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“A imprensa brasileira virou partido político”

A imprensa no Brasil é um partido político. É o que diz o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, em entrevista a Paulo Henrique Amorim, para o site Conversa Afiada. A imprensa se considera indestrutível porque resiste à democratização, à republicanização do Brasil.

Wanderley Guilherme – que é professor titular aposentado de teoria política da UFRJ -, restou à imprensa brasileira ter a capacidade de gerar crises, instabilidade política. No governo Lula, a imprensa pratica o ''quanto pior melhor'', que, antes, atribuía à esquerda: ela combate políticas que, sabe, são benéficas ao país, mas não tolera que sejam praticadas por um líder comprometido com as classes populares.

''Isso (o compromisso com as classes populares) é algo que irrita e, conseqüentemente, faz com que aumente a disposição da imprensa para acentuar tudo aquilo que venha a dificultar e comprometer o desempenho do governo'', continuou o professor.

Confira a íntegra da entrevista

Quando se fala em mídia como o “Quarto Poder”, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?
A primeira coisa que me vem à cabeça: não é uma particularidade nacional. Porque, na verdade, na teoria democrática clássica, não havia previsão para o aparecimento de um lugar institucional com poder político relevante. Então, você tinha o Parlamento e você tinha o Executivo. O Parlamento podia ser dividido em duas Casas, como quando tem Senado e Câmara, ou ser unicameral. O Executivo podia ser ou de gabinete ou uma Presidência da República. Mais o Judiciário, quando árbitro dos conflitos eventualmente surgidos entre as duas estâncias anteriores. Mas não havia, não há previsão em nenhuma teoria, de algo, de uma instituição que veio a ser a imprensa. Como também, aliás, não havia para as Forças Armadas. Não se concebia que as Forças Armadas viessem a ser um ator político relevante.

Mas, sobretudo, a imprensa. Porque, de certo modo, ela encarnaria não um poder, mas a vigilância do poder. Era a garantia do direito de opinião, a garantia do direito de expressão de idéias e a garantia de vigilância dos poderes constituídos. Então, era muito mais um órgão defensivo e reflexivo do que interferente. A partir do momento em que você tem uma sociedade de massa, ou seja, o tamanho do eleitorado traz novidades para o funcionamento da democracia – ninguém jamais imaginou eleitorado de mais de dez milhões de pessoas –, isso também trouxe uma modificação do papel das instituições. Em princípio, elas interagem com estas massas que têm peso.

O resultado foi que aquelas instituições que, de certa maneira, condicionam e influenciam a formação de opinião das massas, fazendo com que a disposição delas se altere ou se incline numa direção ou em outra, aquelas instituições passaram a ter um papel de importância.

A imprensa, os órgãos de comunicação e informação, na medida em que condicionavam e orientavam a inclinação desta população, e o peso delas se tornando cada vez maior dentro do funcionamento das democracias, fizeram com que esta instituição, a imprensa, passasse a ter um papel híbrido: de um lado, refletia o real; e de outro, ao mesmo tempo, interferia, interfere e condiciona as alternativas deste real.

É necessário deixar claro que isso não aconteceu por nenhuma conspiração, nenhum plano previamente estipulado. Foi assim, numa democracia de massa, com o problema do populismo, por exemplo. Este novo papel desempenhado pela imprensa, envolvida no seu papel constitucional, teórico, de expressão de opinião, controle e vigilância da ação dos poderes públicos, e, ao mesmo tempo, cobrar responsabilidade desta instituição pública, tem que ter norma a que deva obedecer, tem que ter instâncias de julgamento – com o qualquer agente público. E não se trata de julgamento estritamente policial, trata-se de julgamento político. Não existe consenso sobre como conciliar esta responsabilidade, que deve ser cobrada neste ato público, com o que é fundamental também numa democracia – que é o respeito à liberdade de imprensa, à liberdade de opinião.

Quer dizer, a liberdade de expressão de opinião é crucial e essencial na definição do que é democracia. Quando esta expressão de opinião pode de alguma maneira trabalhar contra a democracia, cria um problema. É o mesmo problema que se coloca em relação a partidos revolucionários. Democraticamente, é necessário que se permita a organização em partidos as diversas opiniões, correntes. Agora, em que medida este direito deve ser ou pode ser assegurado a partidos cujo objetivo é fazer com que desapareçam as instituições que permitam que ele exista – isso é uma complicação numa teoria democrática. Então, esse é um problema contemporâneo da imprensa, não é só no Brasil: como conciliar os dois papéis que a imprensa tem. Primeiro, como instituição da sociedade privada de exprimir o que se passa no mundo e a opinião da população. Por outro lado, na medida em que se comporta como ator político, ter instâncias que cobrem responsabilidade política dessa instituição.


Este problema já foi resolvido em algum país ?
Institucionalmente, não. O que você encontra é uma evolução da cultura política e também do poder da sociedade civil, do poder privado. Na verdade, até agora não se criaram instituições consensuais para a solução deste problema. Tem sido resolvido pela idéia gradativa de redução da importância da imprensa, como condicionador das atitudes da população. Isso é o que tem acontecido nas sociedades ricas, porque dependem cada vez menos das políticas de governo. Porque são ricas, porque a sociedade é abundante, então, a opinião que os jornais e as televisões começam a distribuir – dizer que o governo é isso, que o governo é aquilo, isso não tem conseqüência sobre a vida privada dos cidadãos. E por isso mesmo a opinião da imprensa deixa de ser relevante. Então, o que tem acontecido nos países mais estabilizados, não é que se tenham criado instituições de controle ou de chamada à responsabilidade, mas que os jornais e as televisões vêm perdendo importância.


Especificamente no Brasil, como é que esse cenário se desenvolveu? Quem se aproveitou?
Quem se aproveitou eu não sei. No Brasil, você tem uma circunstância peculiar que é o fato de que as empresas jornalísticas têm os interesses empresariais também fora do circuito de informação. Então, isso faz com que as opiniões da imprensa não se apoiem apenas, como se diz, pelos preceitos de seus comentários, mas pelo interesse de matérias econômicas também, que são defendidos sob a desculpa, o contexto de que está sendo defendido o interesse da população. Então, este aspecto é o aspecto que não se encontra muito nos países desenvolvidos: a distância entre empresas, empresas jornalísticas que têm interesses comercias e empresariais, além dos interesses jornalísticos.

E isso cria uma situação muito particular, porque, afinal de contas, os interesses econômicos e empresariais de proprietários de jornais deviam ter suas instâncias de defesa e não utilizar a imprensa para isso. Mas, esta é a peculiaridade do Brasil. E é isso o que se mistura com freqüência no Brasil: as campanhas políticas desenvolvidas pela imprensa, sob o pretexto de que são questões que se quer  públicas, mas, na verdade, são interesses privados dos próprios empresários jornalísticos.


Paulo Henrique Amorim costuma dizer que em nenhuma democracia importante do mundo os jornais e uma só emissora de TV têm a importância política que têm no Brasil.
Quer dizer, só em países mais ou menos parecidos com o Brasil. Fora países, digamos, com renda per capita inferior a 30 mil dólares, fora países desta faixa, isso não existe. Ou seja, em todos os países (com renda superior a 30 mil dólares), a imprensa não tem esta capacidade de criar crises políticas, como tem nos países da América Latina.

Aqui no Brasil, com esta importância política que os jornais e a Globo têm, como é que eles exercem este poder?
O modo tradicional de exercer o poder em países como o Brasil, e isso tem acontecido historicamente com freqüência, é a capacidade que a imprensa tem de mexer na estabilidade, ou seja, de criar crises, cuja origem é simplesmente uma mobilização do condicionamento da opinião pública. O que a imprensa nos países da América Latina, e particularmente no Brasil, tem é a capacidade de criar instabilidades. É a capacidade que a imprensa tem de criar movimentação popular, de criar atitudes, opiniões, independentemente do que está acontecendo na realidade. Isso é próprio de países latino-americanos, mas particularmente no Brasil, em que as empresas jornalísticas têm poder econômico e capacidade e disposição para a intervenção política. Então, a arma da imprensa no Brasil, o seu recurso diante dos governos: esta capacidade de criar instabilidade política.

Como é que o senhor vê o papel da mídia no governo Lula ?
Tem dois aspectos. O primeiro aspecto é fato de o governo Lula ser um governo inédito no Brasil. É realmente um governo cuja composição de classe, cuja composição social é diferente de todos os governos até agora. Isso não foi e dificilmente será bem digerido. Agora, em acréscimo a isso é que, ao contrário do que se teria esperado ou gostariam que acontecesse, este é um governo que até agora tem se mantido fiel à sua orientação original, independentemente das discussões internas do grupo do PT. A verdade é que as políticas do governo têm prioridades óbvias, que são as classes subalternas. Isso é algo que irrita e, conseqüentemente, faz com que aumente a disposição da imprensa para acentuar tudo aquilo que venha a dificultar e comprometer o desempenho do governo.

Em que outros episódios da Historia do Brasil a imprensa usou a arma da instabilidade ?
No Brasil, tivemos em 1954, com a crise que resultou no suicídio de Vargas, em que tudo foi utilizado. Documentos falsos que foram apresentados como verdadeiros, testemunhos de estrangeiros que seriam associados a confusões internas…

Houve em 1955, na tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek. E em 1961, na crise de Jânio, na sucessão do Jânio. E em 1964.

Depois, durante o tempo do período autoritário, evidentemente, houve uma atuação explícita da imprensa. Não se falava a favor, mas também não se desafiava. Com o retorno da democracia, a imprensa interveio outra vez, na sucessão de Sarney, com todas as declarações e reportagens absolutamente falsas em relação ao candidato das forças populares, que já era Lula. Isso se repetiu nas duas eleições de Fernando Henrique, mas mais moderadamente. Foi bastante incisiva durante a primeira campanha. Na segunda, a imprensa se comportou razoavelmente. Houve certas referências, mas nada escabroso.

Mas, os dois últimos anos foram inacreditáveis em matéria de criação de fatos sobre nada: foi inacreditável. Para 50 anos de vida política, é uma participação à altura dos partidos políticos e dos militares. Quer dizer, fazem parte da política brasileira os partidos, as Forças Armadas e a imprensa.

Destes episódios que o senhor listou qual o senhor acha que é o mais emblemático?
Eu acho que dois episódios. Primeiro, a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Por quê? Porque Juscelino não era intérprete ou representante de uma classe ascendente. Ele pertencia à elite política. Era um homem do PSD – Partido Social Democrata. Juscelino era um modernizador. Portanto, a tentativa de impedir a sua posse mostra o radicalismo e a intolerância das classes conservadoras brasileiras. Quer dizer, naquele momento, não aceitava nem mesmo um dos seus membros, porque era um modernizador. Este episódio é bem emblemático. Não houve nada de dramático, de trágico ou suicídio, mas é um exemplo de até onde pode chegar a intolerância do conservadorismo brasileiro. É impressionante. Esse foi pra mim um episódio que define muito bem até onde o conservadorismo é capaz de violar os escrúpulos democráticos.

E o segundo?
É agora com Lula, porque a posse de Lula realmente revela uma nova etapa histórica no país. E revela o quanto o conservadorismo se dispõe a comprometer o futuro do país, pelo fato de o governo estar sendo exercido pelo intérprete de uma nova composição social. Isto é, há um grupo parlamentar e há grupos privados – e neles se inclui a imprensa – dificultando a implementação de políticas que são reconhecidamente benéficas ao país, porque estão sendo formuladas e implementadas por um governo intérprete das classes populares. Isso é impressionante. Quer dizer, no fundo, aquilo que os conservadores dizem que as forças populares – segundo eles, para a esquerda, quanto pior melhor –, na prática, quem pratica o quanto pior melhor são os conservadores.

Por que, na opinião do senhor, a mídia se considera inatacável, indestrutível?
Ela se considera indestrutível porque ela tem razões para isso. Ou seja, uma das instituições que até agora vem resistindo à democratização, à republicanização do país é a imprensa. Um país moderno e democrático é um país em que não existe instituição ou pessoa com privilégio de direitos, pessoa que não seja submetida à lei. Na medida em que a democracia se implanta nos países, se reduz o número de instituições e grupos sociais que não se submete à lei. Todo mundo fica, de fato, igual diante da lei. Isso vem acontecendo gradativamente, vagarosamente, mas inapelavelmente no Brasil. Na realidade, nós temos até que as Forças Armadas hoje, no Brasil, estão mais democraticamente enquadradas, mais juridicamente contidas do que a imprensa. Hoje, é muito mais difícil para um representante das Forças Armadas violar impunemente as leis do que a imprensa.

(*) Wanderley Guilherme dos Santos é titular da Academia Brasileira de Ciências, diretor do Laboratório de Estudos Experimentais e pró-reitor de Análise e Prospectiva da Universidade Cândido Mendes, professor titular aposentado de teoria política da UFRJ e membro-fundador do Iuperj.

 

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Direitos humanos e crimes cibernéticos

A SaferNet Brasil é a principal organização da sociedade civil quando o assunto é combate aos crimes de pornografia, ódio e racismo na Internet. Fundada em 2005 por um grupo de cientistas da computação, professores, pesquisadores e bacharéis em Direito, a Safernet tem estado na linha de frente dos questionamentos aos servidores internacionais que se recusam a fornecer informações à Justiça brasileira sobre pessoas que usam a Internet para cometer crimes contra os direitos humanos. Da mesma forma, a Safernet participa ativamente dos debates sobre a regulação da Internet no Brasil e no mundo, tendo feito severas críticas ao Projeto de Lei do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) atualmente em debate no Congresso Nacional. Confira a entrevista realizada por email com o fundador e presidente do conselho diretor da associação, Thiago Tavares.

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Quais são os principais crimes cometidos na internet e com qual frequência isso acontece? 

A Internet é utilizada frequentemente como meio para a prática dos mais diversos crimes. Existe uma grande incidência de crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), ameaça, falsa identidade e os chamados crimes financeiros, com destaque para as fraudes bancárias e a interceptação de informações pessoais, incluindo senhas de banco e números de cartão de crédito, etc.

A SaferNet Brasil é uma ONG de defesa e promoção dos Direitos Humanos, de modo que o nosso escopo de atuação é restrito aos crimes cibernéticos contra os Direitos Humanos.  Não atuamos nem desenvolvemos nenhuma ação fora deste escopo, de modo que não temos dados oficiais sobre a incidências dos outros crimes.

Com relação aos crimes e violações aos Direitos Humanos a pornografia infantil lidera o ranking, correspondendo a 40% de todas as denúncias recebidas no Brasil, em média. Em segundo lugar vem os chamados crimes de ódio e discriminação (racismo, neonazismo, homofobia, xenofobia e intolerância religiosa), com 29% de todas as denúncias e, por fim, temos os crimes de apolologia e incitação à violência e aos crimes contra a vida (suicídio, linchamentos, assassinatos, etc), com 28%.

Vale dizer que de todas as denúncias recebidas pela SaferNet Brasil desde janeiro de 2006, 93,7% são referentes a perfis e comunidades criminosas no Orkut, site de relacionamentos da Google que tem 25 milhões de usuários no Brasil (3 em cada 4 internautas brasileiros).

[Clicando aqui você encontrará gráficos com a evolução no número de páginas únicas criadas por mês no Orkut, por tipo de crime]

O combate a esses crimes trafega no limite entre a necessidade de combatê-los e o respeito à privacidade na internet. Muitas vezes,  parece que há uma tendência de, em nome do combate ao crime, se abrir mão do direito fundamental à privacidade. Como lidar com essa questão?

De fato existe uma tensão dialética entre direitos fundamentais, assegurados pela nossa Constituição.

No Brasil os limites estão dados pela própria constituição e pela legislação federal infraconstitucional. Ao garantir o direito à privacidade e a intimidade, a Constituição explicitou e restringiu as hipóteses em que esse direito deve ser relativizado, em detrimento de outro direito fundamental: o da segurança. Essa previsão deriva do princípio geral de que o interesse coletivo está acima do interesse individual. Desse modo, o sigilo das comunicações (o que inclui a navegação na Internet) é a regra, o não-sigilo é a exceção. É isso que prevê a legislação infraconstitucional  brasileira.

Entretanto, não só o Estado mas principalmente as grandes empresas de Internet violam e desrespeitam a privacidade e a intimidade dosinternautas, ao coletar dados e informações sem prévia autorização, ao fazer das informações pessoais dos usuários um grande negóciotransnacional e ao permitir que informações sensíveis sejam usadas por Estados autoritários com o objetivo de perseguir dissidentes edefensores dos direitos humanos, como na China e em vários outros países não democráticos.

É sabido que o Governo dos EUA, não raras as vezes, usa o argumento do combate à pornografia infantil, por exemplo, para tentar justificar a adoção de medidas que visam controlar o acesso a Internet ou permitir que o Estado monitore o tráfego de dados na rede e tenha acesso aos dados pessoais e os hábitos de navegação dos internautas.

O senador Azeredo (PSDB-MG) apresentou alguns meses trás um projeto para "combater os crimes na internet", mas organizações da sociedade civil afirmam que o projeto, se aprovado, vai violar o direito à privacidade e estabeler um controle abusivo sobre os internautas. Qual a sua avaliação sobre o projeto? [acesse o projeto clicando aqui]

O projeto apresentado pelo Senador Eduardo Azeredo não atende ao interesse público. É um projeto patrocinado pelas instituiçõesfinanceiras e pelas empresas de segurança, que objetiva transferir a responsabilidade e o custo das fraudes bancárias para os usuários eprovedores de acesso e conteúdo à Internet no Brasil.

O projeto contém diversos artigos que são claramente inconstitucionais, porque violam direitos fundamentais como a privacidade, intimidade e colocam em risco a liberdade de acesso à informação e comunicação no Brasil. Em síntese, as críticas da SaferNet ao projeto são de três dimensões:

1) falta de transparência na tramitação

Desde novembro de 2006 o projeto vem sendo conduzido de forma velada, sem a participação da sociedade civil nem das partes diretamente interessadas como a SaferNet, o CGI.br, a Abranet, etc. O Senador escolheu meia dúzia de interlocutores e deu a estes o poder de sugerir emendas, incluir ou retirar propostas, alterar a redação, etc. 

Uma coalização de 10 ONGs e centros de pesquisa como o CTS/FGV lançaram uma campanha on-line para recolher assinaturas e exigir a realização de audiências públicas para discutir as propostas contidas no PLS.

2) Técnica Legislativa 

O PLS não atende aos requisitos da boa técnica legislativa, prevista no art. 59 da CF/88 e na Lei complementar 95/1998 [acesse clicando aqui]. A maioria dos artigos está redigida de forma confusa, dúbia, inconsistente. Essa redação escorregadia visa permitir uma ampla liberdade interpretativa pelo judiciário e pelas autoridades policiais, o que, certamente, provoca uma inaceitável insegurança jurídica e um risco real às liberdades e direitos civis fundamentais assegurados na nossa Constituição, pois poderá ser usado para justificar arbitrariedades cometidas contra os Internautas brasileiros.

3) Mérito das propostas

A SaferNet publicou um estudo sobre o assunto, e que consolida as contribuições de três instituições: Abranet, Free Software Foundation América Latina e Safernet:
[acesse clicando aqui]

Também está disponível uma versão em inglês:
[acesse clicando aqui]

Os três maiores serviços de e-mail do país (Hotmail, Yahoo e Gmail), além do Orkut, têm sede nos Estados Unidos. Em função disso, segundo estas empresas, elas não estariam submetidas à justiça brasileira, o que traz dificuldades no cumprimento de ordens judicias aqui no Brasil. Qual a sua avaliação sobre essa questão? Há alguma solução à vista?

Essa á uma estratégia comercial e jurídica das empresas multinacionais de Internet. Algumas empresas como a Google simplesmente ignoram as legislações nacionais dos países onde atuam e seguem unicamente suas políticas internas, que por sua vez procuram "harmonizar", a partir dos próprios interesses  e conveniências, o entendimento acerca das leis aplicáveis nos diversos países em que atuam. O problema é que o sucesso dessa estratégia tem um limite, imposto pelas próprias legislações locais.

No caso do Brasil, o art. 1134 do Código Civil diz com todas as letras que "a sociedade estrangeira, qualquer que seja seu objeto, nao pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados" . Assim, caso não tenha essa autorização, a GOOGLE INC. não pode praticar atos jurídicos no Brasil. Sua filial, por outro lado, tem plena capacidade processual e postulatória, por força do disposto no art. 88 do Código de Processo Civil.

Os desdobramentos do caso aqui no Brasil acentuaram o debate sobre a Governança Global da Internet e estão colocando em xeque a estratégia de disseminação – para não dizer imposição – do Direito (e jurisdição) norte-americanos como padrão para resolução de conflitos envolvendo a internet no mundo.

A depender dos interesses comerciais em jogo, as multinacionais de Internet como a Google assumem outro tipo de postura. Veja os

precedentes abaixo:

Precedente da Yara Baumgart no Brasil:
[acesse clicando aqui]

Precedente Chinês: "É muito arrogante chegar a um país e querer dizer para seus habitantes como se deve operar naquele local"  Eric Schmidt, principal executivo da Google Inc:
[acesse clicando aqui]

Para além de nossos casos concretos envolvendo pedofilia, racismo, etc, o que está em jogo é a responsabilidade civil e criminal de uma empresa constituída sob as leis brasileiras (Google Brasil Internet Ltda), instalada em território nacional para explorar nosso mercado e ganhar dinheiro no Brasil.

O Orkut hoje é usado por quase 20 milhões de brasileiros. Suas páginas estão em português, e o conglomerado transnacional Google veio para o Brasil com claro objetivo de lucro. Há um serviço prestado em português, no Brasil e para brasileiros. Se prevalecer a tese dos advogados da empresa de que a filial não tem nada a ver com a história, estaremos penalizando milhares de pessoas que precisam eventualmente responsabilizar a filial brasileira por perfis ofensivos em relação aos quais a Google nada fez.


A Safernet estabeleu uma consistente parceira com o Ministério Público Federal para combater algums crimes cometidos na Internet. Em  que consiste essa parceria e quais as principais ações que estão sendo implementadas?

O papel do MPF tem sido um verdadeiro divisor de águas no Brasil em relação à atuação do Estado Brasileiro em matéria de crimes cibernéticos contra os Direitos Humanos. Assinamos com o MPF em SP, 29/03/2006, um termo formal de cooperação técnica, científica e operacional [a íntegra pode ser baixada aqui].

Desde então passamos a centralizar o recebimento, processamento, encaminhamento e acompanhamento on-line das denúncias anônimas recebidas por ambas as instituições.

De lá pra cá o número de investigações no MPF-SP cresceu vertiginosamente. São 233 processos de quebra de sigilo de dados tramitando na Justiça Federal de SP sobre investigações instauradas pelo MPF-SP nos primeiros 18 meses de vigência do acordo com a SaferNet. A parceria também foi fundamental para resolver o problema da duplicidade de procedimentos instaurados e particularmente para a propositura da Ação Civil Pública contra a Google Brasil, em relação aos crimes no Orkut.

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Outorga e renovação das concessões de rádio e TV

No próximo dia 5 de outubro, vencem as concessões das principais emissoras de TV brasileiras. Entre elas da Record, Bandeirantes e as cinco concessões da Rede Globo – em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Belo Horizonte. Em teoria, este seria o prazo para o governo federal decidir se aceitará o pedido de renovação das concessões a essas empresas e encaminhar esta decisão para posterior análise do Congresso Nacional. Na prática, não se sabe o que vai acontecer. Se o Presidente da República e os parlamentares não se manifestarem sobre o assunto, as emissoras continuarão operando com licenças precárias. Historicamente, o tempo médio de análise pelo Executivo dos processos de renovação de outorgas de rádio e TV tem sido de mais de seis anos.

O simbolismo da data, no entanto, fará com que o dia 5 de outubro não passe em branco. Diversos movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil estão preparando, para este dia, mobilizações pelo país. Um dos objetivos é denunciar a flagrante ilegalidade que existe hoje nos processos de concessão e renovação de outorgas.

Sobre este assunto, o Observatório do Direito à Comunicação entrevistou Venício Artur de Lima, pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília. Confira abaixo os principais trechos da conversa.

Atualmente, os critérios econômicos são os principais num processo de licitação para a concessão de outorgas de rádio e TV no Brasil. Que tipo de problemas isso cria?
Antes mesmo das outorgas serem concedidas via licitação, o que valia mais era o poder econômico das empresas. Foi assim que a comunicação comercial se consolidou no país. Nunca obedeceu às prioridades definidas na própria lei. Na origem da legislação de radiodifusão, se estabeleceu a prioridade a finalidades educativas. De 1988 pra cá, com a promulgação da Constituição Federal, o artigo 221 passou a estabelecer quatro prioridades claras, que valeriam para qualquer tipo de outorga de radiodifusão: finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, mas isso nunca foi cumprido. Dar mais peso aos critérios econômicos na licitação é só uma forma através da qual a lei é burlada em detrimento dos objetivos que a priori são definidos para a radiodifusão. Ao introduzir a licitação e privilegiar o aspecto econômico, do ponto de vista contratual, e abandonar os outros, você esquece o que é mais importante. 

E isso também vale pra a venda de outorgas, que também é permitida por lei. É quase um processo de transferência privada, que envolve o Ministério das Comunicações. Nas transferências, não há nenhum tipo de fiscalização da autoridade pública. Eu sou concessionário, você tem interesse, eu vendo minha outorga pra você e pronto. E posso vender pra qualquer tipo de pessoa.

E o que ocorre nos processos de renovação de concessões, para os quais sequer há critérios estabelecidos?
Na renovação é pior ainda. As concessões acabam se transformando em propriedade dos concessionários. São temporárias, mas se transformam em propriedade permanente. Isso tem sido inclusive uma preocupação do Ministério Público. Recentemente, um procurador disse que era um absurdo todos os tipos de contrato de prestação de serviço público poderem ser desfeitos pelo outorgante e nada disso se aplicar à radiodifusão. Ou seja, até o Ministério Público se deu conta de que as renovações são pró-forma. Na prática, embora haja uma série de exigências formais e técnicas, de comprovação de situação fiscal, elas não se concretizam. Primeiro, porque o processo de renovação demora tanto que essas comprovações perdem a validade. Segundo, porque na renovação se ignora tudo o que já havia sido ignorado na concessão. Ou seja, o artigo 221 continua não aparecendo como critério.

O processo também passa pelo Congresso Nacional, ou seja, deputados e senadores exercem, neste caso um poder, concedente. Ao mesmo tempo, a legislação diz que nenhum parlamentar pode ser dirigente de empresas concessionárias de serviço público. Isso é respeitado?

Há, sabidamente, vários problemas no Congresso envolvendo concessões e renovações de outorgas. Um deles é o processo de tramitação interno. O Congresso sempre alegou que não tinha pessoal preparado para instruir os processo de renovação. Recentemente, houve avanços neste sentido, com o ato normativo número 1/2007 da subcomissão de concessões da CCTCI [Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados], que estabeleceu mudanças no tempo da tramitação, na exigência de se disponibilizar um banco de dados sobre os processos, etc.

Mas o problema de solução mais difícil é que, a partir do momento em que o Congresso passou a ser poder concedente, foi incorporado a este poder um grupo grande de parlamentares que são, eles próprios, associados à radiodifusão. Ou porque são diretamente concessionários ou, embora não apareçam nos contratos, estão indiretamente envolvidos via familiares ou laranjas. Isso cria problemas gigantes, porque o concessionário se confunde em alguns casos com o poder concedente, também responsável pela renovação.

Ou seja, há uma contaminação do processo pelo fato de que, tradicionalmente, há vários deputados compondo a CCTCI com interesse direto em jogo, ou para aprovar ou para prorrogar concessões. Isso foi admitido no relatório da própria subcomissão de concessões. O documento disse que, até agora, as renovações eram aprovadas em bloco sem obedecer a nenhum critério. Alguns parlamentares que foram pegos votando suas próprias concessões alegaram, em sua defesa, que isso acontecia porque a votação era em bloco.

No início do ano, o ministro das Comunicações Hélio Costa afirmou que não havia nenhum parlamentar concessionário de rádio e TV no país.
O imbróglio legal é mais complicado do que parece, não é tão simples como o ministro coloca. O Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, faz uma restrição neste sentido. A regulamentação do Código, de 63, foi diversas vezes modificada. No meio disso, entra a Constituição, que coloca o problema de uma forma diferente: o problema passa a existir quando o cidadão comum se transforma em parlamentar. Antes disso – portanto, mesmo enquanto candidato – ele pode ser concessionário. Tendo sido eleito, aí o artigo 54 da CF passa a valer. Aí o parlamentar passa a empresa para o nome da esposa…

Mas na verdade os detalhes se o parlamentar é sócio ou membro da diretoria de uma emissora são uma filigrana. Se o sujeito é parlamentar, ele se transforma em poder concedente. Os regimentos das duas Casas dizem que, quando a pessoa tiver interesse privado, há um impedimento ético em decidir sobre essa questão. No caso da Câmara, o impedimento tem que ser declarado pelo próprio deputado. Mas é obvio que como radiodifusor o parlamentar deveria se excluir de toda manifestação que envolvesse radiodifusão.

Essa questão é central no mundo contemporâneo, quando se conhece o pelo papel da comunicação na política. Obviamente é uma pratica antidemocrática.

Há algumas semanas, o Ministério das Comunicações anunciou um recadastramento das emissoras de rádio e TV, algo que não ocorria desde 1973. As empresas terão que enviar informações como o quadro societário atual, endereço, etc. Esse recadastramento serve para alguma coisa se não há fiscalização do MiniCom durante o período de exploração da outorga?
O recadastramento é para inglês ver. Será um banco de dados atualizado pelos próprios interessados e não há nenhuma informação se isso vai ser ou não colocado à disposição pública. Em novembro de 2003, o cadastro das concessões foi disponibilizado no site Minicom e desapareceu no início deste ano. Quando alguma irregularidade é encontrada e se acha alguém envolvido, o mecanismo de defesa das pessoas é dizer que o cadastro está desatualizado. Agora se fala em recadastramento, mas ninguém diz que a informação é pública, que deveria estar disponível.

Num curto prazo, o que poderia ser feito para melhorar esta situação?
Se a lei fosse cumprida, com certeza absoluta já seria um outro quadro. Um exemplo seria o acompanhamento das renovações e das novas outorgas para emissoras de rádio e TV existentes no município. Se todos conhecessem a relação das concessões existentes em seu município, as datas de vencimento de cada uma e as relações de cada uma com os políticos locais, se essa informação fosse amplamente divulgada na sociedade, a população poderia fazer um acompanhamento disso. A situação no Brasil é tão absurda que se a sociedade civil conseguisse simplesmente levantar os concessionários e aplicar as regras de hoje já seria uma revolução.

Active Image Observatório do Direito à Comunicação

A televisão brasileira na era digital

A televisão brasileira na era digital: exclusão, esfera pública e movimentos estruturantes (São Paulo: Editora Paulus) é o título do mais recente livro de César Bolaño e Valério Brittos. Nele, os autores discutem os problemas atuais que mais envolvem a televisão digital no Brasil. Também traçam um diagnóstico sobre a produção televisiva, a indústria cultural, o estado da televisão digital no Brasil e no mundo e comentam sobre as falhas do governo em relação a essa nova tecnologia que chega ao país. A IHU On-Line conversou com o professor Valério Brittos sobre o tema.

Valério nos fala sobre as possibilidades de democratização que a TV digital pode ou não proporcionar à indústria cultural e jornalística brasileira e, ainda, sobre as exclusões que a tecnologia pode trazer a um país em que 97% da população possui televisão em casa. Ele comenta também a respeito do modelo de TV digital que se instala no país e os avanços que os experimentos feitos já trouxeram às programações. “Essa TV digital acaba estruturando o mercado como um todo. Ela nem iniciou e ela já exerceu uma série de influências/provocações em outras mídias. E, quanto mais estiver avançada a TV digital, mais ela vai repercutir sobre as demais mídias, sobre a internet, o próprio jornal”, acredita.

Valério Cruz Brittos é formado em Direito, pela Universidade Federal de Pelotas, e em Jornalismo, pela Universidade Católica de Pelotas, com especialização em Ciências Políticas. É mestre em Comunicação, pela PUCRS, e doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é professor do PPG de Comunicação da Unisinos e presidente da ULEPICC – União Latino-americana de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura. Confira a entrevista.

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O senhor acredita que a TV digital vai democratizar a produção cultural e jornalística da televisão brasileira?
Valério Brittos
– Não, a TV digital, por ela própria, não democratiza nem transforma nada. Só haverá democratização se as pessoas a aproveitarem com o objetivo de realizar algumas mudanças importantes que precisam acontecer. E, para isso, é necessário haver  regulamentação específica, participação da sociedade, enfim, mudança de comportamento. Até agora, por exemplo, no que diz respeito ao processo de concentração da televisão brasileira – na mão de alguns grupos muito fortes, que fazem o que querem -, nada vai mudar. Por outro lado, leis sobre o controle dos meios, como, por exemplo, a classificação indicativa, ainda não foram feitas.

Pequenos avanços foram dados, mas podemos aproveitar a tecnologia digital para fazer deste momento um momento de fazer mudanças. No entanto, não é a tecnologia sozinha que faz isso.

Que tipos de exclusões a TV digital pode fazer? Como essas exclusões se darão?
A primeira exclusão é a do consumo. Inicialmente, essa TV digital estará disponível para uma pequena parcela da população. A compra do conversor e do próprio aparelho televisor se tornará muito caro e a população não terá acesso. Depois, até irá se universalizar, mas a experiência mostra que, quando a tecnologia se universaliza, ela já deixa de ser tão importante. Ou seja, já passa a existir outra mais importante, que a elite passa, então, a consumir.

Além disso, existirão níveis de consumo: alguns podem pagar por serviços interativos, outros não; alguns poderão ter um codificador melhor que permita melhor interação, mas a maioria não poderá.

Outro tipo de exclusão é o acesso à possibilidade de produção de cultura. Quem é que vai produzir ou difundir cultura? Hoje em dia, já temos uma exclusão enorme de uma grande massa de pessoas, que não podem levar adiante suas reivindicações, seus posicionamentos, suas identidades. São essas as exclusões que existirão com a TV digital, embora nós possamos mudar o contexto. A regulamentação não está totalmente pronta. 

É possível fazer uma previsão do tipo de TV digital que o Brasil está adotando?
Pode. Até agora, nós temos pouca ou nada de regulamentação sobre isso e, por conseqüência, não existe uma exigência por parte do Governo Federal em relação aos operadores televisivos sobre qual o tipo de televisão que se terá. Com isso, eles podem fazer o que quiserem. Então, o problema é sério. Para atender aos seus próprios interesses, num primeiro momento, o que os operadores querem é fazer chegar à alta definição. É não transformar a possibilidade da TV digital, os seis megahertz que eles recebem, em multiprogramação. A multiprogramação seria mais democrática, isto é, mais vozes poderiam falar sobre diversos fenômenos, sendo mais “aberta para a sociedade”.

Eu diria que os principais operadores tentarão fazer a programação em alta definição. Essa é a TV digital que nós teremos com alguma coisa de interação, num segundo momento. A TV digital começa em dezembro, por São Paulo, sem interatividade. Como essa legislação está em aberta, pode ainda ser construída alguma regulamentação que imponha obrigações aos operadores de fazerem um dado tipo de TV digital, especialmente através da chamada Lei de Comunicação de Massa. O Brasil vem esperando isso há mais de 10 anos. Se essa lei vier, pode tanto apenas reproduzir as coisas como estão quanto introduzir mudanças.

A partir dos experimentos feitos até hoje, acontecerão muitas mudanças?
Sim, especialmente na imagem. Tecnicamente, o que mais se distingue é a possibilidade de uma imagem muito melhor. Mas aí não adianta só um conversor. Precisa-se também de um televisor diferente. Grande parte da população não o terá, num primeiro momento, como eu disse, pela questão econômica. Não são esses televisores que existem por aí, e sim outros, que serão talvez até mais caros, porque não há ainda uma escala de produção. Mas há também possibilidades interativas bastante interessantes.

Quais são, atualmente, os movimentos estruturantes que afetam a televisão e os demais meios de comunicação?
É que essa TV digital acaba estruturando o mercado como um todo. Ela nem está sendo usada e já exerceu uma série de influências/provocações em outras mídias. E, quanto mais estiver avançada a TV digital, mais ela irá repercutir sobre as demais mídias, sobre a internet, o próprio jornal. Tudo isso em movimentos de conexão, movimentos de convergência, mas que desestruturam.

Toda mídia provoca movimentos estruturantes, e a televisão mais do que qualquer outra. Isso porque ela é a principal mídia do Brasil e do mundo, tendo se tornado o meio de comunicação que as pessoas mais consomem. Internet é muito importante, é claro, mas o que as pessoas consomem mesmo é a televisão, que tem, portanto, um papel estruturante sobre os demais mercados e sobre a sociedade como um todo.

Quais são as variáveis tecnológicas, econômicas, políticas e sociais que definem os movimentos que estruturaram um mercado para a TV digital no Brasil?
São variáveis sobretudo econômicas. A questão do preço, da própria racionalidade de organização das empresas, enfim, o econômico, precisa ser tutelado porque, em princípio, ele funciona diretamente para aquele agente que está operando o negócio. Desse modo, ele precisa ser tutelado por lógicas, por variáveis extra-econômicas ligadas ao público, que passa pela regulamentação, pela pressão social, pela fiscalização. Isso passa muito pelo papel do Estado, em sintonia com a sociedade civil.

Ainda existem as variáveis sociais, como a sociabilidade. Afinal, há todo um conjunto de mudanças hoje no mundo, e essas mudanças repercutem sobre a forma de fazer – não só os conteúdos -, mas até de organizar essa televisão, em termos de o que ela terá de interativo, de como será disponibilizada determinada tecnologia.

Em termos jurídicos, já falamos que a questão da regulamentação, com as políticas públicas, cabe ao Estado construir em sintonia com o social. A questão do comunicacional será resultado de tudo isso. A gente terá essa TV digital expressando todo esse panorama.

O Ministério das Comunicações diz que o padrão japonês será adotado com inovações tecnológicas e com iniciativas de pesquisadores brasileiros, o que seria um padrão nipo-brasileiro?
Ele tem algumas inovações específicas com relação ao padrão japonês. Mas o problema é que esse grau de inovação me parece que não é tão diferenciado, não pelo menos para ser chamado de padrão nipo-brasileiro. Eu diria que, até se prove o contrário, chamá-lo de padrão nipo-brasileiro é marketing governamental. Trata-se de um padrão japonês adaptado às condições do Brasil. Foram feitas várias pesquisas no Brasil sobre a TV digital e se conseguiu avanços tecnológicos bastante interessantes. Mas o problema é o seguinte: qual é o grau de incorporação dessa tecnologia brasileira que vai haver no modelo brasileiro de TV digital? Num primeiro momento, parece que não haverá tanta incorporação desse modelo. Se houver, posteriormente, uma incorporação num grau mais elevado, aí sim pode-se pensar num padrão nipo-brasileiro.

Nos debates sobre a TV digital, não ouvimos as questões sobre um novo ambiente normativo – político, regulamentar e regulatório – para a comunicação social eletrônica brasileira. Que princípios devem nortear uma Lei Geral das Comunicações?
São dois princípios que se chocam: o princípio público e o privado. O princípio privatista é o princípio que se tem hoje e precisa ser compatibilizado com o princípio público. Hoje, o princípio que impera na TV digital é o privatista, levado do liberal ao extremo, no qual as empresas vão poder fazer o que quiserem (ou quase tudo que quiserem) com o espectro eletromagnético. Não existirão limites, determinações para fazerem tudo isso.

Outra possibilidade de princípio que se choca é o princípio público, onde dados agentes querem que, ao contrário disso, se imponha restrições e que a lógica de implantação da TV digital atenda, acima de tudo, aos interesses da sociedade. São esses dois princípios que se chocam, e eu insisto que ambos deveriam ser compatibilizados.

O que a população brasileira precisa saber sobre a TV Digital e ainda não foi ou foi pouco comunicada?
Precisa saber que essa é uma tecnologia que, por si só, não muda o mundo nem faz revolução. Mas ela pode trazer para o Brasil avanços que ele precisa fazer, resolvendo problemas estruturais do seu mercado de comunicação, que vem de sua origem, na década de 1950. Portanto, a sociedade deve saber que é necessário se mobilizar em torno de uma Lei de Comunicação de Massa, para que esse modelo de TV digital nos faça refletir sobre o ato de midiatizar. O ato de midiatizar deve ser marcado por lógicas públicas, de compromisso com a sociedade, de proteção da infância, enfim, por uma série de elementos para que se tenha a democratização do espaço eletromagnético. E que se possa, além disso, usar a televisão digital para levar conteúdos digitais a pessoas que não têm acesso a dados, a uma certa educação, digamos, eletrônica.

Eu acho que é isso que a sociedade precisa saber: que, se ela não se mobilizar, a TV digital reproduzirá as condições desiguais de acesso que nós temos não só na tecnologia, mas também na educação, na saúde, no transporte, ou seja, em muitas coisas.

O senhor pode falar um pouco sobre o processo de desenvolvimento do que está descrito no livro sobre TV digital no Brasil?
O livro é resultado de pesquisa acadêmica, desenvolvida durante três anos, uma produção feita por mim e pelo César Bolaño, e que teve a contribuição reflexiva de várias outras pessoas. Nesse resultado, nós discutimos um pouco quais são as balizas em que se deve pensar a televisão; qual é o problema da televisão brasileira, além de quais são os elementos que podem delimitar para se compreender o papel da televisão hoje (e o papel que ela pode vir a ter). Também se faz um histórico, depois, do processo de digitalização no mundo, chegando à televisão, investigando qual sua função hoje no Japão, no Reino Unido. Enfim, muitos aspectos podem ser encontrados nesse livro. Depois, se mergulha na discussão existente no Brasil e se estuda como é que começou a idéia de TV digital no país, o que já foi feito, quais foram as experiências, e o que o rádio vem fazendo para se digitalizar. Por fim, se passa ainda pelas operadoras, o que os canais também fizeram de experiências digitais, e se chega à discussão de qual é o estado hoje da TV digital no Brasil e o que pode ainda ser feito.

O link original da entrevista está disponível clicando aqui.

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Mercado audiovisual e produção independente

Leopoldo Nunes é um dos diretores da Agência Nacional de Cinema (Ancine), órgão responsável por regulamentar o mercado audiovisual nacional. Aos 41 anos de idade, o paulista passou pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, junto a Orlando Senna, e pelo cargo de Diretor de Patrocínios da Secretaria de Comunicação Institucional da Secretaria Geral da Presidência da República. Cineasta e antigo cineclubista, teve sua indicação à Ancine defendida pelo Ministro Gilberto Gil, e seu mandato expira em 2010. Tem ainda um histórico de militância nas categorias de base do cinema brasileiro, com duas passagens pela Associação de Documentaristas de São Paulo (ABD-SP) e duas outras pela ABD nacional, de onde foi para a diretoria do Congresso Brasileiro de Cinema, entre 2000 e 2002, e de lá para o Ministério da Cultura, no começo da gestão Gil.

Nessa entrevista, Nunes fala dos mecanismos utilizados pela Ancine para fomento à cadeia produtiva do cinema, do momento do cinema nacional, da relação entre a produção independente com a TV, de Ancinav e da digitalização das mídias audiovisuais.

Parece um feliz chavão dizer que o cinema nacional atravessa uma boa fase. Tal aquecimento, representado pelo número de produções, por seu reconhecimento internacional, pelo reconhecimento do público nacional e pelo aumento dos orçamentos das produções. Isso é só uma bolha, um momento, ou esse ritmo vai se manter?
Vai se manter, sim. Tanto o governo quanto o setor cinematográfico estão empenhados neste sentido. Tudo o que estamos vendo aí, que dá sustentação a este momento do cinema nacional, surgiu de uma relação entre o governo e o setor. Hoje o investimento anual, entre estatais, Ancine e Ministério da Cultura, através de editais e de leis de incentivo, está em torno de 200 milhões de reais. E neste universo, a produção é o melhor problema, pois hoje temos produção e agora o grande problema é a presença e circulação dos filmes nas salas. São necessárias agora políticas de difusão em parceira com a televisão aberta e fechada e o setor de vídeo, além de apoio às estruturas de distribuição e exibição de filmes em salas para levar o cinema nacional a um novo patamar.

Neste sentido, há também a novidade do aporte de recursos reembolsáveis para este mercado, através do BNDES. Por isso que este momento não só vai ser duradouro como é um momento de crescimento do mercado, tanto para os investimentos, diretos e indiretos, como através dos mecanismos criados para fomento, e também através das políticas, já discutidas, de fortalecimento da distribuição independente.

É possível “criar” um ambiente assim sem uma Ancinav?
Sim. É certo que nós estamos circunscritos à nossa competência de atuação, com atividades que dizem respeito ao auxílio à circulação, ao fomento e à fiscalização das atividades ligadas a produção de conteúdo audiovisual, em especial o cinema e atividades correlatas como a publicidade, mas é possível.

Em se definindo o que é o conteúdo brasileiro, em se definindo o que é produção independente, temos uma questão maior apenas que é a discussão da Lei Geral de comunicações, mas, dentro da nossa competência, é possível atuar e expandir bastante o mercado.

É possível expandir em um mercado que se sabe concentrado?
Sem dúvida há uma concentração muito grande de títulos, das majors, e uma briga muito intensa pelo espaço de tela. A gente tem de entender que as majors têm mudado sua estratégia no mercado mundial e que a gente tem de lutar por uma presença maior do nosso cinema.

Nós temos também de sair do cerco das duas mil salas, ampliar o mercado e aumentar a demanda por títulos brasileiros. Recentemente, dois ou três títulos distribuídos pelas majors tomaram todo o mundo. Ao mesmo tempo em que isto ocorre, há uma reação e as cinematografias nacionais têm se colocado contra isso. Nós estamos com uma produção consolidada, mas com uma série de distribuições aquém do que poderia ser feito. Mas, daqui até 2010 nós teremos uma participação crescente, também com o crescimento do mercado.

Vale mais para o Brasil tornar-se uma Bollywood ou uma Nigéria?
Nem uma coisa nem outra. O Brasil tem uma característica geográfica e nacional específica. No caso da Índia ela tem um grande mercado, também no Oriente, ali entre a própria Índia e todos aqueles “Istãos”, Curdistão, Paquistão, Afeganistão e afins. Ela tem uma característica própria, um nicho em uma grande região do planeta. No caso da Nigéria, é uma experiência nova, baseada na replicabilidade do meio digital e na ausência de uma indústria consolidada.

Aqui temos um setor audiovisual muito industrial mesmo, temos uma experiência própria, um grande mercado, mesmo com a escassez atual, as duas mil salas de exibição. À exceção do México, a América Latina tem uma organização que torna a produção local e a distribuição bem mais difícil do que no nosso caso. Nosso cinema é produzido ao modo da indústria ocidental, e temos potencial para atingir tanto o mercado interno e externo. A Argentina tem tido uma boa experiência internacional, mas falha ao atender o mercado local. Por isso que a nossa experiência é única. Como Gustavo Dahl diz, jabuticaba só tem no Brasil. É meio assim, a nossa experiência é muito própria, nós não pretendemos copiar nenhum outro modelo, pois nosso modelo é próprio, baseado em nossa própria história.

E qual a visão da Ancine em relação às políticas de financiamento e apoio do BNDES no setor, e como a agência pretende atuar em relação a este “reforço”? Investimentos como este são o sinal de que é possível vislumbrarmos uma estruturação do mercado cinematográfico nacional?
Contribuímos desde o começo para a formulação desta política, e o banco esteve muito aberto neste sentido. Nós só tínhamos fundos perdidos [investimentos que utilizavam fundos perdidos, com recursos que não voltam para os cofres públicos], através das leis de fomento, mas há setores que podem utilizar o capital de risco e nesse sentido são políticas absolutamente complementares, pensando as políticas do MinC, da Ancine, da Petrobrás e do BNDES.

Agora no BNDES até os produtores, com um bom capital, podem se servir de um recurso com risco, por terem certeza que poderão pagar, e toda esta cadeia de fomento está inserida no mesmo projeto, um projeto discutido também com os setores de TV e Cinema. Na TV, você tem ainda uma presença quase insignificante da produção nacional em cinema, mas há mecanismos que podem mudar isso, como a recente mudança em relação ao uso do artigo 1°a da Lei do Audiovisual ou o uso do artigo 3° da mesma lei pela TV. Há ainda ferramentas como o artigo 39, cada vez mais utilizado, para séries como Mandrake, que se tornou referência e produto de exportação. O imposto devido das empresas de TV também pode ser usado neste sentido, e as TVs têm procurado a Ancine no sentido de descobrir como adaptar seus modelos de negócios para utilizar estes impostos.

Esta aproximação das TVs é muito importante?
A presença do filme brasileiro na TV e no vídeo não chega, em valores, a 1% do total no setor. Em relação ao mercado de vídeo, primeiro temos de entender que foram mais de 10 anos sem um órgão regulador. Mas o setor de vídeo é um dos mais rentáveis da cadeia audiovisual, e o mercado explora esta rentabilidade, através da comercialização de produtos estrangeiros, que se apresentam com valores mais vantajosos para os distribuidores do que os produtos nacionais. É um mercado em que não há isonomia. Estamos estudando mecanismos que facilitem essa isonomia, ou então vamos ter de ficar sempre botando dinheiro em nosso cinema, que ficará espremido no mercado de salas de exibição, por falta de regulação e condições isonômicas de competição.

Que tipo de solução diminuiria esse afunilamento?
Algumas soluções: o fortalecimento do distribuidor brasileiro; um fundo setorial para subsidiar uma ou outra ação mercadológica, como subsídio a juros, que estamos tratando como benefício; e o diálogo com o mercado de vídeo, no sentido de facilitar a formação de pactos, e de uma regulamentação a partir destes pactos.

E na TV?
A gente tem feito esforços em várias direções, e com atores diversos. Um exemplo é o Documenta Brasil, realizado com o SBT, com obras que vão primeiro para a TV aberta, depois para as salas e vídeo. São casos em que é fomentado, por meio do Artigo 3º que permite reinvestimento de parte do imposto por remessa de lucros ao estrangeiro, ou seja, por royalties de filmes estrangeiros exibidos aqui pelas TVs – e a TV entra com a janela de exibição, que por si só é um valor muito grande, diga-se de passagem. Com este instrumento nós estamos dando a nossa cota de subsídio para que se estabeleça uma relação entre produtores independentes e as TVs. Com o investimento em fundos subsidiados e a intermediação na relação entre TVs e produtores independentes, creio que teremos boas novidades no audiovisual para o próximo ano, em um mercado que começa a exportar.

Existe cinema nacional sem cota de tela?
Não, nem cinema brasileiro, nem cinema francês, inglês ou americano. O cinema americano mesmo vive no mercado, detém 80% do mercado mundial, mas é financiado pelo governo. Não há cinematografia não financiada, por meio de subsídio ou impostos, como é o caso da França e da Argentina. O que existe é combinar fundo perdido com recurso de risco. Além disso, há, na França, uma cota de tela poderosa. Na Espanha, onde o mercado está focado na televisão, há no cinema também um mecanismo de cota de tela, um pouco diferente da nossa. E em todos estes países predomina, no mercado, o cinema americano. Países como a França e a Coréia do Sul têm cotas de tela praticamente draconianas para garantir seu mercado interno. Sem mercado interno você não movimenta a economia, não tem massa crítica, não tem base.

O nosso modelo de cota de tela não está superado?
Com certeza. No Brasil, a cota de tela é um sistema muito antigo, mas é uma proteção que existe em quase todos os países. É um instrumento de uma cinematografia que está em desvantagem, em uma situação de grande fragilidade no mercado. Nossa cota de tela é minúscula, e os setores de distribuição e exibição não tomam iniciativas contrárias, não vão além da cota de tela. Por isso é um instrumento regulador indispensável. Hoje a gente disputa, fora o circuito de arte, de 200 ou 300 salas, somente com o cinema americano, e de forma desigual. Alguns criticam a qualidade e apelo ao público do cinema nacional, mas não há qualidade sem demanda, senão o cinema é feito somente por necessidade de expressão, com um perfil bem mais autoral, e na medida do possível palatável pelo mercado.

No Brasil, não há ainda, para o cinema, uma produção com perfil industrial, mas nós estamos pactuando isso, ajudando a construir. Como a nossa cinematografia é muito frágil, a cota é uma medida indispensável e ainda será por muito tempo ainda. Outros setores da cadeia audiovisual, como a publicidade e o vídeo institucional, são bem mais fortes e não precisam deste mecanismo.

O cinema nacional é mais conhecido fora do país do que dentro?
O Brasil já teve uma presença maior, nos anos 60 e 70, no mercado internacional. Hoje nossa cinematografia é pouco conhecida, apesar de ter uma qualificação muito grande. Mas é certo afirmar que o brasileiro conhece muito pouco sua produção independente, e esse é o nosso principal esforço neste momento. Temos inclusive programas de exportação, políticas públicas para qualificar o produtor brasileiro no plano internacional. Estamos abrindo espaço para o independente, que por um lado tem a TV ainda fechada à sua produção, e por outro não conhecia os mercados internacionais, a política e as dinâmicas de distribuição.

Então a TV é essencial neste processo de valorização da produção independente?
Sem dúvida nenhuma, para fortalecer o conjunto da atividade produtiva e audiovisual no país. Ao mesmo tempo em que nós um esforço para dar protagonismo aos produtores que não têm estrutura, reconhecemos a TV, que é central na produção nacional e de exportação, seja a novela ou o mercado publicitário, que também pagam impostos. Aqui, porém, você tem uma série de mecanismos já criados, de estruturas que auxiliam e fomentam este mercado – o artigo 1°, 3°, 3ºA e o 25° da Lei Rouanet, para as radiodifusoras, editais de fomentos e linhas do BNDES. A TV tem um papel indispensável – alta tecnologia, horas de programação – então a gente tem responsabilidade em dar um respaldo pelo conjunto que a atividade representa, e entendemos a força dos grandes conglomerados, mas a prioridade ainda é o produtor independente. Nossa responsabilidade nesse meio é fazer filmes, mas filmes que circulem e possibilitem o desenvolvimento dessa cadeia produtiva e econômica.

O dinheiro investido a fundo perdido retorna para a própria economia, e como se dá este retorno?
É um erro dizer que esse é um dinheiro que vai e não volta. Você tem dificuldade para encontrar técnicos para produções audiovisuais hoje, e isto é sintomático de um aumento das produções nesta atividade. A atividade passa a criar uma dinâmica própria de recursos. Circula um grande volume de capital em nome da atividade do audiovisual, e o investimento em produção é 1% ou 2% do que circula nesta atividade, ou seja, é um investimento pequeno e que gera um grande ativo para o país. Essa é uma discussão muito obtusa, pois se foca em cima do produtor independente e se ignora o que realmente circula. Se você pegar o quanto o cinema estrangeiro circula, percebe que o recurso investido em produção brasileira é insignificante. É um grande ativo que geramos ainda, com o cinema, tendo um recurso econômico que se torna um capital simbólico, um capital que, depois de cumprido seu círculo econômico, tem função cultural. Outro ponto, ainda em discussão, é o uso de um escalonamento nos investimentos com fundo perdido, de acordo com as contrapartidas em “dinheiro bom”. Nós entendemos que não podemos tratar os diferentes como iguais. Um investimento num independente tem um impacto nas estruturas que alimenta toda uma cadeia produtiva, e gera depois um ativo para uma produtora. Nós temos isso com a agroindústria, tínhamos com a indústria de sapatos e com outras.

Queria tocar ainda em outro ponto: qual destino foi dado para o projeto da Ancinav?
É um projeto fundamental. Desafio qualquer um a apontar no projeto os itens que pegaram para colocar-nos como autoritários. É o tipo de grita que vem sempre dos mesmos segmentos, os “conteudistas” que atuam no mercado e adotam uma postura conservadora. Os mecanismos de proteção previstos eram fundamentais, em um ambiente de diversidade como este, para garantir os direitos à soberania e a autodeterminação dos povos, garantir a diversidade cultural. O projeto da Ancinav, diga-se de passagem, foi discutido com todo o setor audiovisual, amplamente. Depois fomos vítimas de um ataque contra o projeto. Neste momento, com o interesse de preservar a soberania do país e a diversidade cultural, o Congresso Nacional esta debatendo mais de um projeto de lei que toca neste ponto.

Outra questão sobre a qual começam a surgir dúvidas é a digitalização do cinema. Como a Ancine vê este processo?
Nós estamos, no mercado, com um processo concomitante de digitalização das TVs e com a necessidade de produção digital daqui para frente. O que é certo nesse momento é que as majors definiram um padrão técnico, que deve ser adotado, e que é um padrão de alto custo, que como toda indústria começa num preço mais elevado e tende a se adaptar às próprias disponibilidades do mercado. Para a definição dos padrões, há toda uma discussão de adoção de softwares e sistemas livres, e isso ainda não está definido. Mas nesse momento essa discussão é incipiente, o mercado de filmes em celulóide ainda deve continuar por um tempo. Estamos discutindo com os setores afetados, para definir o melhor para o país e para nos inserir nesta mudança. O que já está definido, por sua vez, é a operação, quase que experimental, dos grandes distribuidores brasileiros. O mundo ainda não definiu qual, ou quais, serão os padrões majoritários, depois de anos de discussão e produção. A discussão tem se arrastado por 20 anos, com um padrão desenvolvido pelos japoneses já em 1989, e experimentos de George Lucas desde 1990, mas sem uma definição da indústria americana ninguém deve começar a produzir em larga escala. Temos nos adaptado, para não ficarmos isolados e não criarmos dificuldades para circulação da nossa produção por conta do padrão.

E a digitalização da TV, terá impacto neste mercado? Como atua a TV Pública neste momento de mudanças?
Não tenha dúvidas. Hoje, a produção em digital, mesmo a produção em um bom padrão, como o broadcasting, é bem acessível. O que se precisa é criar a demanda. Faço parte do grupo executivo da TV pública, e ela será uma grande demandante da produção independente. A produção para esta e outras mídias em digital vai gerar um aumento muito significativo neste sentido. Nós temos a produção, desde o documentário, do cinema de animação, da teledramartugia, do próprio cinema, até produções esportivas, em divisões regionais e modalidades pouco exploradas pela televisão comercial, ativos alheios da grande mídia. Tudo isso pode chegar, com multi-programação, com WEB-TV, com TV universitária, etc. A digitalização vai mudar substancialmente o conceito que a gente tem da TV como ela é, pois trabalha muito mais numa lógica de web do que de radiodifusão, que já é adotada no mundo todo. E, fora do Brasil também, a produção independente é quem sustenta a atividade audiovisual, até por manter uma alta qualidade com um custo menor, e a TV apenas gerenciando esta programação.

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