundo a defesa de buracos na criptografia, o que só amplia a nossa vulnerabilidade

Por Marina Pita*

Por trás de todo o debate acerca de decisões judiciais de bloqueio do WhatsApp, que nesta primeira semana de junho mobilizou audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF), há uma tentativa de questionar o uso civil da criptografia. Poucas movimentações subterrâneas poderiam ser mais preocupantes do que questionar a legitimidade do uso amplo e irrestrito da criptografia.

Por mais que se estude um vulcão, nunca se pode prever com total exatidão quando ele entrará em erupção. Se for aberta alguma brecha legal que enfraqueça a criptografia do WhatsApp, nós voltaremos à era A.S. (Antes de Snowden) e nossos esforços para garantir a privacidade para todas e todos serão desmontados.

O WhatsApp, aplicativo de mensagem instantânea adquirido pelo Facebook em 2014 por US$ 22 bilhões, passou a ter criptografia ponta-a-ponta em novembro de 2014 – primeiro em dispositivos com sistema operacional Android.

A atualização do aplicativo, após contratar a Open Whisper Systems, uma empresa de sistemas de criptografia, foi um passo gigantesco para o uso de criptografia de forma rotineira e por usuários não técnicos. Apesar de outros aplicativos como o Telegram, TextSecure e Signal já contarem com a funcionalidade, o volume de usuários do app do Facebook faz toda a diferença. Em maio, a aplicação contava com cerca de 120 milhões de usuários no Brasil e 1,2 bilhão de usuários no mundo inteiro.

Todas as vezes que a Justiça pede ao WhatsApp as conversas de pessoas investigadas, esbarra no fato de que, com a criptografia ponta-a-ponta, nem mesmo a empresa controladora do aplicativo tem acesso às conversas dos usuários. Ou seja, não é que a empresa não está respondendo aos pedidos da Justiça brasileira por relutar em cumprir a legislação brasileira – e assim em último e extremo caso correr o risco de ser bloqueada, conforme estabelece o Marco Civil da Internet.

O caso é que as conversas não são acessíveis pelos usuários em questão. Ou seja, mais do que uma atitude arrogante de uma companhia estrangeira, este é um caso mais bem classificado como de falta de entendimento da Justiça brasileira sobre o funcionamento de determinadas tecnologias.

O entendimento de que as conversas no WhatsApp não podem, da forma como funcionam hoje, serem interceptadas de forma simples, faz com que os setores vigilantistas peçam a inclusão de uma porta, teoricamente para uso exclusivo para os casos de pedido judicial, de acesso a mensagens. As portas adicionadas para acesso por determinados órgãos de segurança e governo são chamadas de backdoor, termo em inglês que significa “porta dos fundos” e remete aos acordos escusos entre empresas e governos para a inclusão destes acessos discretos, muitas vezes desconhecidos pelos usuários.

É isto que está acontecendo neste momento quando alguns setores afirmam que a criptografia não pode ser absoluta e que deve ser submetida à legislação brasileira. O que estão pedindo, com este discurso, é a criação de uma porta dos fundos, backdoor, para atender aos pedidos judiciais. E este discurso é bastante convincente para parte dos brasileiros que mantém rancor, desconfiança e antipatia com relação a qualquer empresa/iniciativa que venha dos Estados Unidos.

Precisamos admitir, é um sentimento muito justo, afinal, o país do tio Sam sempre ignorou o direito à autodeterminação dos povos, inclusive interferindo para a queda de presidentes ao longo da sangrenta história latino-americana, para citar apenas uma forma de interferência nas sociedades abaixo do Trópico.

O problema é que, por mais que alguém tenha a maior antipatia do mundo por estadunidenses e pela forma como a elite do país explora os latino-americanos, ao criar portas dos fundos nos sistemas de troca de mensagem instantânea, o que se obtém não arranha, de alguma forma, o negócio do WhatsApp – por mais que milhares de usuários decidam migrar para outra solução mais segura, ainda assim seria residual. E, o mais importante, não há maior segurança para todos nós brasileiros porque os órgãos de investigação e a Justiça passam a ter acesso aos dados quando quiserem.

Ao aceitarmos a criação de portas dos fundos em qualquer serviço de comunicação criptografado, o que estamos escolhendo, como sociedade, é ampliar a nossa vulnerabilidade – a de todos nós – a ataques e roubos, isso sem falar em abrir espaço para a vigilância político-ideológica, econômica, religiosa, etc.

Vamos ao recente exemplo concreto: WannaCry, o ataque ransomware que teria atingido 150 países. Este é um tipo de ataque em que há invasão do dispositivo eletrônico e sequestro de parcela ou totalidade dos arquivos, tornando-os inacessíveis para o proprietário, sendo que é exigido um resgate, geralmente em bitcoin (moeda virtual).

Ninguém menos do que a Microsoft, cujo sistema operacional vulnerável por uma backdoor instalada para acesso remoto da Agência de Vigilância dos Estados Unidos (NSA) a todo e qualquer dispositivo eletrônico que rodasse Windows, vinha sendo explorada.

A empresa veio a público explicar, o que, em tempos de Operação Lava Jato, podemos resumir como “a NSA teve algumas de suas informações roubadas e vazadas e comprometeu o esquema todo”. Se a Agência Nacional de Vigilância dos Estados Unidos perdeu algumas ferramentas de ataque e acesso a sistemas, imagina uma chave de acesso sob controle de qualquer autoridade brasileira. Este é o país que vaza áudios de uma presidenta democraticamente eleita.

Não cabe à sociedade civil, tal como o Intervozes, mantenedor deste blog, apontar as múltiplas outras formas de se obter informações de dispositivos eletrônicos, de forma a responder a casos isolados de mal uso de aplicações digitais por criminosos, mas de forma a não fragilizar sistemas usados por toda a população.

São respostas proporcionais ao tamanho do problema dos órgãos de segurança e da Justiça. Precisamos lembrar que a maioria de nós é inocente e deve ter assegurado o direito à privacidade até que se prove o contrário.

Vamos brigar pela coisa certa

Agora, os nossos poréns com as plataformas estrangeiras, especialmente as dos Estados Unidos, não acabam simplesmente porque defendemos que a polícia precisa sim de apoio para a realização de seu trabalho, mas que isso não pode prejudicar a privacidade de todos nós.

Da mesma forma que não queremos ser potencialmente vigiados e explorados pela coleta de nossos dados pessoais e nossa comunicação em nosso próprio país e, por isso, defendemos a criptografia ponta-a-ponta, também não queremos que outros países o façam. Mas não é isso que acontece, inclusive considerando o WhatsApp.

Vamos voltar no tempo rapidamente e rever o vídeo do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em coletiva de imprensa para tratar do vazamento de arquivos da Agência Nacional de Vigilância (NSA).

A partir do segundo 58 do vídeo, Obama diz: “Com relação à internet e aos e-mails, isso [coleta de dados da NSA em acordo com as plataformas e empresas americanas de internet] não se aplica aos cidadãos americanos e pessoas morando nos Estados Unidos. Este programa é supervisionado pelo Congresso e pela Corte Fisa, criada pela Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Fisa)”.

Basicamente, ele diz sem meias palavras que sim, as empresas estrangeiras podem coletar o que quiserem de qualquer um de nós, os reles brasileiros. Isso acontece porque a seção 702 da Fisa permite que qualquer comunicação de não-americanos e pessoas localizadas fora dos Estados Unidos possa ocorrer. Agora pensa bem: toda essa estrutura de vigilância e coleta de dados está nas mãos de Donald Trump!

Já o WhasApp, em seus termos de uso, detalha que “pode reter data e horário de entrega de mensagens e os números dos celulares envolvidos na troca de mensagens, bem como qualquer outra informação a que seja legalmente compelido a coletar”.

Ou seja, sim, nós precisamos que as empresas estrangeiras que atuam no Brasil respeitem as leis brasileiras, incluindo aí o Marco Civil da Internet. E, não, esta batalha não está ganha. Mas fazer essas empresas quebrarem a criptografia ponta-a-ponta não é a forma útil de comprar esta briga. Vamos lutar pelo que nos trará maior segurança.

*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes