Mais da metade das rádios não têm outorga da capital

Mais da metade do espectro ocupado “oficialmente” na capital paulista está consignado para empresas de outros municípios, alguns distantes mais de 90 km de São Paulo.

Uma consulta aos Sistemas Interativos da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) indica que o céu de São Paulo não é, assim, tão congestionado. Ao acessar qualquer um dos bancos de dados referentes aos serviços de radiodifusão em FM e escolher como localidade de consulta a capital paulista, a lista produzida indica que são apenas 17 as entidades outorgadas a operar no município.

No entanto, um passeio rápido pelo dial e a busca mais refinada nos sistemas de acesso aos bancos de dados mantidos pela Anatel e Ministério das Comunicações mostra que 39 rádios têm licença para transmitir em São Paulo. Ou seja, 22 emissoras receberam outorga para operar em outro município, mas ou transmitem sua programação para a capital, ou transmitem sua programação da própria capital (confira aqui a lista completa).

Para se ter uma idéia, algumas outorgas são dadas a municípios distantes mais de 90 quilômetros da capital. Há casos de emissoras cujas licenças estão ligadas a Itanhaém (100 km), São José dos Campos (localizada a 97 km de São Paulo), Sorocaba (87 km), e Itatiba (85 km).

Em flagrante conflito com pelo menos dois princípios estabelecidos pela regulamentação do serviço – o de que a operação em FM tem caráter eminentemente local e de que todo município tem o direito de requerer outorga para qualquer serviço de radiodifusão –, o fato de mais da metade das rádios “paulistanas” serem “interioranas” pode ser considerado ilegítimo e ilegal. Além disso, ao aprovar uma concessão, os parlamentares o fazem para determinada localidade, não para um município vizinho. Esta, entretanto, não é a interpretação dada pelos órgãos reguladores e, quando estes discordam, pelo Judiciário.

Tais interpretações ou justificativas estão baseadas em uma suposta impossibilidade dos órgãos reguladores reaverem o espaço do espectro eletromagnético de São Paulo ocupado pelas emissoras interiorianas. De forma genérica, estas rádios teriam garantido o direito de ampliar sua área de cobertura amparando-se em dispositivo previsto nas regulamentações do serviço de radiodifusão (em especial, o Decreto 52.795/63) que estabelecem os processos necessários e as justificativas para se re-alocar a antena e/ou ampliar a potência de seus transmissores.

Mudanças

Até 1995, estas mudanças não respondiam a qualquer critério outro que não o interesse da emissora e a disponibilidade do canal na nova região coberta. Feito o pedido ao Ministério das Comunicações, este realizava as análises técnicas e, com a aprovação do presidente da República, nova portaria mudava as condições da outorga. Segundo informações de funcionários da Anatel e do ministério, a maior parte dos casos registrados na cidade de São Paulo data desta época. Também segundo essas fontes, as solicitações eram (e seguem sendo) feitas imediatamente após o licenciamento da emissora.

Após 95, estabeleceu-se como critério que tais mudanças só poderiam ser feitas para atender melhor a localidade da outorga. Ou seja, a maior parte das ampliações de potência e mudança de antena, que modificaram a categoria do serviço prestado pelas emissoras (de local para regional), não responde estritamente a este critério. Ainda assim, não foi possível reaver as fatias do espectro ocupadas com as justificativas anteriores.

Consultada, a assessoria jurídica de uma destas emissoras (a 89 FM) diz que a questão é de “direito adquirido”. Para o Ministério e a Anatel, tudo não passa, simplesmente, de um fato técnico-administrativo. Mas, caso alguma entidade do município de São Paulo queira pleitear uma outorga em algum destes canais ocupados por rádios licenciadas para outra cidade, irá ouvir um “não é possível, o canal já está ocupado”.

Há casos, porém, em que a ocupação dos canais paulistanos por entidades outorgadas para o interior foi questionada. É o caso da concessão dada à empresa Kiss Telecomunicações Ltda.. A outorga está relacionada ao município de Arujá, distante mais de 50 km de São Paulo. A Anatel questionou a transmissão do sinal da rádio para a capital (o estúdio da emissora fica, inclusive, na Avenida Paulista). A Justiça ainda não julgou o mérito da questão, mas concedeu liminar à Kiss para seguir operando. 

É importante ressaltar que o levantamento dos dados específicos dos processos referentes a cada uma das 22 emissoras “interioranas” ainda não foi feito. Por esta razão, não é possível sequer afirmar que todas elas têm, de fato, autorização para operar nas condições em que funcionam hoje. Para tal, seria necessário levantar todas os atos e portarias relacionados a cada entidade outorgada.

Regulamento técnico

A alegada incapacidade dos órgãos reguladores de reorganizar a divisão do ar paulistano, começando por agir em relação à ocupação do espectro por emissoras de outros municípios, só encontra respaldo jurídico nas “Disposições Transitórias” do “Anexo à Resolução 67/98 da Anatel”, o chamado “Regulamento Técnico do Serviço de Radiodifusão Sonora em FM”. Em um item de um dos últimos títulos do texto, está registrada a transformação das situações estranhas aos critérios estabelecidos no próprio regulamento em situações de fato.

No capítulo 5 do Anexo, é possível ler: “5.1.1.4.1 – Poderá, excepcionalmente, ser autorizada a instalação em outro local, quando forem apresentados relevantes motivos de ordem técnica, devidamente comprovados e documentados, e que visem, sempre, melhor atender à localidade objeto da outorga”. O item C, das Disposições Transitórias, afirma que serão “enquadradas no item 5.1.1.4.1” as “emissoras já instaladas ou com suas instalações autorizadas fora dos limites da localidade constante do ato de outorga”.

Em outras palavras, as emissoras operando em São Paulo, ainda que outorgadas para outras localidades e cuja ampliação de sinal foi feita de forma pouco criteriosa, passaram a ser consideradas pelos técnicos da agência e do ministério como outorgas criteriosas.

Para além da estranheza da transformação, é preciso considerar se é possível um regulamento técnico, criado por resolução de agência reguladora, contrariar os critérios estabelecidos em decretos em princípios da Constituição Federal.

Mesmo que se considere o regulamento da Anatel, cabe perguntar se as outorgas de outros municípios passaram a valer para a capital paulista para “melhor atender à localidade objeto da outorga”. Uma emissora de Arujá, Diadema ou São José dos Campos, por exemplo, busca instalar uma antena na avenida Paulista para melhor atender a estas respectivas cidades? Evidentemente, não.

Sem ação?

A própria afirmação de que não é possível reaver o espaço no espectro ou, simplesmente, retroagir em relação à potência autorizada a posteriori da outorga original, parece estar em desacordo com a legislação. A Constituição, o Código Brasileiro de Telecomunicações e os vários decretos que o regulamentaram e re-regulamentaram o setor estabelecem que o serviço outorgado não é exclusivo e, principalmente, que a faixa do espectro reservada não se torna propriedade da entidade outorgada, sendo de posse da União, e que será gerida de acordo com as leis vigentes. O artigo 28º do Decreto 52.795 deixa claro que, inclusive, as emissoras estão sujeitas às leis que venham a se tornar vigentes.

Diante destes argumentos, não se sustenta juridicamente a tese do direito adquirido pelas emissoras, nem as situações de fato consideradas como legais pela burocracia e que tornam sem ação os agentes dos órgãos reguladores.

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