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O Brasil e a revolução dos conteúdos audiovisuais digitais

Em tempos de mídias digitais e de mudança do sistema analógico de televisão para o modelo de TV digital (TVD), várias transformações se fazem necessárias, como a preparação dos técnicos e profissionais de comunicação e de telecomunicação que já se encontram no mercado, ou a atualização dos currículos universitários na área da Comunicação, para que professores e alunos possam desenvolver e exercitar a produção de conteúdos audiovisuais digitais.

Isso inclui produção de conteúdos de áudio, vídeo, texto e dados para diferentes plataformas tecnológicas como celulares, TV digital móvel, rádio e cinema digital, computadores mediados por internet e videojogos em rede. Uma produção que pode ser desenvolvida para cada aparelho ou conteúdos voltados para a convergência entre as diferentes tecnologias, o que exige pensar, desenvolver e realizar pesquisas para os novos formatos audiovisuais digitais interativos e interoperáveis.

A TV e rádio digital, os celulares, os videojogos em rede, os computadores mediados por internet ou os conteúdos audiovisuais pensados para a convergência exigem novos formatos de programação e também novos modelos de negócios para essas mídias. Isso porque não é possível comparar os modos de produção jornalística ou ficcional para TV e rádio analógica com as novas necessidades da TV e rádio digital, nem simplesmente repassar esses conteúdos para a TV usada em um computador com acesso a internet. Tampouco é possível desenvolver conteúdos ficcionais ou jornalísticos para celulares que, além de possuírem uma tela pequena, exigem outro tipo de linguagem e relação com seus públicos.

No caso da televisão digital, os novos formatos audiovisuais terão de ser elaborados pensando as possibilidades interativas do público com a TVD, pensando multiprogramação, acessibilidade, usabilidade (do controle remoto, que poderá ser usado como um miniteclado) e pensando a melhora considerável da imagem que permite observar detalhes antes não vistos na TV analógica (rugas, espinhas, defeitos nos estúdios etc).

Outra diferença importante do sistema analógico para o digital é que é possível mudar a origem da produção dos conteúdos audiovisuais digitais, até então restrita a grupos de comunicação como Globo, SBT, Grupo Abril, Record etc. Ou seja, a produção de conteúdos audiovisuais digitais poderá ser feita por profissionais de Comunicação ou mesmo por produtores independentes, eliminando a necessidade de intermediários como os grupos de comunicação brasileiros que há anos concentram e produzem conteúdos para diversas mídias – como rádio AM e FM, televisão aberta e por assinatura, TV digital, provedor de internet, jornais e revistas impressas e por internet, produtoras de filmes e vídeos, empresas discográficas, agências de notícias, etc.

Neste caso, a produção de conteúdos audiovisuais digitais interativos poderia ser feita desde casa, de um estúdio ou redação, ou mesmo a partir de uma organização não governamental em um bairro ou grupo social, representando outras vozes ao discurso informativo e ficcional atual.

Desenvolvimento da criatividade

Pensando na possibilidade de ampliar a produção de conteúdos audiovisuais independentes para as mídias digitais e, por conseqüência, abrir novos nichos no recém criado mercado audiovisual digital, o governo brasileiro apresentou em 2008 a proposta de criar o Centro Regional de Produção de Conteúdos Digitais para América Latina e Caribe.

Esse Centro foi aprovado no Congresso da Sociedade da Informação para América Latina e Caribe realizado em El Salvador, em fevereiro do ano passado. Na prática, isso significa desenvolver políticas nacionais de comunicação e estimular a criação de centros nacionais em toda a região, atividade que ficou a cargo do Grupo de Trabalho (GT) sobre Conteúdos Digitais Interativos da Sociedade da Informação / eLAC 2010, cuja coordenação é brasileira.

Uma das atividades desse GT é realizar seminários internacionais sobre inclusão e produção de conteúdos digitais interativos com a participação de diferentes atores sociais, como governos, empresas de diferentes portes, ONGs e academia, abrindo a discussão sobre as possibilidades de produção de conteúdos digitais interativos em diferentes mídias e para diferentes áreas em cada país. Essas áreas abrangem a educação a distância, o jornalismo digital, os produtos ficcionais audiovisuais, serviços voltados para saúde e cidadania – como marcar consultas no SUS a partir da TV digital e acompanhar processos jurídicos; ou serviços bancários, como pagamento de contas, além de projetos de inovação e tecnologia, alfabetização digital, entre outros.

Outro ponto importante é criar as condições para a criação dos Centros Nacionais de Produção de Conteúdos Digitais, voltados para o desenvolvimento da criatividade, da inovação tecnológica e de uma futura venda desses conteúdos audiovisuais tanto para o mercado interno como externo, gerando renda e um pólo alternativo de produção, diferente dos já existentes em países como EUA ou Inglaterra.

Possibilidades de inclusão

Em 2008, foram convocados dois seminários internacionais na região, sendo o primeiro foi organizado por SELA, na Venezuela (outubro/2008) e o outro realizado no Brasil pelo Ministério de Ciência e Tecologia (MCT), com o apoio da Comisión Económica para America Latina e Caribe – CEPAL/Unesco e do governo federal. O Seminário Internacional sobre Inclusão e Produção de Conteúdos Digitais Interativos realizado em Brasília (dezembro/2008) contou com a presença de representantes de 14 países e sua coordenação acaba de lançar o relatório com as recomendações do evento, assim como a Carta de Brasília (ver aqui). Na mesma ocasião, o MCT lançou oficialmente o Centro Nacional de Produção de Conteúdos Digitais Interativos e Interoperáveis que ainda se encontra em fase de implantação.

Entre as atividades do Centro Brasileiro estão:

** A realização de oficinas para que profissionais, professores e estudantes de todo o país aprendam a usar o Ginga para desenvolver conteúdos digitais interativos e com multiprogramação, pois esse middleware é uma das grandes contribuições brasileiras para a padrão nipo-brasileiro de TV digital;

** O levantamento de onde estão localizadas as pesquisas na área acadêmica voltadas para o desenvolvimento de conteúdos digitais para as diferentes plataformas tecnológicas existentes atualmente para, em breve, apoiar esses pesquisadores para que desenvolvam projetos e produtos nessa área;

** A disponibilização ao público latino-americano e caribenho da Coleção "Comunicação Audiovisual Digital" em português e espanhol (versão impressa e eletrônica), estimulando a reflexão e o desenvolvimento de novos projetos de conteúdos audiovisuais no país e ainda apontar as melhores práticas na área;

** O desenvolvimento de competência nessas novas áreas da Comunicação em todo o país.

Nesse sentido, o Brasil busca também tornar-se uma referência na região. Para isso, estimula a adoção do sistema brasileiro de TV digital (SBTVD) em outros países e leva seus especialistas para debater e apresentar conferências mostrando as possibilidades de inclusão através das novas mídias digitais e da produção de conteúdos audiovisuais na América Latina e Caribe.

A gripe suína e o pandemônio da mídia

Comentário para o programa radiofônico do OI, 5/5/2009

A cobertura da evolução da chamada gripe suína, que passou a ser classificada como gripe H1N1, virou um verdadeiro pandemônio. Depois de um início cauteloso, no qual, entre os jornais brasileiros, apenas O Globo saiu do tom, resvalando para o alarmismo, o que se vê nos últimos dias é a repetição de declarações e dados controversos.

Depois da desastrada cobertura da epidemia de dengue que atingiu o Rio de Janeiro no ano passado, quando a maioria dos jornais bateu cabeça enquanto o número de casos se avolumava até atingir 110 mil contaminados e uma centena de mortes, a imprensa parecia ter encontrado o tom.

A exceção continua sendo O Globo, que apenas na edição de segunda-feira (4/5) admitiu um texto mais ameno. Durante toda a semana, o jornal carioca vinha insistindo em apresentar um quadro que não era visível nos outros periódicos. Como as fontes de informação são as mesmas agências internacionais de notícias, que, em primeira instância, têm como fonte principal a Organização Mundial de Saúde, fica difícil entender tamanha variação na interpretação dos dados.

Onda de pânico

Inicialmente, seguindo as informações oficiais, os jornais cravaram a certeza de que a gripe havia provocado 150 mortes no México. Somente depois que as equipes da OMS chegaram à região onde supostamente se originou o surto constatou-se que, na verdade, não se poderia afirmar que a doença tenha provocado mais do que oito casos fatais.

Até hoje, faz falta nos jornais um perfil da população mais afetada, para que o leitor brasileiro possa fazer ponderações com as suas próprias condições de vida e avaliar o tamanho do risco que corre de ser contaminado.

No último trimestre de 2008, o noticiário sobre uma suposta epidemia de febre amarela levou milhares de pessoas a buscar a vacinação, tendo ocorrido até mesmo alguns casos de inoculações repetidas que provocaram mortes. Nem mesmo as sucessivas declarações de autoridades sanitárias puderam conter a onda de pânico que se alastrou por algumas cidades.

Os jornalistas parecem ter aprendido a lição. Mas nem todos.

Anotações sobre o julgamento do STF

O julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130 pelo Supremo Tribunal Federal – independente da decisão final – ofereceu uma ocasião única aos estudantes das Comunicações. Como a grande mídia tem historicamente sonegado aos leitores, ouvintes e telespectadores o debate sobre o seu papel, nada melhor do que um julgamento, transmitido ao vivo pela TV Justiça, para um revelador panorama do que pensam os proponentes da ação, os ministros da Corte Suprema e as variadas interpretações legais de questões como liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

Apesar das dificuldades quase impenetráveis das tecnicidades legais, o interessado leigo notará de saída no texto da ADPF (ou da "Inicial", como preferem os advogados), subscrito pelo PDT em fevereiro de 2008, uma ausência de rigor conceitual: não se faz diferença entre liberdade de comunicação, de expressão, de pensamento, de opinião, de informação e de imprensa. Constata-se também que são usados como referência para sustentação do argumento editoriais de jornais de três dos principais grupos empresariais de mídia do país, isto é, O Globo, a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Equaciona-se, sem mais, a liberdade de imprensa de grandes grupos de mídia com a liberdade individual de expressão.

Já os votos dos onze ministros proferidos ao longo do julgamento, iniciado no dia 1º e encerrado em 30 de abril (pendente a publicação do acórdão), são extremamente reveladores. Faço aqui apenas umas poucas anotações pontuais.

De que país estamos falando?

O parecer do relator, apoiado integralmente por outros seis ministros, remete a uma "imprensa" idealizada que não é possível identificar-se com aquela em funcionamento no nosso país. Diz ele, por exemplo, no parágrafo 29:

"O que se tem como expressão da realidade, portanto, é, de uma banda, um corpo social progressivamente esclarecido por uma imprensa livre e, ela mesma, plural (visto que são proibidas a oligopolização e a monopolização do setor). Corpo social também progressivamente robustecido nos seus padrões de exigência enquanto destinatário e consequentemente parte das relações de imprensa. De outra banda, uma imprensa que faz de sua liberdade de atuação um necessário compromisso com a responsabilidade quanto à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público. Do que decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade, até porque, sob o prisma do conjunto da sociedade, quanto mais se afirma a igualdade como característica central de um povo, mais a liberdade ganha o tônus de responsabilidade. É que os iguais dispõem de reais condições de reagir altivamente às injustiças, desafios e provocações do cotidiano, de modo a refrear os excessos ou abusos, partam de onde partirem, venham de quem vierem" (…) [grifos no texto original].
A primeira pergunta que ocorre é se o fato de o parágrafo 5º do Artigo 220 da Constituição – aliás, não regulamentado – rezar que "os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio" significa, automaticamente, a não existência de monopólio e/ou oligopólio na mídia brasileira?

A segunda pergunta, por óbvio, é se a mídia brasileira "faz de sua liberdade de atuação um necessário compromisso com a responsabilidade quanto à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público"?

Estamos falando do mesmo país e da mesma mídia? Bastaria lembrar, por exemplo, a ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, em Santa Catarina, contra o Grupo RBS (cf. Ação nº 2008.72.00.014043-5 , de janeiro de 2009). Segundo nota do próprio MPF "a situação de oligopólio é clara, em que um único grupo econômico possui quase a total hegemonia das comunicações no estado. Por isso, a ação discute questões como a necessidade de pluralidade dos meios de comunicação social para garantir o direito de informação e expressão; e a manutenção da livre concorrência e da liberdade econômica, ameaçadas por práticas oligopolistas" [veja aqui].

Uma rejeição e três ressalvas

Um dos ministros julgou inteiramente improcedente a ADPF. Afinal, perguntou ele, desde o fim do regime militar, em 1985, não tem sido livre a imprensa? Qual o "preceito fundamental" ferido que justificaria a "Inicial"? (Editorial sobre a decisão do STF, publicado na edição de sábado (2/5) do Correio Braziliense, traz o título "Imprensa alforriada". Ora, alforria, significa, "libertação concedida ao escravo; libertação de qualquer grupo ou domínio". Era essa a situação da imprensa brasileira nos últimos 24 anos?).

Os votos dos três ministros que não concordaram integralmente com o relator fizeram diferentes ressalvas, e pelo menos um deles mencionou en passant a questão da concentração da propriedade da mídia nas mãos de uns poucos grupos empresariais e a omissão que não "dá voz" ou trata com preconceito a determinados grupos sociais. Na verdade, a principal preocupação estava no "vazio legal" que se seguiria à revogação total da Lei 5.520/67 em relação ao "direito de resposta", garantido pelo inciso V do artigo 5º da Constituição.

Se, por um lado, preocupava a incerteza jurídica que a ausência de regulação representa para as empresas de mídia sujeitas a decisões de primeira instância de "um juiz qualquer", por outro, o "direito de resposta" trouxe finalmente ao debate o seu esquecido sujeito principal, isto é, o cidadão, justificativa única para a liberdade de expressão e para a liberdade de imprensa.

A quase totalidade das considerações dos ministros sempre foi feita no pressuposto de que o Estado representa uma ameaça permanente para a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Ignora-se que, nas sociedades contemporâneas, essas ameaças têm partido também – ou, sobretudo – da autocensura e dos próprios conglomerados de mídia (ver, neste Observatório, "A privatização da censura "). Somente um ministro lembrou-se de mencionar a necessidade de proteger os cidadãos do poder da própria mídia, totalmente assimétrico em relação a ele. Outra ressalva lembrou que recuperar a reputação erroneamente destruída pela mídia é como tentar juntar as plumas de um travesseiro atirado pela janela do último andar de um arranha-céu.

Desânimo reiterado

Há quase quatro anos, escrevendo neste OI sobre a decisão do STF de arquivar a Petição 3486-4 (ver "Liberdade de imprensa e liberdade de empresa"), manifestei meu desânimo em função dos argumentos desenvolvidos à época revelarem um incrível descolamento entre as normas legais e o pensamento jurídico vis-à-vis a reflexão crítica contemporânea, não só na academia e nos observatórios de mídia, mas também entre profissionais experientes que pensam com seriedade o jornalismo, no Brasil e no exterior.

O julgamento da ADPF 130, não conduz a outra conclusão. Até mesmo a frase incompleta de Thomas Jefferson, refúgio permanente da grande mídia para desqualificar as críticas justificadas que se fazem contra ela, foi repetida como referência da verdade (ver "Anotações sobre Jefferson e a imprensa ").

Num país onde o Congresso Nacional, que deveria fazer as leis que regulassem democraticamente as atividades da mídia, permite que seus integrantes sejam eles próprios concessionários de emissoras de rádio e televisão, estamos, infelizmente, longe do reconhecimento legal de que, como afirma o jurista Fabio Konder Comparato:

"A liberdade de expressão é, tradicionalmente, considerada a pedra angular dos regimes democráticos. (…) Hoje, no entanto, todos entendem que a expressão pública do pensamento passa, necessariamente, pela mediação das empresas de comunicação de massa, cujo funcionamento exige graus crescentes de capitalização. Aquele que controla tais entidades dispõe, plenamente, da liberdade de expressão. Os demais membros da coletividade, não. ("É possível democratizar a TV?" in Adauto Novaes, org., Rede Imaginária – TV e Democracia; Companhia das Letras, 1991).

 

Lei de Imprensa: muito além da letra da lei

O Supremo Tribunal Federal deve votar na quinta-feira (30) a proposta de extinção da Lei de Imprensa, parte do chamado "entulho autoritário" herdado da ditadura militar. A iniciativa é do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) e já teve dois votos favoráveis: dos ministros Carlos Ayres Britto (relator) e Eros Grau.Caso não se repita a recente refrega entre o presidente da corte Gilmar Mendes e o ministro Joaquim Barbosa, e os ânimos dos meritíssimos estejam efetivamente serenados, é possível que a votação se encerre nesta semana.

O deputado Miro Teixeira está eufórico com a nova oportunidade de vestir a toga na mais alta instância judiciária. Mantém-se completamente afastado do turbilhão que envolve a totalidade dos seus pares na Câmara Baixa (baixíssima, aliás) envolvidos nas mordomias e no tráfico das passagens aéreas.

A euforia do deputado é justificada: a Lei de Imprensa é um estatuto caduco. Porém sua extinção pura e simples não resolverá os problemas relacionados com a liberdade de expressão e acesso à informação. Nosso jornalismo – digital, eletrônico ou impresso – não se tornará mais qualificado, mais livre e mais responsável no momento em que for extinta, integral ou parcialmente, a famigerada legislação promulgada em 1967, há 42 anos.

Rapidez e firmeza

Miro Teixeira está vivamente empenhado em acabar com este símbolo do autoritarismo. Acredita que uma imprensa é livre a partir do momento em que supera os constrangimentos impostos pelos poderes políticos, militares e econômicos. Ainda não sabemos o que pensa o ex-jornalista, ex-ministro das Comunicações e incansável parlamentar a respeito do acesso irrestrito à informação, concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas empresas e, sobretudo, qual o seu projeto para a criação de entidades capazes de constituir um contrapoder democrático ao poder incontrolado dos grandes conglomerados de comunicação.

O direito de resposta é uma questão que ocupa nossos legisladores desde os tempos da primeira Carta Magna. O "crime de imprensa" é uma noção antiquada que, para ser efetivamente removida, necessita de um ambiente informativo pluralista, diversificado, sem o qual a sociedade jamais saberá com precisão qual é a ofensa, quem o ofendido e o ofensor. Mas existem novas circunstâncias, criadas a partir da redemocratização, que precisam ser encaradas com rapidez e firmeza de modo a evitar que a eventual extinção da abominável Lei de Imprensa não se transforme em ritual remotamente semelhante à conquista da liberdade.

Processo de mudança

Se a Lei de Imprensa é o símbolo da ditadura, a sua eliminação não pode ser simbólica nem subjetiva. Se o deputado Miro Teixeira comover e convencer os supremos magistrados a sepultar os mecanismos censórios entranhados na Lei 5.250, está automaticamente convocado para obrigar o Congresso – onde milita – a restabelecer o Conselho de Comunicação Social, previsto pela Constituição Cidadã de 1988 e seqüestrado há dois anos pelos interesses escusos dos coronéis eletrônicos.

Denunciados por este Observatório da Imprensa numa representação à Procuradoria Geral da República, continuam na ilegalidade na dupla condição de parlamentares-concessionários. Não será necessário vestir a toga nem desgastar as cordas vocais para desarquivar uma denúncia que poderá acabar com a aberração original da nossa mídia eletrônica.

O fim da Lei de Imprensa não é um fim. É um início. Deve gerar providências complementares imediatas. Um processo de mudança – se é que desejamos efetivamente uma mudança no campo da informação – exige novos instrumentos, novo sistema de forças e freios. Exige, principalmente, uma aliança de vontades, um mínimo de consenso entre os principais atores do elenco.

O fim da Lei de Imprensa não pode parecer uma quixotada.

O cochilo dos coronéis

Tudo começou em 5 de julho de 2006, com um Requerimento (REQ) dirigido ao presidente do Senado, assinado pelos senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Tião Viana (PT-AC) (cf. REQ nº 782 de 2006, Diário do Senado Federal de 6/7/2006; pág. 22841). Tendo em vista o procedimento rotineiro de votação simbólica na apreciação dos Decretos Legislativos referentes a outorga e/ou renovação dos serviços de radiodifusão, os senadores solicitavam "a título de definição normativa (…) para o fim de exata instrução de matérias atinentes, a teleologia do disposto no art. 54, inciso II, letra a , da Constituição Federal, nos casos de concessões (de radiodifusão)".

O texto constitucional tem sido permissivamente interpretado como impedindo deputados e senadores apenas de serem gestores nas empresas concessionárias dos serviços de rádio e televisão, embora reze o seguinte:

Artigo 54. Os Deputados e Senadores não poderão:

(…)

II – desde a posse

a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoas jurídicas de direito público, ou nela exercer função remunerada.

Na justificativa ao requerimento, os senadores se apoiavam em matérias publicadas no Estado de S.Paulo (de 2/7/06) e na Folha de S.Paulo (3/7/06).

A primeira matéria tratava de representação que o Projor [veja aqui ], entidade mantenedora deste Observatório da Imprensa, ofereceu à Procuradoria Geral da República em outubro de 2005 sobre parlamentares que não só eram proprietários de emissoras de rádio e televisão, mas votavam na renovação de suas próprias concessões. A segunda relatava ato inédito da Presidência da República que solicitou ao Congresso a devolução de 225 processos de renovação de concessões de rádio e televisão, ameaçados de rejeição pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados.

A longa tramitação do requerimento

Encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o requerimento 782/06 não foi distribuído para relatoria até o final da 52ª Legislatura. De volta à CCJ na 53ª. Legislatura, ele só foi distribuído ao relator quase dezessete meses depois, em 28 de novembro de 2007.

Apesar de entregue vinte dias depois, o relatório alcançou a pauta para votação apenas na 5ª Reunião Ordinária da CCJ em 2009, iniciada no dia 1º e concluída na terça-feira, dia 7/4/09. O requerimento em questão, portanto, precisou de mais de dois anos e nove meses para ser votado na CCJ.

O relatório do senador Pedro Simon (PMDB-RS), aprovado quando a sessão da CCJ – aliás, presidida por um senador do DEM, partido que tradicionalmente abriga parlamentares concessionários de rádio e televisão – já se encontrava esvaziada, conclui que:

"a) não é lícito aos Deputados e Senadores figurarem como diretores, proprietários ou controladores de empresas que explorem serviços de radiodifusão; e

b) caso verificada essa condição, o respectivo ato de outorga ou renovação deverá ser rejeitado."

A reação dos coronéis

Quando os muitos interessados tomaram conhecimento da aprovação do relatório do senador Pedro Simon, além da perplexidade, reagiram imediatamente. Nota sob o título "A bancada da causa própria", publicada na coluna "Panorama Político", de Ilimar Franco, em O Globo de quinta-feira (9/4), descreve:

"O senador ACM Júnior (DEM-BA) deu um ataque ontem com o presidente da CCJ, senador Demóstenes Torres (DEM-GO), devido à aprovação, na sua ausência, de parecer dizendo que `não é lícito´ parlamentares serem diretores ou controladores de empresas de rádio e televisão. `Como você coloca um projeto desse em votação? Você disse na reunião de líderes que não colocaria nada polêmico´, cobrou ACM Júnior. Irritado, arrematou: `Ele contraria interesses meus, do Tasso [Jereissati], do [José] Sarney, do [José] Agripino e do Wellington Salgado, que é vice-presidente dessa comissão´."

O que há de novo?

Quem acompanha a política brasileira sabe que não há nada de novo na utilização das concessões de rádio e televisão como objeto de barganha e conhece a utilização desse serviço público no interesse privado e na manutenção do status quo eleitoral. O que há de novo é a explicitação desses interesses pelo legítimo herdeiro de um dos ícones do coronelismo eletrônico brasileiro, o ex-senador Antonio Carlos Magalhães (ver "Desaparece um símbolo do coronelismo eletrônico" ).

O senador ACM Júnior, no entanto, citou apenas alguns dos senadores que tiveram seus interesses pessoais contrariados com a decisão da CCJ. O projeto "Donos da Mídia" informa que pelo menos 20 – ou 24,7 % – dos atuais senadores são sócios ou diretores de empresas concessionárias de rádio e televisão [ver aqui ].

Levantamento sobre os membros das Comissões Temáticas na Câmara dos Deputados (CCTCI) e no Senado Federal (CCT), realizado pelo LapCom-UnB e recentemente divulgado pelo Observatório do Direito à Comunicação (ver "Radiodifusores dominam comissões "), mostra que, na atual legislatura, pelo menos oito dos dezessete membros titulares da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado controlam direta ou indiretamente emissoras de rádio ou televisão. Dos membros suplentes, pelo menos seis desfrutam a mesma condição. Vale dizer, por exemplo, que numa votação, pelo menos 47% dos votos estarão vinculados aos interesses de radiodifusores privados [ver relação nominal ].

Apenas um cochilo

O parecer aprovado na CCJ irá ainda a votação no plenário do Senado Federal. Não tem a mínima chance de ser aprovado. De qualquer maneira, o cochilo dos coronéis serviu para mostrar, uma vez mais, o absurdo da situação normativa em que vivemos: deputados e senadores, desde a Constituição de 1988, são, ao mesmo tempo, poder concedente e concessionários de um serviço público, a radiodifusão.