A simplicidade do rádio analógico constitui-se um patrimônio da humanidade porque, mesmo em situações de calamidades e precariedades, consegue-se, com resíduos, construir um receptor (como o rádio de galena) e um transmissor para comunicar-se à distâncias surpreendentes, podendo prover contatos indispensáveis. Por outro lado, a digitalização da tecnologia radiofônica traz uma série de inovações, agregando serviços e valores ao meio, mas tornando-o bem mais complexo com a perda de uma de suas principais vantagens: sua forma simples de comunicar-se.
Ao invés de escutar nos lugares mais longínquos com os chiados característicos das emissões analógicas, que não tiram necessariamente a inteligibilidade, e do baixo custo do aparelho, da emissora e da produção, o rádio digital, em qualquer dos padrões existentes, tem investimentos mais elevados. Fora de seu eixo principal de irradiação, funciona oscilando entre ausência e presença de sinal, entre tudo ou nada. Convencidos das, até hoje, insuperáveis características analógicas, as empresas que desenvolvem a tecnologia digital, os governos e a sociedade organizada têm ironicamente buscado superar o maior desafio da digitalização radiofônica: a convivência entre os dois sistemas através do simulcast, isto é, a possibilidade de transmissão analógica e digital do sinal de uma mesma emissora.
Este gargalo esbarra num outro problema: a escassez de espaço para a inesgotável demanda de canais. Ao transmitir simultaneamente em analógico e digital, as rádios irão ocupar o espaço de duas ou três emissoras analógicas. Em outras palavras, a digitalização poderá significar a crescente impossibilidade de novos canais nos aparelhos receptores, podendo configurar-se como um “usucapião do espectro” e promovendo ainda mais a concentração das mídias. Além disso, as emissoras com menos de 100 watts de potência, como as rádios comunitárias, ficam quase inviabilizadas do serviço digital na plenitude de suas possibilidades, cavando um fosso maior entre as pequenas e grandes emissoras.
O desenvolvimento da digitalização radiofônica carece indubitavelmente de investimentos em pesquisa e aprimoramentos. Essa é uma das primeiras conclusões que se pode tirar das discussões do Conselho Consultivo do Rádio Digital, reunido pelo Governo Federal desde outubro de 2012. No entanto, como conseguir avanços num cenário excludente no qual, tanto DRM como HD Rádio, estão impulsionados não pelo ideal de democratização da digitalização radiofônica, mas, sobretudo, pela lucratividade? Num cenário onde os oligopólios da comunicação buscam acima de tudo concentrar audiência com baixos custos evitando ampliar e pulverizar canais e serviços? Onde o Ministério das Comunicações está à mercê de negociações políticas que se articulam com linhas editoriais dos conglomerados midiáticos que garantem a governabilidade?
É certamente uma arena de lutas a construção de um modelo digital no qual o Brasil tem a possibilidade de mostrar para o mundo que o rádio digital pode avançar muito mais do que a programação multiforme que agregue, além do som, imagens e textos; a multiprogramação, que traga a opção de escutar num mesmo canal vários serviços; a interatividade, que o ouvinte possa em tempo real tornar-se mais presente na programação e a conectividade, que permita o acesso à Internet através do aparelho radiofônico. A digitalização da tecnologia radiofônica deve, acima de tudo, buscar conquistas democráticas e cidadãs com a inclusão das pequenas emissoras como as rádios comunitárias e públicas, através da capacitação de seu pessoal e do financiamento público para investimentos diminuindo os abismos criados por uma política de comunicação pautada na imposição dos interesses empresariais.
Assim, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) defende que o Ministério das Comunicações chame a população, através de audiências públicas em todos os Estados Brasileiros, para discutir qual rádio digital se deve construir, principalmente, com a participação dos ouvintes, personagens que mais serão mais afetados nesse processo. O Governo Federal precisa ainda convocar os pesquisadores das universidades brasileiras para encontrar saídas para os desafios postos na construção de um rádio digital democrático e popular. E os movimentos sociais necessitam ficar atentos e atuantes para evitar decisões a “toque de caixa” e obscuras sobre o padrão do rádio digital, ampliando a discussão para um modelo digital inclusivo e participativo.
Ismar Capistrano C. Filho é doutorando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, jornalista pela Universidade Federal do Ceará e professor de ensino superior, coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão no Ceará (Abraço Ceará) e membro efetivo do Conselho Consultivo do Rádio Digital.