PL-29 e TV por Assinatura: um debate que precisa crescer

Está em discussão, no Congresso Nacional, um projeto de lei que poderá provocar algumas importantes alterações, para melhor, no modus operandi do mercado de TV por assinatura. O projeto é conhecido pela alcunha "PL-29". No momento, ele está entrando na fase de discussão do substitutivo do relator, no caso, o deputado Jorge Bittar, do PT do Rio de Janeiro. É possível que, emendado e remendado, ele seja votado na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara e enviado direto à discussão no Senado. É possível, também, que os deputados prefiram submetê-lo ao voto do Plenário. Sendo otimista, até o final do ano, o projeto poderá estar sendo enviado à sanção presidencial.

Como em outros casos similares, a sociedade não toma conhecimento do assunto, até porque sequer é informada sobre o tema. O máximo que a sociedade soube, o foi através de uma propaganda enganosa da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura) dirigida exclusivamente aos assinantes de suas operadoras associadas. O mais estranho, porém, é que aquela parcela politicamente mobilizada da sociedade, embora sabendo da existência dessa PL, até agora, salvo melhor juízo, também pouco se manifestou a respeito.

O projeto substitutivo apresentado pelo deputado Bittar é um documento muito mais avançado e consistente do que os projetos iniciais que motivaram o processo. Estes eram propostas desavergonhadamente a serviço dos diferentes lobbies empresariais. O projeto de Bittar tenta organizar o marco normativo dessa área, introduzindo-lhe boa dose de racionalidade, tratando do tema de um modo abrangente, defendendo melhor os interesses dos consumidores mas, também, não podendo deixar de atender a alguns dos poderosos grupos de interesse envolvidos na questão. E, ao longo dos debates que agora se seguirão, esses interesses deverão ser melhor atendidos cada vez mais, exceto se os outros segmentos sociais se mobilizarem para contra-pressionar a favor de uma legislação democrática, nacionalista e cidadã nesse setor.

O primeiro ponto muito positivo do substitutivo de Bittar é desagregar a cadeia produtiva. Ele identifica as diversas atividades que contribuem para o serviço, estabelecendo, para cada uma delas, algumas regras específicas. A partir de agora, estamos sabendo que, para a oferta da TV por assinatura, contribuem, pelo menos, quatro diferentes setores econômicos-empresariais: produção, programação, empacotamento e distribuição/transporte. Pode acontecer, claro, de essas atividades estarem "verticalizadas" no interior de uma  mesma  organização empresarial. O caso conspícuo é a NET que produz os seus conteúdos através de diversas subsidiárias das Organizações Globo; programa-os através dos muitos canais Globosat (uma dessas subsidiárias); empacota-os através da própria NET Brasil; e transporta os pacotes para a casa dos assinantes, através da NET Serviços. A gente pensa que é tudo uma coisa só, mas não é bem assim. Além dos canais Globosat, a NET Brasil também empacota os vários canais da Turner, da Fox, da HBO, da ESPN, de muitas outras que, por sua vez, são, elas também produtoras de si mesmas e compradoras de produtos de terceiros, num vasto e diversificado mercado de produção audiovisual. Mas, claro, a NET Serviços apenas transporta para a minha e sua casa, os pacotes da NET Brasil. Se eu ou você quisermos assistir a algum canal que não esteja no pacote da NET, teremos que assinar, se existir no meu bairro ou na sua cidade, um pacote, junto com o serviço, oferecido por outra distribuidora, isto é, por outra operadora de infra-estrutura.

O segundo ponto positivo do projeto é, a partir disso, trazer a Ancine para também cuidar do negócio TV por assinatura, agora rebatizado "serviço de acesso condicionado". Caberá à Anatel regulamentar e fiscalizar apenas o segmento de distribuição, isto é, a infra-estrutura de transporte (cabo, satélite ou MMDS). Toda a parte relativa a conteúdo, da produção ao empacotamento, ficará sob a responsabilidade da Ancine. Também são dados poderes ao Cade para monitorar a concorrência.

O terceiro ponto positivo do projeto é a promoção do conteúdo nacional. Aqui, Bittar inovou ao importar um conceito existente nas regras da Comunidade Européia para a televisão: o "espaço qualificado". Trata-se do tempo de transmissão atribuído a filmes, documentários, séries de televisão, novelas, tudo que não for jornalismo, programa de auditório, transmissão esportiva, televendas etc. Dentro desse "espaço qualificado", cada canal fica obrigado a transmitir, no mínimo, 10% de conteúdos nacionais (filmes, documentários etc). Um canal que só transmite 100% de programação jornalística esportiva estará, obviamente, excluído dessa obrigação. Já um canal que, entre tantos programas, dedica algumas horas a filmes ou séries, terá que cumprí-la na proporção dessas horas. Um canal 100% cinematográfico, terá que transmitir 10% de horas, em horário diurno (Bittar não é bobo!), de filmes nacionais. E isso valerá tanto para canais brasileiros, quanto estrangeiros.

Bittar propõe também que 30% dos canais transmitidos em qualquer "pacote" comprometam-se em oferecer, pelo menos, 50% de conteúdos "qualificados" nacionais. Por fim, mas não por último, propõe que metade dos canais oferecidos em um pacote sejam controlados por empresas de capital nacional.

Essa defesa e promoção do audiovisual brasileiro já se tornou o ponto mais polêmico do projeto (vide a reação da eibitiei). No entanto, o que a proposta sustenta é justo o contrário do que apresenta a propaganda falaciosa dessa entidade: se a PL for aprovada assim como está, permitirá reduzir um pouco a monocultura americanófila da TV por assinatura e, portanto, diversificar, com um tanto de produções brasileiras, inclusive as ditas "regionais", o que poderemos assistir por cabo ou satélite. O projeto de lei do deputado Bittar dá forte ênfase à produção independente e contém todo um capítulo sobre o fomento financeiro a essa produção.

O quarto ponto positivo do projeto é liberar a atividade de distribuição para todo o tipo de operadora de telecomunicações e, ao mesmo tempo, uniformizar o tratamento regulatório do setor: as regras serão as mesmas para o cabo (hoje regulado por lei) e para o satélite (hoje regulado por meras portarias ministeriais). Se o projeto de Bittar não vier a ser emasculado, as operadoras de satélite (ou melhor, a operadora…) serão também obrigadas a transmitir os canais abertos e outros canais públicos, inclusive a TV Comunitária. Em outras palavras, o projeto, tal como está hoje, promete introduzir cidadania, por um lado, e competição, por outro, no setor.

Pode melhorar? Sim, claro. Mas isto, reconheçamos, estará além das forças do deputado Bittar que, inclusive, assumiu essa tarefa sem que o governo e, também, o seu partido tenham claras posições a respeito. Nem um, nem outro, discutem muito o assunto. 

Um ponto que mereceria melhor discussão trata do empacotamento. O projeto não cria condições para que o consumidor tenha maiores opções de escolha, exceto se trocar de operadora (distribuidora). Acaba, assim, tornando-se um tanto vago quanto às condições de concorrência, exceto, talvez, se a concorrência se der entre operadoras. Como não veda, explicitamente, contratos de exclusividade entre a empacotadora e a distribuidora (operadora), admite essa simbiose que obriga o consumidor a, para assistir a UM específico canal não oferecido no "pacote" vendido por uma operadora, assinar um outro serviço, de outra operadora, ou trocar de serviço, com todas as atribulações que isto lhe causa!  Será que entidades que defendem os interesses dos consumidores e fazem a apologia da competição não teriam sugestões a dar aí? Por que a distribuidora não pode ser obrigada a oferecer uma gama diversificada de "pacotes" organizados por diferentes empacotadores concorrentes?

É possível que, do ponto de vista do negócio, aquela simbiose seja necessária: temos que pensar, também, no interesse do investidor, afinal o nosso mundo é capitalista… Mas se isto for verdade, é necessário assegurar algum grau de independência para o consumidor, na montagem do seu "pacote". O debate desse projeto de lei seria uma boa oportunidade para oferecer ao assinante, caso queira, a possibilidade de acrescentar ou substituir canais, num "pacote" convencional. Digamos que o assinante pudesse, até um limite de, por exemplo, 20% do número total de canais, substituir certos canais por outros. Esta proposta, inclusive, iria ao encontro da propaganda da eibitiei, já que, neste caso, eu estaria pagando e decidindo, de fato, o que quero ver na minha TV por assinatura. Hoje, eu pago e vejo o que me empurram retina acima…

Outro ponto a melhor debater trata da natureza da outorga. Hoje, no cabo, é concessão. No satélite, autorização. Infelizmente, Bittar propõe reduzir tudo a autorização. Uma concessão é um contrato rigoroso entre o Estado e uma empresa prestadora de serviço de interesse público. Define direitos e deveres de ambas as partes, logo é mais seguro para ambos. Estabelece um prazo: logo permite periódicas reavaliações das condições de prestação do serviço. E estamos falando de infra-estrutura: se tudo correr bem, como gostaríamos que corresse, daqui a alguns poucos anos, o cabo e o satélite estarão sustentando as comunicações em alta velocidade por todo o país e servindo ao acesso aos mais distintos conteúdos jornalísticos, educativos, culturais, artísticos, de lazer etc. A exploração de estradas de rodagem se faz por concessão. Por que a exploração de infovias, na sociedade da informação, também não deve ser uma concessão? Serão as infovias assim tão desimportantes quanto a banca de jornal que fica na esquina da rua onde moro, que funciona por mera autorização do prefeito?

A tramitação da PL-29 será, certamente, um assunto a mobilizar interessados e especialistas ao longo deste ano de 2008. Oxalá possa aparecer mais gente interessada em ampliar esse debate, nele introduzindo questões cruciais para a nossa democracia e nossa identidade nacional.

* Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Foi secretário de Educação a Distância do MEC  e membro do Conselho Consultivo da Anatel. E-mail: mdantasloureiro@yahoo.com.br

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *