Medida Provisória altera destinação de recursos

Nem toda Medida Provisória (MP) é do bem. Ou melhor: numa democracia, nem toda MP é do bem para todos. Promulgada no último dia 16, a MP 358 alterou a destinação de recursos regrados pela lei 11.345 (que criou uma recente loteria esportiva, para alegria dos clubes), inclusive na forma como os clubes deveriam remeter recursos à segurança social (alterando artigos da lei 8.212). Alterou também algumas regras das leis 8.685 (audiovisual) e 8.313 (do Programa Nacional de Apoio à Cultura, Pronac). 

Embora esporte seja cultura, também vamos nos preocupar nesta matéria com os impactos dos artigos 3° e 4° da 358, ligados ao financiamento do audiovisual. 

Do bem, para os produtores 

É certo que alguns produtores de cinema devem ter aplaudido a MP, assinada por Lula e, no Ministério da Cultura, por Orlando Silva, responsável pela Secretaria do Audiovisual, a quem está subordinada a Ancine. Para quem não sabe, a Ancine é a agência responsável pela chave do cofre da receita federal, ou ao menos por definir quem poderá receber o dinheiro quando o cofre for aberto. Explicando: a agência, criada ainda sob a gestão FHC, é a responsável pela seleção dos filmes nacionais que poderão receber recursos destinados ao imposto de renda por meio de, principalmente, cotas de patrocínio das pessoas físicas e jurídicas interessadas em dar um fim mais “claro” à parte do que devem ao Leão. 

O artigo 3° da MP altera algumas regras do jogo: os longa metragens aprovados pela Ancine para patrocínio por meio do Pronac ou da Lei do Audiovisual até 28 de dezembro de 2006 passam a poder exceder os limites previstos para investimentos através do imposto de renda, tanto por parte das pessoas jurídicas capazes de aportes milionários, excedendo os quatro milhões de reais, quanto pelas empresas distribuidoras de filmes ou das TVs que quiserem investir mais de três milhões de reais. Na prática, foram abolidos os limites para os projetos já aprovados na agência, permitindo que os longas ultrapassem a margem de investimentos comum até o momento na indústria cinematográfica nacional, entre um e cinco milhões. Yes, nós teremos superproduções. 

Esta medida aumenta, portanto, o poder de fogo dos investidores na co-produção. É um bom momento para as produções nacionais, que ganham novo fôlego e podem atingir um novo patamar de investimentos, a depender da “boa-vontade” da Ancine; e para as empresas de distribuição do ramo, que, como a Paramount declarou em reportagem para o Cultura e Mercado, pretendem investir recursos de imposto de renda na co-produção com estúdios nacionais, contando com a módica contrapartida dos direitos de distribuição. Lucro que chama lucro, e que para o pesquisador e professor de cinema André Piero Gatti é uma abertura no mínimo perigosa.

"O artigo 3° da Lei do Audiovisual é um verdadeiro presente dos céus para estas empresas [distribuidoras], e uma das maiores fraquezas do nosso regime contemporâneo de produção, para não dizer que se trata de um verdadeiro crime de lesa pátria, embora constitucional. Somente recentemente tenho visto alguns produtores se posicionarem contra o artigo. A Paramount ‘demorou’ para fazer o que todas as outras grandes distribuidoras já fazem há algum tempo, com a finalidade de controlar a produção mundial de cinema também fora das suas hostes”, completa o acadêmico. 

Retroativamente, mediante a Lei 8.313 e de um patrocínio que também pode ser entendido como apoio, também serão facilitados os investimentos em projetos de TVs e rádios que não previam lucro, para felicidade das emissoras públicas, estatais e comunitárias. Resta saber como estes veículos se portaram no ano passado, quais os projetos que a Ancine já aprovou e se TVs comerciais não aproveitaram a brecha para viabilizar produtos competitivos destinados a cumprir com as funções educativas e informativas que a Constituição prevê em contrapartida às suas concessões. E, claro, se a brecha será tão específica como a CPMF foi um dia. O artigo prevê ainda a regulamentação, pela Ancine, dos recursos advindos do imposto de renda sem contrapartida lucrativa da produção, por meio do artigo 1° A da Lei do Audiovisual. Ganha a Ancine, que regerá estes recursos de forma ainda mais direta, inclusive agora com o controle normativo que regulamenta as políticas de fomento do setor. As políticas de fomento ganham agora nova musculatura, menos dependentes de medidas provisórias e do Poder Legislativo.  

Novas linhas de fomento. Ou de investimento? 

Para completar a estrutura dessa “nova Ancine”, o artigo 4° altera a Lei do Audiovisual, introduzindo a possibilidade de “programas especiais de fomento” que deverão ser regidos pela agência, a quem fica facultado definir como serão regulamentados os investimentos previstos com recursos provenientes do imposto de renda, para “viabilizar projetos de distribuição, exibição, difusão e produção independente de obras audiovisuais brasileiras, escolhidos por meio de seleção pública, conforme normas expedidas pela Ancine”. Na prática, a agência pode agora criar linhas para simplesmente qualquer projeto de fomento ao cinema nacional, do investimento em filmes a campanhas publicitárias ou salas especiais destinadas a exibir somente filmes nacionais, por exemplo. 

O artigo chega num momento positivo para a indústria cinematográfica nacional. Após o frio na barriga no final de 2006, com a dificuldade no Legislativo e no Executivo para estender o prazo da Lei Rouanet e demais leis de fomento, tão caras ao setor, o “empoderamento” da Ancine facilitará também a briga com os filmes estrangeiros por espaço publicitário e para a multiplicação das cópias, inclusive para filmes não ligados aos grandes grupos de mídia nacionais. Ou ao menos é o que se espera. Começa a se fechar, agora, um ciclo que inclui os fundos previstos no BNDES, com empréstimos públicos ou que contam com recursos privados.  

Como o artigo da Lei do Audiovisual alterado prevê ainda aporte de recursos “nas áreas de produção audiovisual, cinematográfica de difusão, preservação, exibição, distribuição e infra-estrutura técnica”, desde que apresentados por empresas nacionais, não seria demais esperar, para breve, que a agência atue também em linhas de investimento para projetos como a digitalização do acervo da TV Cultura, e talvez de TVs comerciais, ou a já prevista e dispendiosa digitalização da cadeia cinematográfica, da produção nacional à estrutura de salas de exibição, que terá de adaptar projetores às produções americanas que entrarão na próxima década com os rolos de filmes em quantidade bem reduzida. Não seria intriga supor que ao menos as grandes redes exibidoras do país pressionarão o governo por novas linhas de crédito para o processo. 

Não bastasse a existência dos programas especiais de fomento, muito próximos de um investimento, seja para marketing ou para garantir direitos de exibição, os recursos possíveis já tinham, na lei, a possibilidade de serem reembolsáveis. Ou seja: você, meu caro empresário, coloca parte do seu imposto de renda na co-produção de um filme, e lucra com isso. É tudo o que o mítico “mercado” pediu a Deus.

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