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O racismo se mantém no espaço midiático

Por Cecília Bizerra*

Mais um 20 de novembro e seguimos em resistência, seguimos em urgente e necessária luta. Porque os estigmas, estereótipos e representações sobre o feminino negro nos mais diversos espaços, sobretudo na mídia, se repetem, se atualizam e se recriam. Não só em termos de conteúdo, mas também de apresentação e articulação, encontrando ressonância, inclusive, entre os nossos parceiros de militância, como aconteceu recentemente com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).

O deputado Jean recebeu críticas de quem luta contra a estereotipação do corpo da mulher negra. O parlamentar concordou com a representação cultural que continua a colocar os corpos femininos negros num lugar de hiperssexualização e subalternidade. Ignorou as denúncias de diversas organizações de mulheres negras em relação ao programa “Sexo e as Negas”, ao defender a produção que contribui para reforçar os estereótipos e lugares de subalternidade que nos inferiorizam e nos afastam do que é intelectual e pensante.

Justamente por considerar o deputado Jean um parceiro, pois é um dos poucos que enfrenta o conservadorismo no Congresso Nacional, que é preciso cobrar a coerência e imediata retratação. De forma solidária, mas também incisiva, porque a população negra, as mulheres negras já foram silenciadas e violentadas demais. Queremos inclusão e visibilidade, mas não de forma subalterna ou estereotipada. Não mais, nunca mais. É preciso o respeito ao fato de que o protagonismo na luta e o poder de determinar o que nos agride ou não serão sempre nossos, do povo negro.

A hipersexualização das mulheres negras na mídia brasileira nos leva à discussão sobre a sub-representação, a invisibilidade e a representação distorcida da população negra em geral na mídia, que, por sua vez, nos leva a uma discussão também muito urgente: a revisão do marco regulatório das comunicações, a partir da ausência de pluralidade e diversidade na mídia, que esvazia a dimensão pública dos meios de comunicação.

Um novo marco regulatório que garanta o direito à comunicação a todos e todas, ampliando a liberdade de expressão, a diversidade e pluralidade na televisão na mídia, é urgente para que esse setor se torne um ambiente realmente democrático. Como propõe o Projeto de Lei Iniciativa Popular da Mídia Democrática (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação-FNDC, 2012), esta nova legislação deve “promover a pluralidade de ideias e opiniões; fomentar a cultura nacional, a diversidade regional, étnico-racial, de gênero, classe social, etária e de orientação sexual; garantir os direitos dos usuários”, entre outros princípios.

Nesse contexto de baixa representação e estigmatização da população negra brasileira, uma certeza permanece: o racismo se mantém no espaço midiático, atualizando-se, reinventando-se, e reaparecendo sob os mais diversos modos, estilos, contextos e títulos. Hoje, “O Sexo e as Nega”. Amanhã, o que será? Não sabemos. Sabemos apenas que não vamos mais permitir que nos calem ou nos violentem. Nunca mais. Seguimos em resistência e, se for preciso, lutaremos por vários anos, por mais alguns novembros.

Palmares vive. Não nos calaremos.

*Cecília Bizerra é jornalista, militante da Irmandade Pretas Candangas e integrante do Coletivo Intervozes. Com colaboração de Daniela Luciana, jornalista e militante da Irmandade Pretas Candangas.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Liberdade de expressão: questão de vida ou morte

Por Thiago Firbida e Júlia Lima*

A existência da internet, de jornais de oposição e das cada vez mais frequentes manifestações de rua mostram que o direito à liberdade de expressão no Brasil passou a ser mais respeitado hoje se comparado a décadas atrás, quando da vigência da ditadura civil-militar e sua censura prévia. No entanto, para que este direito seja realmente efetivado no país há ainda um longo e sinuoso caminho a ser percorrido.

Seria isso o que diria, se estivesse viva, Fátima Benites, ex-membro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bela Vista, no Mato Grosso do Sul. Por anos, Fátima se empenhou em denunciar e combater atividades ilegais extrativistas na região, até ser morta por um pistoleiro no dia 21 de março de 2013.

O mesmo fim trágico teve o pescador Luiz Telles João Penetra, de Magé, no Rio de Janeiro, e ex-membro da Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar). Notório ativista da pesca artesanal, Luiz se destacou pelas denúncias que fazia dos impactos ambientais, na Baía da Guanabara, causados pelo complexo petroquímico existente no local. No dia 23 de junho de 2012, ele e seu colega de associação, Almir Nogueira de Amorim, foram encontrados mortos com os pés e mãos amarrados, poucos dias depois de terem participado da Cúpula dos Povos, realizada paralelamente à Rio+20.

Já Ângelo Rigon, morador da paranaense Maringá, teve mais sorte. Ele escapou com vida de um atentado que alvejou sua casa com cinco tiros, no dia 11 de agosto de 2013. Blogueiro bastante reconhecido na cidade, Ângelo fez diversas denúncias, por meio de seu blog, sobre irregularidades envolvendo a gestão pública e o empresariado locais.

Os três casos citados são apenas a ponta do iceberg de violações contra a liberdade de expressão que jornalistas, blogueiros, radialistas, ambientalistas, lideranças comunitárias e ativistas de direitos humanos enfrentam diuturnamente, no Brasil, quando se incumbem da tarefa de fiscalizar o poder e denunciar injustiças. Essas violações variam de gravidade: são ameaças de morte, sequestros, agressões físicas, verbais, tentativas de assassinato e, nos casos mais extremos, homicídios.

Foi com a intenção de sistematizar esses casos e fornecer ferramentas para inibir-los que a Artigo 19 lançou no último fim de semana o portal Violações à Liberdade de Expressão.

Quem acessá-lo encontrará uma vasta gama de conteúdo relacionado às violações cometidas contra a liberdade de expressão de defensores de direitos humanos (ambientalistas, sindicalistas, entre outros) e comunicadores (jornalistas, blogueiros, fotógrafos, radialistas, entre outros).

O portal traz notícias, análises, gráficos e até um mapa com a localização geográfica de defensores e comunicadores, bem como detalhes de cada caso de violação registrado pelo monitoramento da Artigo 19. O objetivo, com isso, é o de gerar o máximo de informações possível e possibilitar uma melhor compreensão do fenômeno no país.

Já na perspectiva da prevenção e da autoproteção, estão disponibilizados guias, vídeos e dicas sobre como agir em diferentes contextos que possam gerar vulnerabilidade – de cobertura política, passando por processos judiciais a protestos de ruas, entre vários outros.

O portal também aponta legislações e mecanismos oficiais, a nível nacional e internacional, que determinam como o Estado deve agir para proteger o exercício da liberdade de expressão. Afinal de contas, é dever do Estado não só proteger os direitos humanos, mas também não violá-los ele próprio, além de punir aqueles que violam.

Outro recurso para o qual o usuário poderá usufruir é um fórum, estabelecido dentro de uma conexão segura, que visa a servir de espaço para a constituição de uma rede entre vítimas de violações e organizações da sociedade civil que atuam na área. A premissa é a de que a articulação entre esses atores pode contribuir para a autoproteção.

Para nós, da Artigo 19, o terreno fértil para as violações à liberdade de expressão que hoje é o Brasil só poderá ser enfrentado por meio de políticas públicas que ajam nas frentes de prevenção e do combate à impunidade. Por sua vez, para que essas políticas sejam eficazes, é necessário que se preencha três requisitos.

O primeiro deles é reconhecer que as violações contra a liberdade de expressão de comunicadores e defensores de direitos humanos possuem natureza própria e não são meros reflexos do contexto maior da violência no país, como ainda querem crer certos setores.

O segundo requisito é a identificação dos elementos comuns que se inserem no contexto em que ocorrem essas violações, de forma que sirvam de norte para os esforços em atacá-las.

Por fim, deve-se ainda obter das autoridades um compromisso público e efetivo em investigar e responsabilizar os perpetradores por trás das violações, de modo a combater seriamente a cultura de impunidade que serve de base para que elas se perpetuem indefinidamente.

A luta pela liberdade de expressão no Brasil e no mundo precisa avançar. Entender quais são as ameaças e quem estão por trás delas, nos diferentes cenários em que elas podem acontecer, pode ser um importante passo para o devido reconhecimento e enfrentamento que essa questão realmente necessita. O portal “Violações à Liberdade de Expressão” busca contribuir para isso.

* Thiago Firbida e Júlia Lima são os oficiais do Programa de Proteção da Liberdade de Expressão, da ARTIGO 19

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Reportagem preconceituosa e anti-indígena concorre a Prêmio Esso

Por Luana Luizy*

Após publicar série de reportagens discriminatórias contra os Guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC), a reportagem “Terra Contestada”, do jornal Diário Catarinense, pertencente ao grupo Rede Brasil de Comunicação (RBS), filial da Rede Globo no estado, foi indicada a concorrer ao 59.° Prêmio Esso de Jornalismo, considerado o principal da área no Brasil. O anúncio dos vencedores será nesta quarta-feira (12).

Em um especial dividido em cinco partes, os jornalistas afirmam que os indígenas Guarani são responsáveis pelo atraso nas obras de duplicação da BR-101 – rodovia que corta o território – e alegam que a não duplicação da BR gera atrasos e impactos na economia.

A abordagem é criticada pelos indígenas, que oficiaram o Ministério Público Federal para que fosse garantido direito de resposta. Até o momento, contudo, o MPF não se manifestou. “Não somos contra a duplicação, mas queremos entender como isso vai acontecer, pois a terra indígena é nossa casa”, apontou durante visita a Brasília, a cacique de Morro dos Cavalos, Eunice Guarani.

Com argumentos criticados por entidades indigenistas, os jornalistas constroem um discurso preconceituoso e discriminatório ao apontarem que a luta pela demarcação do território Guarani é conduzida por “agentes externos”, desconsiderando, assim, o protagonismo das populações tradicionais na luta pelo reconhecimento de sua terra.

Estes, inclusive, nem sequer foram ouvidos, embora na comunidade vivam caciques, anciões e professores. A reportagem usa como fonte o antropólogo Edward Luz, banido da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), principal instituição científica do País na área. Também relata a versão do Guarani Milton Moreira, que não mora no território. Os argumentos apresentados por ele também são desmentidos pelos moradores da região.

O desserviço ao jornalismo e à população também é visível quando se desconsideram os verdadeiros interesses econômicos de especuladores interessados na Terra Indígena Morro dos Cavalos, território que ainda hoje aguarda pela homologação pela presidência da República.

Não é de hoje que a campanha anti-indígena vem sendo colocada em prática pelo jornal contra o povo Guarani. O jornal criminaliza a luta indígena quando culpa os indígenas por mortes ocorridas na BR-101. Além disso, publica inverdades também ao afirmar que os Guarani não habitam tradicionalmente o Morro dos Cavalos e que o Tribunal de Contas da União (TCU) teria manifestado que a área não é tradicional. Não obstante, a ocupação da TI Morro dos Cavalos está amplamente demonstrada no procedimento administrativo de demarcação por meio de documentos históricos, mapas, livros e pela ampla memória oral.

A exclusão da visão dos indígenas e organizações indigenistas de reportagens que trazem apenas as visões dos grupos que se opõem aos direitos dos povos originários configura-se como um desrespeito ao direito à comunicação e informação. Estes deveriam ser pilares da democracia, mas tornam-se instrumentos de violações a partir do momento em que as empresas jornalísticas adotam uma postura parcial, desinformam e confundem o leitor que não tem familiaridade com o assunto e que acaba formando a sua opinião por meio das informações que chegam até ele, especialmente pelos meios de comunicação.

Assumir a comunicação como direito humano significa reconhecer o direito de todas as pessoas de ter voz e de se expressar, princípio ético que a reportagem viola ao não escutar os indígenas da TI Morro dos Cavalos. E para evitar que uma violação seja consagrada como exemplo de bom jornalismo, entidades que pedem a homologação da terra gritam “Esso não! Sou contra premiarem reportagens anti-indígenas!” e convidam todos e todas a se manifestarem, enviando e-mail para rp.consultoria@rpconsult.com.br.

*Luana Luizy é jornalista do Conselho Indigenista Missionário.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Adultização da infância

Talvez você não se dê conta, mas, com certeza, já viu várias propagandas, dos mais variados produtos, que utilizam crianças nos papéis de adultos. Publicidades bem feitas, às vezes, engraçadas e que acabam mexendo com o emocional. Pois bem, esse é o objetivo. Porém, você já parou para pensar no efeito que isso tem na infância? O que essas imagens acabam impactando no universo, na formação das crianças? Essas práticas acabam contribuindo, de certa forma, para a adultização de meninos e meninas, para o que diversas pesquisas destacam como o encurtamento da infância.

Intrigada com o tema, a professora assistente da Universidade do Estado da Bahia, Cristhiane Ferreguett, resolveu pesquisar mais sobre o assunto. Descobriu que as crianças desenvolveram certo grau de ceticismo com relação à publicidade, boa parte sabe que tudo é imaginário, não real. Mas por outro lado identificou que “o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis”.

Relações dialógicas em revista infantil:o processo de adultização de meninas foi o título da tese de doutorado da professora, defendida em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em entrevista à revistapontocom, Cristhiane traz mais dados do estudo e avalia o contexto da adultização nos dias de hoje.

Acompanhe:

A sua tese tem o objetivo de discutir a questão da adultização das crianças, correto?

Cristhiane Ferreguett – Sim. O título da minha tese é Relações dialógicas em revista infantil: o processo de adultização de meninas; um trabalho de doutorado em letras defendido, em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Trata-se de um estudo sobre o discurso midiático dirigido às crianças, em especial às meninas, na faixa etária dos 6 aos 11 anos de idade. Tomei conhecimento de pesquisas que constataram que a criança desenvolveu certo grau de ceticismo em relação à publicidade. A criança sabe que o intuito da propaganda é vender e que para isso ela apresenta um discurso persuasivo que, na maioria das vezes, não corresponde à realidade. Para vencer esta resistência, o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis. Inserido em reportagens, o discurso publicitário passa a ser mais aceito pela criança. Portanto, na minha tese, analisei como o discurso publicitário se engendra na tessitura discursiva de reportagens de uma revista infantil da Editora Abril, a Revista Recreio Girls, e que efeitos de sentidos produz no que se refere à adultização precoce da menina.

E o que você observou?

C.F. – Após analisar detalhadamente três reportagens de diferentes exemplares, constatei que as reportagens apresentam diversas características do discurso publicitário, como apresentação de marcas e preços de produtos. A adultização precoce da menina é construída discursivamente e pode ser observada pelos modelos adultos apresentados como referência de como a menina deve se vestir, maquiar, pentear e do modo como ela deve agir e ser, a fim de promover e incentivar o consumo de produtos normalmente desnecessários para uma criança.

E a adultização da infância se constitui num problema, certo?

C.F. – Sim. A inserção precoce da criança no mundo do adulto encurta sua infância. Existem estudos que comprovam um encurtamento da infância no plano fisiológico, as meninas estão entrando mais cedo no período da puberdade. Na contramão da queda da fertilidade entre as mulheres adultas, aumenta o número de gravidez na adolescência.

O fato é que essa adultização, muitas vezes, é compreendida como ‘algo normal’.

C.F. – Adultizar uma criança significa inseri-la precocemente no mundo adulto. Isso pode acontecer de diversas formas. Por exemplo, no inicio do processo de industrialização do nosso país a criança era inserida no trabalho das fábricas e era exigido delas a produtividade e a responsabilidade de um adulto. Hoje o trabalho infantil não é mais aceito. A adultização está acontecendo de outras formas, através do incentivo de comportamento e aquisição de produtos desnecessários a criança. Já é possível encontrar e comprar sutiãs com bojo para meninas a partir de 2 anos de idade. Meninas pequenas usam maquiagem e sandálias de salto alto, comprometendo a saúde da sua pele e da sua coluna. Para a indústria e o comércio isso é muito bom, no sentido em que uma criança que vive sua infância com comportamento de criança consome muito menos do que uma criança adultizada. E, sim, existe uma banalização deste comportamento no sentido que a sociedade passa a aceitar isso como normal e adequado.

Sempre que uma voz ecoa contra abusos da adultização vem à tona o discurso do direito de informação/comunicação, da liberdade da imprensa e a questão da censura.

C.F. – Compreendo que é dever do Estado e da sociedade civil organizada proteger a criança e sua infância. A liberdade da imprensa não deve comprometer o bem estar e a formação das nossas crianças, nossos futuros cidadãos. Recentemente uma resolução (Resolução n.º 163/2014 – aprovada por unanimidade pela plenária realizada no dia 13/03/2014) do Conanda proibiu “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”. Essa resolução precisa ser respeitada, precisamos da adesão dos pais, da escola e da sociedade como um todo para isso é preciso debater o assunto em diversas instâncias.

Como as crianças interpretam/analisam a adultização?

C.F. – A mídia apresenta a criança adultizada com uma conotação positiva, de uma criança que tem/faz sucesso e é feliz graças a um comportamento pautado no consumismo. Se a mídia só mostra a criança adultizada como o modelo ideal, esse modelo passa a ser um modelo idealizado e copiado pelas crianças. Daí a necessidade de um debate com os adultos que cuidam da educação das crianças. As crianças precisam ter um olhar crítico sobre o modelo que a mídia lhe apresenta.

Você acredita que é possível reverter este quadro de banalização da adultização da infância?

C.F. – Sou professora de cursos de licenciatura na Universidade do Estado da Bahia e sempre percebi a ausência da leitura e discussão de textos midiáticos por parte do professor do Ensino Fundamental e Médio. Gostaria que meu estudo servisse de apoio para o trabalho do professor do Ensino Fundamental junto às crianças no processo de discussão de textos midiáticos – em especial o texto publicitário – e para o embasamento de uma leitura crítica de revistas que circulam em nosso meio social. O diálogo e o debate permanente dentro dos diversos espaços sociais da criança é o caminho mais adequado para que ela tenha um olhar crítico sobre os diversos discursos que circulam no meio midiático.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada na revistapontocom e reproduzida do Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

TV cearense é multada por mostrar cenas de estupro de criança

Por Natasha Cruz e Bia Barbosa*

Como este blog reportou, em janeiro deste ano, a TV Cidade, emissora afiliada da Rede Record no Ceará, veiculou, por cerca de 20 minutos, no programa policial Cidade 190, cenas do estupro de uma menina de 9 anos. A repórter iniciou a matéria identificando a rua e o número da casa da vítima, exibindo as cenas do estupro (captadas por uma câmera dos pais da criança) repetidas vezes ao longo da matéria, enquanto entrevistava a família. As imagens permitiam identificar com facilidade a vítima e o agressor, pois foi possível ver os rostos, corpos e toda a cena de violência, estando apenas a imagem dos genitais embaçadas. O vídeo do caso teve grande repercussão nas redes sociais e no site oficial da emissora, chegando a ter 30 mil visualizações até às 17h do dia 08 de janeiro.

O caso, extremamente abusivo e violador de direitos infantojuvenis, gerou indignação na sociedade cearense contra a emissora, por ter explorado, em todos os sentidos, a imagem da vítima em busca de audiência. Uma nota pública exigindo a responsabilização da TV Cidade foi assinada por mais de 80 entidades e um ato público aconteceu na porta da empresa. Diversas organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes e o Cedeca-CE, também enviaram representação ao Ministério das Comunicações (Minicom), cobrando ações efetivas para que o órgão cumprisse “de forma célere e eficaz com seu dever de fiscalizar o respeito às normas em vigor para a radiodifusão e impeça que novas violações de direitos humanos sigam sendo praticadas impunemente pela TV Cidade no Ceará”.

O Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica do Minicom acatou a representação e, na última semana, comunicou o resultado do Processo de Apuração de Infração instaurado: multa no valor de R$23.029,34 para a TV Cidade. Na avaliação do Ministério, o vídeo transmitido viola o regulamento dos serviços de radiodifusão, que proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Em sua defesa, a TV Cidade alegou que havia adulterado a imagem para não permitir “em nenhuma hipótese, a identificação da menor” e que “a direção de jornalismo da emissora não pretendia divulgar a referida matéria”, porém o fez a pedido do pai da criança, que acreditava que “tornando o assunto de domínio público conseguiria a prisão do infrator e sua punição”. O Ministério das Comunicações, no entanto, considerou que as alegações da emissora não procediam, visto que a identificação da criança foi possível e que houve uma superexposição da sua intimidade, expondo a menina e sua família a uma situação de vulnerabilidade psíquica e moral.

Como a TV Cidade já possuía antecedentes infracionais, o Ministério decidiu aplicar a multa. O canal poderá recorrer, mas o caso já se torna emblemático. O valor da penalidade atribuído pelo Ministério é o mais alto já aplicado a uma TV por violações de direitos humanos em sua programação. Até agora, a maior multa para conteúdos deste tipo tinha sido aplicada, em 2013, à Rádio e Televisão Bandeirantes da Bahia: R$ 12.794,08, por exibir na emissora local e também em cadeia nacional uma entrevista com um jovem suspeito de estupro. Ao longo de mais de oito minutos, o suspeito foi ridicularizado e humilhado pela repórter Mirella Cunha, num caso que também ganhou repercussão nacional. A TV Bandeirantes recorreu da sanção aplicada pelo Ministério e, por conta disso, o processo administrativo não se tornou público.

Pela regulação em vigor, a fixação do valor da multa considera a gravidade da falta, a existência de advertências e processos de apuração de infração instaurados contra a prestadora de serviço, a reincidência e os antecedentes da entidade. Atualmente, no entanto, as multas no Brasil têm como teto o valor de R$ 76.155,21, que está longe de ser dissuasivo para os canais. Para se ter uma ideia, 30 segundos de inserção publicitária podem gerar R$ 15 mil para uma emissora. Assim, menos de 3 minutos de anúncio são suficientes para pagar o valor máximo de multa que qualquer programa pode receber. Assim, na prática, a sanção acaba favorecendo a perpetuação das infrações.

Para se ter uma ideia de quão limitada é a perspectiva de responsabilização das rádios e TVs brasileiras por violações de direitos humanos como esta, praticada pela TV Cidade, na França, multas por infrações deste tipo podem chegar a 3% da renda de uma operadora, indo a 5% em casos de reincidência. Em 1992, o órgão regulador francês (o Conselho Superior do Audiovisual) chegou a multar a TF1, principal TV privada francesa, em cerca de 4,5 milhões de euros por não respeitar as cotas de conteúdo nacional previstas às emissoras. A sanção marcou a história do canal e provocou uma reestruturação de toda a emissora para que este tipo de problema não se repetisse, funcionando inclusive como uma medida pedagógica.

No Reino Unido, as multas têm teto de 250 mil libras ou 5% da receita do canal (o que for maior). A diretriz geral do Ofcom, o órgão regulador britânico, é a de que, considerada a seriedade da infração, o valor de qualquer multa deve ser proporcional e “suficiente para garantir que a mesma funcionará como um incentivo eficiente ao cumprimento das regras”.

Aqui, ao contrário de França e Reino Unido, além do valor das penalidades ser insuficiente para levar as emissoras a deixarem de violar direitos em busca de audiência, há uma prática do Ministério das Comunicações de diminuir a punição prevista. São inúmeros os casos em que a avaliação inicial de uma sanção apontava para a aplicação de multas ao canal e, posteriormente, a emissora terminou sendo apenas advertida.

Certamente não será a multa de R$ 23 mil que fará a TV Cidade mudar sua linha editorial e passar a respeitar os direitos humanos nos chamados programas policialescos. Por isso, o Ministério Público Federal no Ceará também atuou no caso e garantiu, em março, a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Grupo Cidade de Comunicação. O TAC estabelece que o programa policial da TV Cidade que infringir os termos acordados exibirá um quadro com a retratação das imagens e das declarações ofensivas, esclarecendo a população acerca da abordagem ofensiva. Em caso de descumprimento dos compromissos acordados, o radiodifusor terá que pagar uma multa no valor de R$ 70 mil sobre cada programa veiculado.

A iniciativa do MPF é fundamental, mas, de toda forma, fica a questão: sendo o Ministério das Comunicações o órgão responsável pelo acompanhamento dos conteúdos difundidos pelas concessionárias do serviço de radiodifusão, não há mais nada que possa ser feito em casos assombrosos como este?

* Natasha Cruz e Bia Barbosa são jornalistas e integrantes do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.