TV Brasil: por um debate menos rastaqüera

Tudo avança na implantação da TV Brasil, a nova estrutura de radiodifusão do poder executivo federal, que pretende ser o núcleo de uma futura rede pública de televisão. O conselho curador, composto por personalidades de campos variados da sociedade, foi empossado na sexta-feira (14/12). A diretoria executiva, que tem à frente a jornalista Teresa Cruvinel, já trabalha há meses. A integração da Radiobrás com a Organização Social Roquette Pinto (TVE-Rio e TVE-Maranhão), que resultará na Empresa Brasil de Comunicação, já tem os contornos definidos e está em curso. Escritórios e equipes estão em operação no Rio, em Brasília e São Paulo. O próprio canal já está no ar, com programação provisória, desde 2 de dezembro, quando foi lançado junto com a TV digital. O que falta, então, para a TV Brasil acelerar as turbinas e decolar de vez?

O básico: a segurança legal. Segue ainda em apreciação no Congresso Nacional a Medida Provisória nº 398, de 10 de outubro deste ano, que "institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração indireta, e autoriza o Poder Executivo a constituir a Empresa Brasil de Comunicação – EBC", conforme explicita seu texto. Mesmo não aprovada ainda, a MP já foi regulamentada pelo decreto-lei nº 6.246, de 24 de outubro, que criou a EBC e aprovou seu estatuto, entre outras providências. Ou seja: da parte da presidência da República e do poder executivo em geral, as cartas estão dadas. Agora cabe ao legislativo decidir se continua ou se mela o jogo.

O problema que se coloca, para a qualidade da decisão a ser tomada, é que o assunto TV Brasil vem merecendo um debate indigente, no meio parlamentar e na opinião pública. A instituição de uma rede pública, para complementar o sistema nacional de televisão (nos termos do Artigo 223 da Constituição Federal), é assunto de considerável complexidade técnica e de enorme impacto político, em sentido amplo, pelo que pode alterar na oferta de produtos culturais na tela, na representação televisiva de grupos sociais e nas posições de mercado das emissoras existentes. Mas vem sendo discutido, no Congresso e na imprensa, em termos absolutamente restritos e insuficientes, de uma suposta tentativa do presidente Lula de criar uma máquina de propaganda para seu governo.

Oportunismo? Que oportunismo?

A tese é contraditória por si só. Os mesmos setores que denunciam essa presumida intenção de Lula são os que apontam a desnecessidade da televisão pública no país, "porque consome recursos e não tem audiência". Ora, se não tem audiência, o que o presidente lucraria em instrumentalizá-la em seu favor? Faria propaganda para quem?

Não lhe seria muito mais útil recorrer aos instrumentos de comunicação de que já dispõe, como a publicidade oficial (mais de 1 bilhão de reais, entre administração direta e indireta), a requisição de horários em cadeia nacional de emissoras para seus pronunciamentos (cessão obrigatória), ou mesmo os programas jornalísticos das redes comerciais, que estão permanentemente ávidos por entrevistar o primeiro mandatário do país? Isso, sem contar o poder amplo da caneta em sua mão. Todos conhecem a histórica disposição das emissoras comerciais em simpatizar com governos que lhes facilitam a vida, com medidas regulatórias favoráveis, isenções fiscais, financiamento barato em bancos estatais e farta publicidade.

Se Lula está criando a TV Brasil para fazer propaganda, só poderá beneficiar-se a longo prazo, porque não será em poucos anos que uma nova rede, e ainda mais de características educativo-culturais, atingirá índices de audiência capazes de rivalizar com os das redes comerciais. Portanto, Lula colherá o fruto – se colher – quando não for mais presidente da República. Não é um estranho tipo de oportunismo, esse que trará o benefício quando ele não for mais necessário?

Avanço importante

Se não justifica qualquer tentação manipulatória de governantes, seja Lula ou qualquer outro, a baixa audiência dos canais públicos existentes serve de argumento econômico aos opositores da TV Brasil. A emissora é desqualificada porque consumiria recursos importantes, desfalcando áreas prioritárias como educação, saúde, abastecimento, segurança e habitação. Outro dia mesmo, o líder dos Democratas no Senado, José Agripino Maia, celebrava o fim da CPMF dizendo que o governo pode muito bem superar o golpe em seu caixa "gastando melhor o que tem e evitando despesas inúteis como a TV pública".

Esse discurso embute a crença de que a televisão comercial atende muito bem às necessidades do país, que não precisaria da televisão pública. A TV comercial já estaria legitimada pelo simples fato de ter audiência maior. Se o telespectador a prefere, é porque encontra nela o que deseja. Logo, é a melhor forma de TV existente e não justifica gastos públicos em canais não-comerciais. Em vez de se criar a TV Brasil, talvez fosse o caso de extinguir todos os canais públicos e estatais existentes.

Não vem ao caso para esses privatistas, é claro, o detalhe de que a TV comercial descumpre quase integralmente os dispositivos constitucionais que determinam à televisão – toda e qualquer – prover entretenimento, educação e informação. Que obrigam à veiculação de programação regional e produção independente. Não vem ao caso, também, que milhões de telespectadores manifestem sua insatisfação com os canais comerciais e que toda pesquisa de opinião sobre seu conteúdo aponte, invariavelmente, que o público deseja mais cultura e educação na tela.

As discussões sobre a TV Brasil e sobre a televisão pública no Brasil articulam-se, mas não se confundem. É pacífico, para quem analisa o assunto de boa fé, que será bom para o país um sistema equilibrado de emissoras comerciais, públicas e estatais – e não apenas porque a Constituição impõe. Será bom porque cada tipo de emissora cumprirá funções específicas, complementando-se para favorecer o crescimento econômico, o desenvolvimento social e o avanço da cidadania. É assim que ocorre nas democracias mais desenvolvidas do mundo. Não há porque ser diferente na nossa.

A TV Brasil, portanto, deve ser analisada pelo que propõe ao país. E é justamente isso que justifica a sua viabilização, a despeito dos erros de condução e das insuficiências de seu projeto, criticados por este escriba há alguns meses. O governo poderia ter feito muito mais pela reforma do campo público da televisão, mas a TV Brasil representa um avanço colossal diante do que temos hoje no país.

Grandeza política

É a única emissora que traz em seu estatuto todos os nobres objetivos constitucionais ignorados pela televisão comercial. É uma emissora que vem para romper a anacrônica verticalização do mercado televisivo, em que as mesmas empresas que transmitem são as que produzem os programas. Vem para desconcentrar o mercado, abrindo-o à produção independente e regional, e fomentando a diversidade cultural. Vem para estimular trocas culturais, no plano audiovisual, entre o Brasil e o resto do mundo, não para atuar como posto de distribuição de filmes, séries e programas norte-americanos, importados sob a ótica estrita de sua rentabilidade.

Há risco da programação, em especial a jornalística, ser parcial e tendenciosa? Sim, claro, mas é o mesmo de qualquer outra emissora, pública ou comercial. Pergunte-se aos adversários dos clãs Sarney, no Maranhão, ou Magalhães, na Bahia, se consideram isento o noticiário da TV Mirante ou da TV Bahia. Pergunte-se aos adversários de Roberto Requião, do Paraná, se consideram inadequada a ação do Ministério Público, que acusa o governador de usar a TVE local para "promoção pessoal e ataques à imprensa e adversários". O poder político sempre tentará usar a televisão em favor de seus interesses, com maior ou menor ênfase, às claras ou manobrando nas sombras. Cabe à sociedade construir mecanismos democráticos que impeçam isso.

Na TV Brasil, o próprio poder que a institui oferece o antídoto para a sua cobiça. A emissora nasce por iniciativa estatal, mas mirando em ser uma estrutura efetivamente pública, sob controle da sociedade, através do conselho curador que lá está para zelar pelo interesse coletivo. Conselho que foi indicado por Lula, mas que renovará a si mesmo, doravante, assegurando a composição minoritária de representantes do governo. Conselho que instalou-se muito convicto de sua missão, já anunciando uma ouvidoria para as queixas do público e uma corregedoria para eventuais abusos internos. Nenhuma emissora comercial tem sequer o ouvidor, quanto mais algum conselho consultivo da sociedade. E mesmo na televisão pública, apenas a TV Cultura de São Paulo tem a autonomia buscada pela TV Brasil.

O Congresso Nacional tem o dever de aprovar a MP 398, legalizando a operação da TV Brasil. Tem de assegurar a ela os recursos necessários à sua implantação, ameaçados que ficaram, como todos os novos investimentos do governo, com a extinção da CPMF. Tem de fazer isso com espírito público e grandeza política, para além das contingências dos duelos partidários e dos embates eleitorais. O que está em jogo é o desenvolvimento do país e o aprofundamento da democracia. Um forte, multifacetado e equilibrado sistema de televisão é ferramenta indispensável a essas metas. Só o atraso tem a perder com ele.

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