Caso Sarney: Como funciona o coronelismo eletrônico

Pesquisadores da área de comunicação social criaram, no final do século passado, o conceito de "coronelismo eletrônico" para explicar um fenômeno bastante particular, qual seja o da posse e utilização política de estações de rádio e de televisão por grupos familiares das elites políticas locais ou regionais. Uma boa explicação deste conceito está em entrevista concedida ao Observatório da Imprensa, em janeiro de 2002 [leia aqui] , pelo então assessor da bancada petista na Câmara Federal Israel Bayma, hoje integrante do Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), e nas pesquisas promovidas pelo Instituto Projor e coordenadas por Venício A. de Lima ["Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)" – leia aqui, com Cristiano Lopes; e "Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento" – leia aqui].

Dizia Bayma:

"A literatura política brasileira tem utilizado o termo coronelismo como uma forma peculiar de manifestação do poder privado, com base no compromisso e na troca de proveitos com o poder público. A ciência política trata como coronelismo a relação entre os coronéis locais, líderes das oligarquias regionais, que buscavam tirar proveito do poder público, no século 19 e início do século 20. Hoje, não há como deixar de se associar esse termo aos atuais impérios de comunicação mantidos por chefes políticos oligárquicos, que têm, inclusive, forte influência nacional. O compadrio, a patronagem, o clientelismo, e o patrimonialismo ganharam, assim, no Brasil, a companhia dos mais sofisticados meios de extensão do poder da fala até então inventados pelo homem: o rádio e a televisão."

No domingo (8), o jornal Folha de S. Paulo traz uma reportagem [leia aqui] que ajuda imensamente a traduzir a linguagem dos pesquisadores para o mundo real da política brasileira. Trata-se do relato de uma conversa gravada pela Polícia Federal (e vazada sabe-se lá por quem, pois o jornal não informa) em que o novo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), dá instruções ao seu filho Fernando sobre matérias que deveriam ser veiculadas na TV Mirante e no jornal O Estado do Maranhão, ambos de propriedade da família Sarney, com denúncias contra o governo de Jackson Lago (PDT), rival de Sarney no estado.

Mais sutil

No fundo, a matéria da Folha é o que de melhor este observador já viu para explicar um conceito teórico na prática. Está tudo lá: uma família (Sarney), proprietária de uma rede de veículos de mídia (além da TV Mirante, afiliada da Rede Globo, e do jornal, a família detém retransmissoras no interior e uma rede de rádios), faz uso político desses veículos, ao arrepio da legislação, conforme observa a reportagem da Folha (a lei 4.117/62 proíbe uso de emissoras de TV para fins políticos).

Para quem conhece minimamente o funcionamento de uma redação, o que Sarney pai fez – e isto fica muito claro no diálogo reproduzido na versão impressa do jornal, indisponível na internet – foi pautar o seu filho Fernando. A ordem é direta: "Põe na TV. Manda botar o destino do dinheiro recebido", diz o pai, referindo-se a uma denúncia envolvendo Aderson Lago, primo do governador Jackson, que por sinal enfrenta na Justiça um processo que pode lhe custar o cargo e colocar no lugar a filha de Sarney, senadora Roseana (PMDB-MA).

"O cara já está aqui, da Globo", responde o filho. "Falou com ele isso, não?", questiona o pai. "Falei com ele, mostrei tudo […]. Mas calma, não precisa pressa, não precisa pressão", devolve o filho.

Mais claro do que isto, impossível. Os pesquisadores ganharam um "estudo de caso" perfeito para explicar o conceito de coronelismo eletrônico e os leitores da Folha foram premiados por uma excelente reportagem, embora tenha faltado esclarecer a fonte do vazamento da conversa, porque há um óbvio interesse do vazador em desgastar o recém-eleito presidente do Senado. Também faltou explicar que a prática em questão não é exceção, mas regra.

Da mesma forma como a família Sarney domina a mídia do Maranhão, há coronéis eletrônicos por todo o país, talvez à exceção dos estados de São Paulo e Rio, onde a influência política nos meios de comunicação se dá de outra maneira, muito mais sutil. No Norte e Nordeste, especialmente, o coronelismo eletrônico é lei. Caberia um box, no mínimo, mas isto em nada diminui a boa matéria da Folha, editada com correção, ainda mais considerando o fato de José Sarney ser colunista do jornal.

* Luiz Antonio Magalhães é editor-adjunto do Observatório da Imprensa.

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *