Ausência de demanda é resultado de modelo equivocado

No dia 2 de dezembro, a TV digital completou seu primeiro ano de vida no Brasil. O aniversário da primeira transmissão de sinais digitais de TV, realizada em São Paulo, foi basicamente tratado pelo Ministério das Comunicações e os radiodifusores como oportunidade para tentar colocar em evidência a nova tecnologia, que, afinal, em 12 meses não mostrou a que veio. Números do próprio setor demonstram que a implantação da TVD no Brasil ocorre em índices insatisfatórios.

A Associação de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), por exemplo, estima que até o fim do ano terão sido vendidos 470 mil conversores ou aparelhos adaptados para receber o sinal digitalizado. Isso significa que apenas apenas 0,5% da população tem hoje condições reais de aproveitar a nova tecnologia.

As razões para a baixa penetração da TV digital são várias e as declarações dadas nas últimas semanas por atores envolvidos no processo de implantação deixam clara a disputa de versões sobre o gargalo do processo. Nesta briga, ora a culpa é da oferta reduzida, ora da demanda não estimulada.

Para o ministro das comunicações, Hélio Costa, a venda reduzida de conversores seria resultado da baixa oferta deste tipo de dispositivo no mercado por parte dos fabricantes. “O que está faltando é um política industrial capaz de atender à necessidade de se produzir em grande escala o conversor de TV digital popular. Ele está sendo produzido, mas são 100 mil conversores por mês e a demanda é de mais de 1 milhão”, afirmou.

Já os fabricantes evitam incrementar a produção dos conversores sob a alegação da baixa perspectiva de venda. Para agentes do setor e para pesquisadores, a falta de interesse dos consumidores é gerada basicamente por dois fatores: o preço dos conversores e o modelo tecnológico e de negócio adotado, que não resultou na criação de novos conteúdos e funcionalidades para a boa e velha televisão.

Preço e redução de impostos

Até julho deste ano, os conversores disponíveis no mercado eram vendidos por cerca de R$ 600. A empresa Proview lançou naquele mês um modelo mais barato, anunciando reduzir o valor para até R$ 199. Passados seis meses, no entanto, o preço permanece na casa dos R$ 300. Segundo o professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador na área Marcelo Zuffo, para que o preço baixe para R$ 200 reais seria preciso um ganho de escala maior do que as 500 mil vendas. E aí se esbarra novamente no dilema: o preço não baixa porque não há escala e esta não é adquirida porque o preço mantém-se alto em um país com terrível distribuição de renda.

Em razão deste problema e na ausência de uma iniciativa do mercado, a solução deve vir com o investimento de recursos públicos na forma da redução de impostos. “Acho que o próprio governo tem espaço para reduzir impostos na área federal. Se conseguíssemos tirar o PIS e a Cofins, já teríamos aí um desconto básico de 30% no preço do conversor”, disse Costa.

Tentando apontar uma justificativa mais comportamental, Walter Duran, diretor de Tecnologia da Philips para América Latina, credita a baixa penetração a um fenômeno natural de resistência a novas tecnologias. “A população em geral tende a ser reativa a toda introdução de produtos com tecnologia inovadora. Ela demora um tempo para reagir a essa inovação; muitas vezes reage negativamente”, argumenta. Ele lembra que o DVD vendeu apenas 35 mil unidades em 1999 e, cinco anos depois, atingiu a marca de 2 milhões de aparelhos.

Problema no modelo

A comparação, no entanto, não se sustenta dentro das regras de mercado. No caso do DVD, o novo dispositivo trazia novas funcionalidades para além da melhoria na qualidade da imagem, o que criou demanda naturalmente. Em segundo lugar, a curva descendente nos preços do aparelho de DVD – que acompanha a ascensão rápida nas vendas – ocorreu porque a tecnologia foi adquirida inicialmente pelo conjunto das classes mais ricas, gerando a base para uma redução no valor para as pessoas com menor renda.

Isso se deu pelo fato de o DVD ter substituído totalmente seu antecessor, o videocassete, e não ter ainda um concorrente de peso. Além disso, diferente do padrão de TV digital adotado no Brasil, a tecnologia do DVD foi e é comercializada em escala mundial. Os equipamentos para TV digital necessários em terras brasileiras só são vendidos aqui e no Japão.

Para Gustavo Gindre, ocupante de uma das cadeiras da sociedade civil do Comitê Gestor da Internet no Brasil e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, a baixíssima atratividade da TV digital se deve ao modelo equivocado adotado pelo país. A adoção do padrão japonês de modulação associada à opção de uso da nova tecnologia feita pelas emissoras não oferece ao telespectador nada além da alta definição de imagem e, por isso, esbarra na concorrência de outros segmentos que oferecem mais canais e funcionalidades interativas, como a TV paga, a IPTV e a internet.

Sem atrativos

"A TV digital aberta no Brasil é a velha TV aberta analógica, apenas com uma imagem melhor – e mesmo assim, onde não há áreas de sombras”, comenta. Gindre faz questão de frisar que “todas as grandes oportunidades de transformações foram negligenciadas em nome dos interesses dos radiodifusores” e, portanto, não há razão para que o cidadão tenha interesse em comprar um set top box. “Se ele quer serviços interativos, vai para a internet. Se quer muitos canais, vai para a TV paga (ou para o 'gatonet'). Com isso, a penetração da TV digital aberta ainda é baixíssima e não há perspectivas dessa curva de adoção mudar nos próximos anos", analisa.

Para o professor da PUC do Rio de Janeiro Marcos Dantas, o governo federal abandonou os princípios do Decreto 4903/2003, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Segundo ele, a adoção real deste princípios dariam um diferencial à nova tecnologia, como a inclusão social, a democratização da informação e o uso de funcionalidades interativas para criar uma rede de educação à distância.

Na avaliação de Nelson Wortsman, da empresa de software Brasscom, a TV digital só ganhará penetração se as pessoas virem neste meio algo que faça diferença em suas vidas e que tenha um diferencial de fato em relação aos outros.

Valdecir Becker, diretor da ITV Produções Interativas, argumenta na mesma direção. “Creio que o motivo [da baixa penetração] seja o conteúdo. Além de ainda não termos interatividade, que deve começar no primeiro semestre do ano que vem, há pouco conteúdo em alta definição. Então, mesmo para quem tem condições financeiras de ter o equipamento, o investimento ainda não está valendo a pena”, avalia.

Sem alta definição, interatividade ou mais canais

Matéria veiculada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” revela que as emissoras veiculam apenas 10% de seus programas em alta definição. Para Roberto Franco, diretor de tecnologia do SBT, “à medida que mais pessoas aderirem, elas nos forçarão a aumentar a quantidade”. Aparece aí novamente o dilema: não há oferta porque não há demanda e vice-versa.

Em relação à interatividade, o middleware Ginga, que seria a única inovação nacional no sistema dito nipo-brasileiro, permanece ainda não finalizado por conta de problemas de royalties com um de seus componentes. “O atraso [do Ginga] tem gerado um passivo de set top box não interativos”, lamenta Gustavo Gindre.

Já a ausência de um modelo que privilegie a multiprogramação dificulta a concorrência da TV digital aberta com outros serviços, que oferecem mais canais. Enquanto as emissoras públicas irão promover a multiplicação de suas programações, as comerciais, que reúnem 95% da audiência desta mídia, não devem apostar nisso.

“A multiprogramação é modelo de negócio, cada emissora determina o seu. A Globo, que tem programação 'premium', jamais vai trabalhar com multiprogramação, o negócio dela é alta definição. Já a TV Senado ganha com a multiprogramação, porque pode exibir o plenário em um canal e as comissões em outro, já que quando tem CPI as comissões dão muito mais ibope que o plenário", diz Carlos Fructuoso, que participa do Fórum SBTVD, espaço que congrega empresas e pesquisadores na articulação da implantação desta nova tecnologia no país.

"A TV aberta comercial tem medo de qualquer outro modelo de negócios. Portanto, falar em 'interatividade' ou aumento do número de programações disponíveis tornou-se um anátema no Fórum do SBTVD", reforça Gustavo Gindre. Neste cenário, não há nenhuma garantia que as classes mais ricas deverão adquirir o conversor, o que pode ocasionar em uma barreira à redução dos preços dos conversores.

Se é fato que o cronograma de início das transmissões nas cidades está sendo bem atendido – com emissoras operando nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia, Curitiba, Porto Alegre, Salvador e Campinas – as dificuldades apontadas continuam como um dilema com perspectivas nada animadoras de solução. Após uma preocupação inicial com o ritmo da migração das emissoras e com o preço dos conversores, a questão volta-se novamente ao modelo adotado.

No atual, ganham as emissoras ao preservarem o espectro para si e impedirem a entrada de novos concorrentes. Mas perdem estas e a sociedade com um projeto pela metade, que desperdiça as potencialidades e, com isso, ainda permanece sob a etiqueta de curiosidade, distante da população.

* Com informações de Agência Estado, Uol Tecnologia, Infomoney e B2B Magazine.

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