A urgência do controle social sobre a imagem das mulheres

A afirmação das diferenças e subjetividades, das identidades de gênero, étnicas e raciais, é uma das tendências da contemporaneidade. Neste contexto, os meios de comunicação, em resposta ao seu papel de formação da opinião pública e de difusão de informações e valores, poderiam inovar e incentivar essa pluralidade. No sentido contrário, segue a prevalência na mídia da homogeneização das representações nacionais e da imposição de padrões sociais.

A análise acima é da psicóloga e pesquisadora Rachel Moreno, do Observatório da Mulher. Ela foi uma das participantes da mesa Cultura, Comunicação e uma Mídia Não-Discriminatória, realizada no Rio de Janeiro no domingo (23/9), durante o Seminário A Mulher e a Mídia 4, promovido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, Instituto Patrícia Galvão e Unifem. “Os modelos que nos são colocados pelos meios de comunicação influenciam na formação da nossa subjetividade. O que passa na TV está aceito, e este modelo é eurocêntrico: branco, alto, magro. Eu, como mulher brasileira, não me reconheço nesta diversidade”, afirma.

Além desta imposição de padrões de beleza, a mídia pode hoje ser considerada pela produção da realidade: o que sai no jornal é real; o que não sai, não existe. Portanto, se as mulheres representadas nos meios de comunicação social seguem um padrão praticamente único, tudo o que está fora deste padrão é invisível.

“Há pesquisas internacionais que mostram que as mulheres são sub-representadas nos espaços sérios. Nos telejornais, elas estão em apenas 18% das notícias. Quando se trata de ouvir autoridades ou especialistas, eles são predominantemente masculinos”, conta Rachel. “As negras são ainda mais invisíveis do que nós, até mesmo no espaço das propagandas. E, se este espaço aumentou, é porque o mercado resolveu focar suas vendas numa classe mais baixa, formada em sua maioria por negros. Como dinheiro não tem preconceito, os negros passaram a aparecer na publicidade”, completa.

Em paralelo a este cenário, o Brasil vivencia um quadro de ausência de uma cultura de controle social dos meios de comunicação. Enquanto países como a Inglaterra e a França possuem mecanismos institucionais, como órgãos reguladores independentes, para garantir o pluralismo e as diferentes correntes de opinião, por aqui o controle social ainda é confundido com censura.

A trajetória do movimento de mulheres
Nos últimos quinze anos, o movimento feminista atuou de maneira intensa no campo da comunicação informativa, como forma de pautar suas bandeiras de luta e também denunciar esta imagem estereotipada da mulher veiculada na grande mídia. Na avaliação de Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, as organizações e movimentos investiram bastante na produção de dados sobre a situação da mulher, com destaque para a produção de conteúdo radiofônico e, mais recentemente, na internet. Esses dados foram trabalhados por organismos governamentais e órgãos de cooperação internacional, e impactaram a formulação de políticas públicas, com repercussão na própria mídia.

Já na área do chamado “entretenimento”, o que se constata é a elaboração de uma produção acadêmica considerável sobre a imagem da mulher na mídia. “Esses estudos, no entanto, pouco ultrapassaram as fronteiras da academia e do movimento”, acredita Jacira. “Então, neste campo cultural simbólico, há uma diferença entre política e ação política. Sem dúvida o feminismo tem um olhar crítico para a área de entretenimento, mas apesar dos esforços esta área não tem sido alvo de ações coletivas e estratégicas entre nós”, avalia.

Há ações exemplares, de justiciabilidade, sobretudo em relação a propagandas abusivas. Uma delas, promovida pelo Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), tirou de circulação em 2003 um comercial de uma cervejaria, cujo slogan era: “mulher e Kaiser, especialidade da casa”. Foi instaurado um inquérito civil pelo Ministério Público Federal e firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com a publicação de um anúncio em um jornal e uma revista e a realização de seminários regionais sobre o tema, financiados pela empresa.

O caso do programa Direitos de Resposta, veiculado em 2005 no lugar de Tarde Quente, do apresentador João Kleber, como resultado de uma Ação Civil Pública dos movimentos que se sentiam humilhados pelas famigeradas “pegadinhas”, também foi lembrado. “Apesar de exemplares, essas ações, no entanto, ainda são pontuais”, ponderou Jacira, defendendo uma intensificação da atuação das mulheres neste campo.

Por fim, o movimento feminista, bem recentemente, passou a prestar atenção em uma nova área: a das políticas públicas de comunicação. De uma incidência histórica em campos como a saúde e a educação, as mulheres até bem pouco tempo dedicavam pouca atenção às políticas de comunicação, apesar de sempre terem defendido a democratização dos meios como bandeira.

Foi na II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres que a demanda surgiu com força. Um número significativo de documentos vindos de diferentes estados expressou a importância da comunicação e da cultura não aparecerem de forma apenas difusa nas políticas para as mulheres. O resultado foi a aprovação de um eixo específico sobre o tema no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

“Foram novas questões que surgiram para serem enfrentadas de maneira mais estruturada pelo movimento feminista e para que o governo as incorporasse de maneira profunda. Isso é resultado de uma construção de muito tempo”, afirmou durante o debate Sônia Malheiros, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

O desafio, agora, na avaliação do Instituto Patrícia Galvão, é combinar essas estratégias, de forma complementar: seguir dando atenção ao papel das mulheres como produtoras de conteúdo, fazendo um mapeamento do que já existe em termos desta produção; oferecer formação para a atuação no campo audiovisual; investir em pesquisas sobre a representação da imagem da mulher na mídia, conhecendo melhor as formas de recepção dessas imagens; e se envolver diretamente na construção de políticas públicas de comunicação – um debate que vai desde a reivindicação por um sistema público de radiodifusão até a mudança do marco regulatório das comunicações, num processo de organização e realização da I Conferência Nacional de Comunicação

“É preciso romper com a noção de que mídia e comunicação são assuntos para serem debatidos entre ou por especialistas. Nós todas debatemos saúde, e eu não sou médica. Não sei nada de segurança pública, mas falo de violência contra a mulher. Por que não romper esta idéia? Cada um tem, sim, capacidade de pensar e analisar criticamente a mídia e de, numa perspectiva do seu lugar de cidadã, de conselheira, de gestora, intervir neste debate”, conclui Jacira.

Articulação Mulher e Mídia
Durante a preparação das mobilizações do 8 de Março deste ano, diversas entidades feministas apostaram numa ação estratégica pela visibilidade da mulher na mídia. Depois da coleta de mais de 500 assinaturas, apresentaram ao Ministério Público Federal um pedido de uma semana de direito de resposta nos canais de TV, em função da discriminação sofrida cotidianamente pelas mulheres por parte das emissoras abertas. O processo resultou na realização de uma audiência pública com representantes das empresas e numa comissão que, durante um mês, visitou todos os canais abertos. A idéia era fazer um acordo para a veiculação de campanhas e programas específicos, voltados à valorização da diversidade na imagem da mulher veiculada pela mídia.

Após as visitas, numa reunião de trabalho no MPF, as emissoras, representadas por suas associações de classe (Abert e Abra), se recusaram a assinar qualquer compromisso. Alegaram que sempre estiveram abertas a sugestões, mas que não aceitavam qualquer “interferência em sua programação”. As negociações ainda estão em andamento, mas desta iniciativa nasceu a Articulação Mulher e Mídia, que reúne entidades do movimento de mulheres de todo o estado de São Paulo. A articulação atuou fortemente na II Conferência Nacional na defesa do eixo específico de comunicação no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e agora pretende se tornar um espaço nacional de debates e ações em torno do tema.

“Queremos nos ver, em nossa diversidade, na TV pública e na comercial; queremos que as concessões de TV contemplem mais sua responsabilidade social; queremos a democratização ao acesso e nosso direito à comunicação; e queremos estabelecer um mecanismo de controle social sobre o conteúdo e a imagem da mulher na TV, uma espécie de observatório da mulher na mídia”, explica Rachel Moreno, uma das pessoas à frente da articulação. Elas esperam realizar parcerias com os diversos ministérios e órgãos do Estado relacionados à temática para concretizar esses objetivos. Um deles, mais imediato, é garantir a participação das mulheres no conselho que está sendo formado para a nova TV pública brasileira.

Marco dos direitos humanos e concessões públicas
Além do espaço da Articulação Mulher e Mídia, que pode se tornar um locus permanente de discussão e ação no campo, o movimento feminista também deve apontar como estratégia o uso de tratados e convenções internacionais como forma de garantia dos direitos das mulheres nos meios de comunicação.

“O quadro que temos hoje na mídia é ainda de violação ao princípio da dignidade humana, consagrado na Constituição Federal e base do Estado Democrático de Direito. O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos e temos que invocá-los ao trabalhar por uma mídia não-discriminatória”, afirma Valéria Pandjiarjian, do Cladem.

Ela citou a Convenção sobre todas as formas de discriminação contra a mulher, a Convenção de Belém, de 1994, e a Plataforma de Ação de Pequim como instrumentos internacionais que afirmam o papel do Estado em transformar padrões socioculturais discriminatórios e sua obrigação de atuar diante desta discriminação, mesmo que cometida por agentes não-estatais – incluindo a mídia.

“Se não temos um marco regulatório, que permita uma intervenção mais pró-ativa, por que não trabalharmos com o marco dos direitos humanos, que obriga o Estado e as organizações a respeitarem a dignidade humana?”, questiona Valéria. “As TVs são concessões públicas e precisam zelar pelo que veiculam. Por que estariam acima do bem e do mal? Estamos falando de empresas que lucram muito com a exploração da imagem da mulher”, aponta.

Os comentários da mesa apontaram, em sua conclusão, para a necessidade de incluir o controle de conteúdo como critério para as concessões e renovações de outorgas de rádio e TV, desconstruindo a idéia de censura, que vem à tona quando se fala de monitoramento da programação.

“Viver em sociedade significa pensar no coletivo e isso tem que valer para os meios de comunicação também. Há uma disputa de pensamento e hegemonia que é permanente. Então temos que nos organizar para enfrentá-la em várias frentes. A liberdade de expressão é uma bandeira que não pode ser apropriada desta forma”, concluiu Sônia Malheiros.

* Reportagem publicada originalmente na página do Instituto Patrícia Galvão – www.patriciagalvao.org.br

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