Mercado audiovisual e produção independente

Leopoldo Nunes é um dos diretores da Agência Nacional de Cinema (Ancine), órgão responsável por regulamentar o mercado audiovisual nacional. Aos 41 anos de idade, o paulista passou pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, junto a Orlando Senna, e pelo cargo de Diretor de Patrocínios da Secretaria de Comunicação Institucional da Secretaria Geral da Presidência da República. Cineasta e antigo cineclubista, teve sua indicação à Ancine defendida pelo Ministro Gilberto Gil, e seu mandato expira em 2010. Tem ainda um histórico de militância nas categorias de base do cinema brasileiro, com duas passagens pela Associação de Documentaristas de São Paulo (ABD-SP) e duas outras pela ABD nacional, de onde foi para a diretoria do Congresso Brasileiro de Cinema, entre 2000 e 2002, e de lá para o Ministério da Cultura, no começo da gestão Gil.

Nessa entrevista, Nunes fala dos mecanismos utilizados pela Ancine para fomento à cadeia produtiva do cinema, do momento do cinema nacional, da relação entre a produção independente com a TV, de Ancinav e da digitalização das mídias audiovisuais.

Parece um feliz chavão dizer que o cinema nacional atravessa uma boa fase. Tal aquecimento, representado pelo número de produções, por seu reconhecimento internacional, pelo reconhecimento do público nacional e pelo aumento dos orçamentos das produções. Isso é só uma bolha, um momento, ou esse ritmo vai se manter?
Vai se manter, sim. Tanto o governo quanto o setor cinematográfico estão empenhados neste sentido. Tudo o que estamos vendo aí, que dá sustentação a este momento do cinema nacional, surgiu de uma relação entre o governo e o setor. Hoje o investimento anual, entre estatais, Ancine e Ministério da Cultura, através de editais e de leis de incentivo, está em torno de 200 milhões de reais. E neste universo, a produção é o melhor problema, pois hoje temos produção e agora o grande problema é a presença e circulação dos filmes nas salas. São necessárias agora políticas de difusão em parceira com a televisão aberta e fechada e o setor de vídeo, além de apoio às estruturas de distribuição e exibição de filmes em salas para levar o cinema nacional a um novo patamar.

Neste sentido, há também a novidade do aporte de recursos reembolsáveis para este mercado, através do BNDES. Por isso que este momento não só vai ser duradouro como é um momento de crescimento do mercado, tanto para os investimentos, diretos e indiretos, como através dos mecanismos criados para fomento, e também através das políticas, já discutidas, de fortalecimento da distribuição independente.

É possível “criar” um ambiente assim sem uma Ancinav?
Sim. É certo que nós estamos circunscritos à nossa competência de atuação, com atividades que dizem respeito ao auxílio à circulação, ao fomento e à fiscalização das atividades ligadas a produção de conteúdo audiovisual, em especial o cinema e atividades correlatas como a publicidade, mas é possível.

Em se definindo o que é o conteúdo brasileiro, em se definindo o que é produção independente, temos uma questão maior apenas que é a discussão da Lei Geral de comunicações, mas, dentro da nossa competência, é possível atuar e expandir bastante o mercado.

É possível expandir em um mercado que se sabe concentrado?
Sem dúvida há uma concentração muito grande de títulos, das majors, e uma briga muito intensa pelo espaço de tela. A gente tem de entender que as majors têm mudado sua estratégia no mercado mundial e que a gente tem de lutar por uma presença maior do nosso cinema.

Nós temos também de sair do cerco das duas mil salas, ampliar o mercado e aumentar a demanda por títulos brasileiros. Recentemente, dois ou três títulos distribuídos pelas majors tomaram todo o mundo. Ao mesmo tempo em que isto ocorre, há uma reação e as cinematografias nacionais têm se colocado contra isso. Nós estamos com uma produção consolidada, mas com uma série de distribuições aquém do que poderia ser feito. Mas, daqui até 2010 nós teremos uma participação crescente, também com o crescimento do mercado.

Vale mais para o Brasil tornar-se uma Bollywood ou uma Nigéria?
Nem uma coisa nem outra. O Brasil tem uma característica geográfica e nacional específica. No caso da Índia ela tem um grande mercado, também no Oriente, ali entre a própria Índia e todos aqueles “Istãos”, Curdistão, Paquistão, Afeganistão e afins. Ela tem uma característica própria, um nicho em uma grande região do planeta. No caso da Nigéria, é uma experiência nova, baseada na replicabilidade do meio digital e na ausência de uma indústria consolidada.

Aqui temos um setor audiovisual muito industrial mesmo, temos uma experiência própria, um grande mercado, mesmo com a escassez atual, as duas mil salas de exibição. À exceção do México, a América Latina tem uma organização que torna a produção local e a distribuição bem mais difícil do que no nosso caso. Nosso cinema é produzido ao modo da indústria ocidental, e temos potencial para atingir tanto o mercado interno e externo. A Argentina tem tido uma boa experiência internacional, mas falha ao atender o mercado local. Por isso que a nossa experiência é única. Como Gustavo Dahl diz, jabuticaba só tem no Brasil. É meio assim, a nossa experiência é muito própria, nós não pretendemos copiar nenhum outro modelo, pois nosso modelo é próprio, baseado em nossa própria história.

E qual a visão da Ancine em relação às políticas de financiamento e apoio do BNDES no setor, e como a agência pretende atuar em relação a este “reforço”? Investimentos como este são o sinal de que é possível vislumbrarmos uma estruturação do mercado cinematográfico nacional?
Contribuímos desde o começo para a formulação desta política, e o banco esteve muito aberto neste sentido. Nós só tínhamos fundos perdidos [investimentos que utilizavam fundos perdidos, com recursos que não voltam para os cofres públicos], através das leis de fomento, mas há setores que podem utilizar o capital de risco e nesse sentido são políticas absolutamente complementares, pensando as políticas do MinC, da Ancine, da Petrobrás e do BNDES.

Agora no BNDES até os produtores, com um bom capital, podem se servir de um recurso com risco, por terem certeza que poderão pagar, e toda esta cadeia de fomento está inserida no mesmo projeto, um projeto discutido também com os setores de TV e Cinema. Na TV, você tem ainda uma presença quase insignificante da produção nacional em cinema, mas há mecanismos que podem mudar isso, como a recente mudança em relação ao uso do artigo 1°a da Lei do Audiovisual ou o uso do artigo 3° da mesma lei pela TV. Há ainda ferramentas como o artigo 39, cada vez mais utilizado, para séries como Mandrake, que se tornou referência e produto de exportação. O imposto devido das empresas de TV também pode ser usado neste sentido, e as TVs têm procurado a Ancine no sentido de descobrir como adaptar seus modelos de negócios para utilizar estes impostos.

Esta aproximação das TVs é muito importante?
A presença do filme brasileiro na TV e no vídeo não chega, em valores, a 1% do total no setor. Em relação ao mercado de vídeo, primeiro temos de entender que foram mais de 10 anos sem um órgão regulador. Mas o setor de vídeo é um dos mais rentáveis da cadeia audiovisual, e o mercado explora esta rentabilidade, através da comercialização de produtos estrangeiros, que se apresentam com valores mais vantajosos para os distribuidores do que os produtos nacionais. É um mercado em que não há isonomia. Estamos estudando mecanismos que facilitem essa isonomia, ou então vamos ter de ficar sempre botando dinheiro em nosso cinema, que ficará espremido no mercado de salas de exibição, por falta de regulação e condições isonômicas de competição.

Que tipo de solução diminuiria esse afunilamento?
Algumas soluções: o fortalecimento do distribuidor brasileiro; um fundo setorial para subsidiar uma ou outra ação mercadológica, como subsídio a juros, que estamos tratando como benefício; e o diálogo com o mercado de vídeo, no sentido de facilitar a formação de pactos, e de uma regulamentação a partir destes pactos.

E na TV?
A gente tem feito esforços em várias direções, e com atores diversos. Um exemplo é o Documenta Brasil, realizado com o SBT, com obras que vão primeiro para a TV aberta, depois para as salas e vídeo. São casos em que é fomentado, por meio do Artigo 3º que permite reinvestimento de parte do imposto por remessa de lucros ao estrangeiro, ou seja, por royalties de filmes estrangeiros exibidos aqui pelas TVs – e a TV entra com a janela de exibição, que por si só é um valor muito grande, diga-se de passagem. Com este instrumento nós estamos dando a nossa cota de subsídio para que se estabeleça uma relação entre produtores independentes e as TVs. Com o investimento em fundos subsidiados e a intermediação na relação entre TVs e produtores independentes, creio que teremos boas novidades no audiovisual para o próximo ano, em um mercado que começa a exportar.

Existe cinema nacional sem cota de tela?
Não, nem cinema brasileiro, nem cinema francês, inglês ou americano. O cinema americano mesmo vive no mercado, detém 80% do mercado mundial, mas é financiado pelo governo. Não há cinematografia não financiada, por meio de subsídio ou impostos, como é o caso da França e da Argentina. O que existe é combinar fundo perdido com recurso de risco. Além disso, há, na França, uma cota de tela poderosa. Na Espanha, onde o mercado está focado na televisão, há no cinema também um mecanismo de cota de tela, um pouco diferente da nossa. E em todos estes países predomina, no mercado, o cinema americano. Países como a França e a Coréia do Sul têm cotas de tela praticamente draconianas para garantir seu mercado interno. Sem mercado interno você não movimenta a economia, não tem massa crítica, não tem base.

O nosso modelo de cota de tela não está superado?
Com certeza. No Brasil, a cota de tela é um sistema muito antigo, mas é uma proteção que existe em quase todos os países. É um instrumento de uma cinematografia que está em desvantagem, em uma situação de grande fragilidade no mercado. Nossa cota de tela é minúscula, e os setores de distribuição e exibição não tomam iniciativas contrárias, não vão além da cota de tela. Por isso é um instrumento regulador indispensável. Hoje a gente disputa, fora o circuito de arte, de 200 ou 300 salas, somente com o cinema americano, e de forma desigual. Alguns criticam a qualidade e apelo ao público do cinema nacional, mas não há qualidade sem demanda, senão o cinema é feito somente por necessidade de expressão, com um perfil bem mais autoral, e na medida do possível palatável pelo mercado.

No Brasil, não há ainda, para o cinema, uma produção com perfil industrial, mas nós estamos pactuando isso, ajudando a construir. Como a nossa cinematografia é muito frágil, a cota é uma medida indispensável e ainda será por muito tempo ainda. Outros setores da cadeia audiovisual, como a publicidade e o vídeo institucional, são bem mais fortes e não precisam deste mecanismo.

O cinema nacional é mais conhecido fora do país do que dentro?
O Brasil já teve uma presença maior, nos anos 60 e 70, no mercado internacional. Hoje nossa cinematografia é pouco conhecida, apesar de ter uma qualificação muito grande. Mas é certo afirmar que o brasileiro conhece muito pouco sua produção independente, e esse é o nosso principal esforço neste momento. Temos inclusive programas de exportação, políticas públicas para qualificar o produtor brasileiro no plano internacional. Estamos abrindo espaço para o independente, que por um lado tem a TV ainda fechada à sua produção, e por outro não conhecia os mercados internacionais, a política e as dinâmicas de distribuição.

Então a TV é essencial neste processo de valorização da produção independente?
Sem dúvida nenhuma, para fortalecer o conjunto da atividade produtiva e audiovisual no país. Ao mesmo tempo em que nós um esforço para dar protagonismo aos produtores que não têm estrutura, reconhecemos a TV, que é central na produção nacional e de exportação, seja a novela ou o mercado publicitário, que também pagam impostos. Aqui, porém, você tem uma série de mecanismos já criados, de estruturas que auxiliam e fomentam este mercado – o artigo 1°, 3°, 3ºA e o 25° da Lei Rouanet, para as radiodifusoras, editais de fomentos e linhas do BNDES. A TV tem um papel indispensável – alta tecnologia, horas de programação – então a gente tem responsabilidade em dar um respaldo pelo conjunto que a atividade representa, e entendemos a força dos grandes conglomerados, mas a prioridade ainda é o produtor independente. Nossa responsabilidade nesse meio é fazer filmes, mas filmes que circulem e possibilitem o desenvolvimento dessa cadeia produtiva e econômica.

O dinheiro investido a fundo perdido retorna para a própria economia, e como se dá este retorno?
É um erro dizer que esse é um dinheiro que vai e não volta. Você tem dificuldade para encontrar técnicos para produções audiovisuais hoje, e isto é sintomático de um aumento das produções nesta atividade. A atividade passa a criar uma dinâmica própria de recursos. Circula um grande volume de capital em nome da atividade do audiovisual, e o investimento em produção é 1% ou 2% do que circula nesta atividade, ou seja, é um investimento pequeno e que gera um grande ativo para o país. Essa é uma discussão muito obtusa, pois se foca em cima do produtor independente e se ignora o que realmente circula. Se você pegar o quanto o cinema estrangeiro circula, percebe que o recurso investido em produção brasileira é insignificante. É um grande ativo que geramos ainda, com o cinema, tendo um recurso econômico que se torna um capital simbólico, um capital que, depois de cumprido seu círculo econômico, tem função cultural. Outro ponto, ainda em discussão, é o uso de um escalonamento nos investimentos com fundo perdido, de acordo com as contrapartidas em “dinheiro bom”. Nós entendemos que não podemos tratar os diferentes como iguais. Um investimento num independente tem um impacto nas estruturas que alimenta toda uma cadeia produtiva, e gera depois um ativo para uma produtora. Nós temos isso com a agroindústria, tínhamos com a indústria de sapatos e com outras.

Queria tocar ainda em outro ponto: qual destino foi dado para o projeto da Ancinav?
É um projeto fundamental. Desafio qualquer um a apontar no projeto os itens que pegaram para colocar-nos como autoritários. É o tipo de grita que vem sempre dos mesmos segmentos, os “conteudistas” que atuam no mercado e adotam uma postura conservadora. Os mecanismos de proteção previstos eram fundamentais, em um ambiente de diversidade como este, para garantir os direitos à soberania e a autodeterminação dos povos, garantir a diversidade cultural. O projeto da Ancinav, diga-se de passagem, foi discutido com todo o setor audiovisual, amplamente. Depois fomos vítimas de um ataque contra o projeto. Neste momento, com o interesse de preservar a soberania do país e a diversidade cultural, o Congresso Nacional esta debatendo mais de um projeto de lei que toca neste ponto.

Outra questão sobre a qual começam a surgir dúvidas é a digitalização do cinema. Como a Ancine vê este processo?
Nós estamos, no mercado, com um processo concomitante de digitalização das TVs e com a necessidade de produção digital daqui para frente. O que é certo nesse momento é que as majors definiram um padrão técnico, que deve ser adotado, e que é um padrão de alto custo, que como toda indústria começa num preço mais elevado e tende a se adaptar às próprias disponibilidades do mercado. Para a definição dos padrões, há toda uma discussão de adoção de softwares e sistemas livres, e isso ainda não está definido. Mas nesse momento essa discussão é incipiente, o mercado de filmes em celulóide ainda deve continuar por um tempo. Estamos discutindo com os setores afetados, para definir o melhor para o país e para nos inserir nesta mudança. O que já está definido, por sua vez, é a operação, quase que experimental, dos grandes distribuidores brasileiros. O mundo ainda não definiu qual, ou quais, serão os padrões majoritários, depois de anos de discussão e produção. A discussão tem se arrastado por 20 anos, com um padrão desenvolvido pelos japoneses já em 1989, e experimentos de George Lucas desde 1990, mas sem uma definição da indústria americana ninguém deve começar a produzir em larga escala. Temos nos adaptado, para não ficarmos isolados e não criarmos dificuldades para circulação da nossa produção por conta do padrão.

E a digitalização da TV, terá impacto neste mercado? Como atua a TV Pública neste momento de mudanças?
Não tenha dúvidas. Hoje, a produção em digital, mesmo a produção em um bom padrão, como o broadcasting, é bem acessível. O que se precisa é criar a demanda. Faço parte do grupo executivo da TV pública, e ela será uma grande demandante da produção independente. A produção para esta e outras mídias em digital vai gerar um aumento muito significativo neste sentido. Nós temos a produção, desde o documentário, do cinema de animação, da teledramartugia, do próprio cinema, até produções esportivas, em divisões regionais e modalidades pouco exploradas pela televisão comercial, ativos alheios da grande mídia. Tudo isso pode chegar, com multi-programação, com WEB-TV, com TV universitária, etc. A digitalização vai mudar substancialmente o conceito que a gente tem da TV como ela é, pois trabalha muito mais numa lógica de web do que de radiodifusão, que já é adotada no mundo todo. E, fora do Brasil também, a produção independente é quem sustenta a atividade audiovisual, até por manter uma alta qualidade com um custo menor, e a TV apenas gerenciando esta programação.

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