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A nova regulação da TV por assinatura

Diminuir o preço da TV por assinatura brasileira, ampliar o acesso à informação e estimular a produção de conteúdo audiovisual nacional são os principais objetivos do deputado Jorge Bittar (PT/RJ), ao elaborar o projeto de lei que cria o novo Serviço de Acesso Condicionado. Por sua proposta, os canais de TV paga poderão ser distribuídos por qualquer empresa, inclusive de telecomunicações, nacional ou estrangeira. A produção e a programação também não teriam restrição ao capital. Mas os pacotes de canais só poderiam ser comercializados por empresas com o controle nacional. Além disso, tanto em um único canal como em um pacote de canais, pelo menos 10% de tudo que é transmitido terá que ser ocupado pelo conteúdo audiovisual nacional.

Confira a entrevista concedida pelo deputado à TeleSíntese.

Tele.Síntese – A sua proposta de projeto de lei convergente irá  tratar da radiodifusão?
Jorge Bittar – É um projeto de comunicação de massa, só que restrito aos serviços pagos. Com ele, está sendo criado o Serviço de Acesso Condicionado. Pretendo quebrar o paradigma da atual regulação, centrada na plataforma tecnologócia, e transformar a TV por assinatura em um serviço neutro do ponto de vista da tecnologia. A intenção é abrir a cadeia de valor que envolve de um lado o audiovisual e de outro lado as telecomunicações. 

A TV por assinatura no Brasil não pegou. Nós temos hoje menos de cinco milhões de assinantes e uma penetração entre as menores do mundo, mesmo comparada com países com PIB per capta iguais ao nosso.  No Brasil, enquanto a penetração de TV paga é de apenas 8%, na Argentina, a TV paga alcança 54% da população; no Chile, 25%; no México, 23% e na Venezuela, 19%.

A que você atribui essa diferença?
Bittar – Aos preços. A TV paga no Brasil é muito cara. Conforme levantamento da Ancine, o preços dos canais comerciais (excluídos os canais carregados pelo must carry) são muito mais altos do que os cobrados em outros países.  Comparando-se os pacotes de programação de países como Portugal, Espanha, Argentina com os do Brasil, a diferença de valores é muito grande. Enquanto aqui o menor preço encontrado é de R$ 1,92 e o maior, de R$ 6,84 o canal, na Argentina o preço mínimo é de R$ 0,63 e o máximo, de R$ 0,80. Na Espanha, de R$ 1,51 a R$ 2,20 e em Portugal, de R$ 1,07 a R$ 1,24. 

Nesses valores estão embutidos os impostos?
Bittar – Sim, pois esse levantamento tem como base o que paga o usuário final. Mesmo com a carga tributária brasileira, os preços no Brasil são muito mais altos, provocados pela falta de escala e falta de competição.

Não há diferentes operadores atuando no segmento de TV por assinatura?
Bit
tar – Constatamos que a marca Net detém 83% desse mercado, mesmo quando se considera todas as tecnologias (cabo, MMDS e satélite).  A Sky, por exemplo, que presta serviço de TV paga via satélite,  e que é controlada pelo capital estrangeiro e não é da Net, carrega os canais da Globosat. A Telefônica também firmou acordo com a Globosat.

Para que possamos sair desss cinco milhões de assinanates para 30 milhões, que seria um número razoável para o mercado brasileiro, precisamos criar um ambiente de maior competição na produção, programação, no empacotamento e na distribuição.

Por que a sua proposta concentra-se na TV paga e não trata da radiodifusão?
Bittar –  A radiodifusão, até por preceito constitucional é tratada de maneira distinta dos demais serviços. E, até para não suscitar discussão sobre a constitucionalidade do projeto,  decidi não tocar na TV aberta e me concentrar na TV paga.  Estou propondo a revogação da Lei do Cabo que tem a marca tecnológica, ou seja, é só para o cabo. Proponho também a supressão dos artigos na Lei Geral de Telecomunicações que remetem à essa lei; e quero acrescentar um dispositivo que torna sem efeito as normas contratuais do Serviço Telefônico Fixo Comutado (o STFC), que proíbem as teles de prestarem esse serviço.

Como se dará a reoganização do serviço?
Bittar – Qualquer empresa de telecomunicações poderá prestar o serviço de TV por assinatura. Ao revogar a Lei do Cabo, proponho também a simplificação das licenças. Hoje, tem que se fazer licitação, e as licenças se dão sob a forma de concessão, o que não faz qualquer sentido. As redes fixas não são um bem escasso. As únicas limitações continuarão ocorrendo com as freqüências, administradas pela Anatel.

Assim, os atuais serviços de TV a Cabo, de MMDS, de DTH e de TVA passarão a ser um único Serviço de Acesso Condicionado, explorado em regime privado, sob autorização, e não mais concessão.

Quem tiver a licença desse serviço, poderá prestar os demais serviços de telecomunicações, como voz e dados?
Bittar – Quem pode mais, pode menos. Se a licenciada pode levar sinais de vídeo, por que não levar os demais sinais?

Há restrições de capital para a produção nacional?
Bittar – A minha proposta é de desverticalização da cadeia de valor. Por isso lida com a produção, programação, empacotamento e distribuição do conteúdo audiovisual.   Na produção, entendo que não deve haver restrição ao capital,  ao ingresso de qualquer grupo econômico e também nenhuma restrição à gestão. As únicas limitações devem ser as mesmas de lei geral de telecomunicações, ou seja, os produtores devem ser empresas constituídas sob as leis brasileiras.

A sua proposta prevê, então, a liberalização total do setor?
Bittar – Não. Apenas na produção e distribuição do conteúdo audiovisual. No empacotemento desses canais, aí, sim, terá que ser uma empresa sob o controle nacional, gerida por brasileiros, mas aberta à participação de qualquer grupo de qualquer segmento econômico. É no empacotamente que se deve assegurar a participação do conteúdo nacional.

Tanto no empacotamento como na programação as empresas deverão ser geridas por brasileiros para preservar as responsabilidades editoriais exclusivas, previstas na Constituição.

Pela sua proposta, então, uma tele, se quiser distribuir os canais de TV paga, terá que comprar os pacotes de canais de uma empresa nacional?
Bittar – Sim, ou ela compra de outra empresa, como a Globosat, por exemplo, ou ela entra como sócia minoritária em uma empresa nacional que vai empacotar e comercializar os canais. Fiz essa opção para preservar a identidade e a cultura nacionais. 

Como ficará a relação do produtor nacional com esses diferentes agentes?
Bittar – O produtor vai vender a sua produção ao programador, que desenha a grade do canal. Esse programador pode ser também uma empresa estrangeira, mas gerida por brasileiros. O programador organiza os canais e o empacotador junta esses canais.  

O que é “produção nacional”?
Bittar – Para identificar o conteúdo nacional, uso o mesmo critério adotado pela lei da Ancine, ou seja, tem que ser produzido por empresa com maioria de capital brasileiro (há uma quantidade de técnicos que também precisam ser brasileiros), ou em regime de co-produção.

Uso também a mesma lei da Ancine para definir o que é produção independente. O independente não tem vínculo e não pode ter contrato de exclusividade com o programador. E, para a programação, estou estabelecendo que 10% da teledramaturgia deverá ser nacional.

Isso significa que os canais estrangeiros também terão que cumprir essa cota. Ela não terá que ser atendida, no entanto, pelos canais com documentários ou pelos canais especializados, mas sim pelos canais eminentemente comercais. Exemplo: na HBO, 10% de sua programação terá que conter o conteúdo nacional. Na Fox ou TeleCine, também. Todos os estrangeiros terão que cumprir essa cota.

No projeto, vou também incorporar uma decisão já tomada pelo Cade, de que os canais têm que ser oferecidos, em condição isonômica, para todos os distribuidores.

E para o empacotamento?
Bittar – Também haverá cota mínima: 10% dos programas empacotados devem ser nacionais. Ou seja, se forem oferecidos 100 canais, 10 deles têm que ser de brasileiros, pelo menos. Mas só essa cota não basta. Defino também que, no horário nobre (que vai das 6 horas da manhã até a meia-noite), 40% dos conteúdos devem ser nacionais. Dessas 50 horas semanais com conteúdos nacionais, 21 horas terão que corresponder à teledramaturgia, 17 horas à produção regional, 21 horas à produção independente e 7 horas  à programação educativa.

Essa cota irá considerar apenas os canais comerciais, ou os públicos, como TV Câmara, Senado, etc., poderiam ser contados para completar a cota?
Bittar – Não. A cota deve ser aplicada levando em consideração somente os canais comerciais.

Há restrições à publicidade?
Bittar – Sim. Estou propondo um máximo de 10% de publicidade e 15% em cada hora, limitado à metade em programações infantis. Esse percentual é a metade do que prevê, hoje, o Código Brasileiro de Telecomunicações, que regula a TV aberta. Não se pode descapitalizar as TVs abertas.

Na distribuição, continuará a existir a figura do must-carry, como ocorre hoje com a TV a cabo?
Bittar – Sim. Com as especificidades de cada tecnologia, já que , por exemplo, na transmissão via satélite (o DTH), se a operadora tiver que distribuir os programas de cada geradora aberta de TV, pode tornar a operação inviável, já que a sua atuação se dá em todo o território nacional. Também não poderia exigir o must carry para o MMDS analógico, que tem poucos canais, mas no digital, não vejo problemas. Caberá à Anatel regulamentar essa questão.

Mas há segmentos que defendem o fim do must-carry, porque prejudicaria justamente a produção nacional.
Bittar – Entendo que o must-carry está dando certo, e por isso, não vou mexer. Mas, estou aberto à discussão, sobre se ele deveria ser remunerado ou não.

Com esse projeto, o que almeja alcançar?
Bittar – Uma regulação convergente, neutra tecnologicamente. Com esse novo marco, acredito estar garantindo o acesso isonômico à progamação nacional; estimulando a competição no mercado de distribuição; incrementando a produção nacional de audiovisual, diminuindo o  custo da assinatura do serviço e democratizando o acesso à informação.

O debate necessário das políticas de comunicação

Para debater políticas e rumos das telecomunicações no Brasil, o Correio da Cidadania conversa com o jornalista Samuel Possebon, especialista na área há 14 anos, atual diretor editorial da Converge Comunicações e pesquisador convidado do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (Lapcom/UnB). Possebon, além de debater a questão das concessões de radiodifusoras e a democratização da comunicação no Brasil, faz sua análise do impacto do crescimento de habitantes com acesso à Internet no país, demonstrado na recém-divulgada Pesquisa Nacional por Amostra de Domícílios (PNAD) 2006.  

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Houve algum avanço em tempos recentes em relação às discussões sobre mídia no Brasil?
Samuel Possebon – O que sinto que vem acontecendo é que, cada vez mais, a comunicação é discutida pela sociedade de alguma maneira. Embora a imprensa não discuta necessariamente todos os temas relacionados à telecomunicação – especialmente a grande imprensa, que não gosta muito dessa discussão –, alguns temas são inevitáveis. Desde que houve a privatização da Telebrás, há idéias sendo expostas, contrapontos sendo colocados.

Com a Lei Geral de Telecomunicações houve um início desta discussão; depois, tivemos as discussões sobre leis de comunicação de massas, sobre a TV digital, sobre a Ancinav. Esses temas relacionados à área de comunicação freqüentam não só a mídia alternativa – que cobre o assunto com bastante ênfase – e a imprensa especializada, mas também aparecem na grande imprensa. Claro que existem vieses, jornais e televisões têm um ponto de vista sobre isso que não conseguem disfarçar, pois obviamente existem interesses econômicos envolvidos.

Acredito também que a tendência é que isso se amplie. À medida que a comunicação passa a fazer cada vez mais parte da vida das pessoas, no ambiente da sociedade de informação, em um ambiente digital onde as pessoas convivem mais com isso, esses temas vão ser cada vez mais comuns.

Tais discussões trouxeram avanços para a democratização das telecomunicações no país?
S.P. – Depende de como se quer caracterizar a democratização. Se for caracterizá-la como a consciência em relação a problemas da comunicação, sim, houve um avanço.

Agora, se considerarmos a democratização como mudanças estruturais significativas no sistema de comunicação – que significam a introdução de novos agentes, a possibilidade de novas vozes e mais pluralidade –, aí ainda existe muito a se fazer.

Nesses últimos dez anos, surgiu um elemento que é absolutamente significativo – e talvez o mais significativo da história da democratização das comunicações e da comunicação em si –, a internet. Isso revolucionou a mídia, criou um ambiente totalmente novo para a troca de informações. É um processo ainda em andamento, ainda em fase de ajustes, mas que, de qualquer maneira, foi introduzido. Então, não podemos dizer que a mídia continua concentrada e que a sociedade continua carente de meios de informação como há dez anos; seria injusto até com a história da humanidade falar isso, pois a internet proporcionou uma revolução.

Em relação aos meios de comunicação tradicionais, a uma mudança estrutural na forma de se fazer o negócio de comunicação no Brasil e de se encarar a comunicação diante de aspectos como cidadania e direitos humanos, as coisas melhoraram, mas ainda existe também muito a se fazer.


Você concorda que há uma oposição das mídias tradicionais e de seus defensores no Legislativo em relação às novas possibilidades que a Internet traz?
S.P. – A minha tese é que a toda ação há uma reação; isso vale para a física e também para o mundo das comunicações. Naturalmente, grupos que estão estabelecidos há muito tempo, que têm o seu modelo engessado e que têm interesses econômicos a defender, reagem de uma maneira mais ou menos agressiva a qualquer variável nova que seja colocada nesse cenário, e a internet foi uma variável nova não só no Brasil como no resto do mundo.

Houve uma adoção da internet por alguns dos grandes grupos de mídia. Outros estão aprendendo a lidar com isso e outros não conseguiram aprender a lidar com essa nova realidade; naturalmente, esses vão ser superados, uma vez que nada é eterno, nem os grupos de mídia.


De acordo com a recém-divulgada PNAD 2006, o percentual da população com acesso à internet aumentou consideravelmente. Em sua opinião, quais as razões para isso?
S.P. – Embora o número de habitantes que possui acesso à internet tenha aumentado, ainda falta muito para universalizar o acesso à internet. A exclusão digital ainda é brutal, tanto no Brasil como na maior parte dos países – fora aqueles considerados desenvolvidos, onde isso já está mais ou menos equacionado.

A evolução da internet se deve ao fato de ser um meio de comunicação muito interessante para as pessoas, não só como fonte de informação mas também como maneira de comunicação interpessoal. Programas de mensagens instantâneas e redes de relacionamento são algo que jornais e televisões não disponibilizavam para seus usuários; tudo isso são elementos novos no mundo da comunicação.

Justamente por ser tão interessante, a tendência é que a internet cresça ainda mais. As novas gerações que estão crescendo acostumadas às novas tecnologias vão adotá-las cada vez mais, indiferente de nível sócio-cultural. Existem experiências claras que dizem isso; mesmo que o usuário da Internet venha de camadas sociais mais baixas, com menos acesso à informação e à cultura "erudita", ele também domina os novos meios.

O crescimento do número de usuários de internet no Brasil também ocorreu devido a um barateamento não só do custo do computador em si, por conta de políticas de desoneração fiscal, mas também do custo da conexão. Há também um terceiro fator, que é a recuperação da renda da população nos últimos quatro ou cinco anos. Isso se reflete na popularização de um meio que agrega muito às vidas das pessoas.


As empresas provedoras de conexão banda larga – normalmente pertencentes ao setor de telefonia – irão ocupar o espaço de empresas como provedoras de TV a cabo, por oferecerem soluções similares?
S.P. – Acredito que não, pois são coisas que se complementam. Existem questões de custo e de investimentos que precisam ser levadas em conta quando se fala na substituição de TV a cabo por TV via internet, por exemplo.

O que deverá acontecer no futuro – e como futuro digo daqui a dez anos – é que teremos um "mundo IP", que é o protocolo de dados por trás da internet. Independente da maneira de conexão que você tenha, o conteúdo chegará por esse mesmo protocolo; haverá um processo de integração das mídias e dos serviços. Ter TV a cabo deixará de ser exclusividade daquele que tem cabo, passando a ser disponível também para quem tem redes de telefonia fixa ou linha de celular, por exemplo.


Qual a sua opinião sobre a adoção do modelo japonês de TV digital no Brasil?
S.P. – De um ponto de vista tecnológico, não há o que se questionar. As inovações que estão se desenvolvendo em cima da tecnologia japonesa vão garantir que tenhamos no Brasil uma TV digital com a melhor qualidade possível.

O que não houve, e que é uma pena que não tenha acontecido, foi a discussão em relação ao modelo da televisão brasileira. Hoje, o processo de digitalização tende a perpetuar o modelo atual da televisão aberta; se o modelo é bom ou ruim, se é excludente ou não, se é plural ou não, é o que faltou ser discutido.

Essa discussão, que deveria ter ocorrido no início do debate sobre a TV digital no país, em 1999, 2000, não foi feita agora por conta da pressa em se tomar uma decisão em um momento no qual a transmissão de TV digital é necessária devido a uma questão de inovação tecnológica.


Um dos principais pontos levantados pelo governo FHC na época da privatização da Telebrás foi que, com a passagem das redes de telefonia à iniciativa privada, haveria uma quebra de monopólio que beneficiaria a concorrência e, conseqüentemente, o consumidor final. A possibilidade de fusão entre a Telemar e a Telecom Brasil, duas grandes empresas do ramo, não traria de volta um monopólio no setor?
S.P. – Eu tenho minhas dúvidas se a privatização foi feita para quebrar monopólios; acredito que foi feita, na verdade, para cobrir uma necessidade de caixa do governo, que estava com a corda no pescoço na época e precisava vender o que tivesse pela frente como maneira de conseguir dinheiro para fechar as suas contas.

Se nesse cenário houve um modelo de privatização que pregava a pulverização do mercado, com pelo menos quatro grandes concessionárias operando os serviços de telefonia, hoje isso é aparentemente insustentável. Não há viabilidade financeira para que essas empresas sobrevivam de maneira independente, a concorrência global é muito violenta. A concentração em si não é necessariamente ruim, pois Telemar e Telecom Brasil não competem entre si, uma não entra na área da outra. A competição virá da internet, de outros meios de se comunicar.

Do meu ponto de vista, o que se deve discutir na fusão é saber quem é que vai ser o responsável pela empresa – se vai ser entregue a empresas brasileiras, a empresas estrangeiras, se o Estado vai ter parte ou não. É hora de se repensar o modelo e de entender o que é que o Brasil precisa encontrar em relação ao novo tempo das comunicações e qual papel quer desempenhar neste processo.


No final deste ano, vencem dezenas de concessões de rádios e TVs no Brasil. Você acredita que o processo de renovação destas concessões, tradicionalmente pouco transparente, precisa ser acompanhado mais de perto?
S.P. – Sempre dizemos que falta transparência e independência na análise desse processo, mas os responsáveis por isso são os deputados. Ao criticar isso, critica-se o próprio modelo democrático brasileiro, pois representantes eleitos pela população são os que decidirão por isso no Congresso.

Nesse momento de renovação das concessões, para simplesmente não baterem o carimbo e passar pelo processo sem nenhuma discussão, vale a pergunta: a radiodifusão é um serviço público ou não? Se for um serviço público, a que obrigações está submetida? Ao analisarmos outros serviços públicos, como a energia e o saneamento básico, vemos que em todos eles as prestadoras de serviço têm obrigações. Na radiodifusão, quais as obrigações que os prestadores têm? Esse é o questionamento que não foi feito.

No Brasil, não existe ambiente para que simplesmente não se renove uma concessão por achar que as comunicações não são democráticas no país. Isso é uma discussão que não levaria a nada a não ser a um clima de conflito; no entanto, podemos aproveitar o momento para fazer algumas perguntas e obter algumas respostas, principalmente em relação ao papel da radiodifusão no Brasil, se está prestando esse papel com adequação ou não, se está cumprindo os objetivos como uma prestadora de serviços públicos ou se é um negócio privado, que deve ser tocado pela iniciativa privada da maneira que quiserem.

A responsabilidade social do jornalismo

O jornalista Eugênio Bucci deixou a presidência da Radiobrás em abril último certo de haver cumprido o compromisso assumido com o presidente Lula, que o convidara para o cargo quando de sua eleição para o primeiro mandato, em 2002. Com a experiência acumulada em redações e na universidade, e agora no serviço público, Bucci reuniu massa crítica suficiente para produzir reflexões tão pertinentes quanto as que oferece na série "A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias", que o Observatório publica a partir desta edição.

A tese central do texto é que o jornalista e o jornalismo têm o dever de ser livres de toda e qualquer amarra que comprometa sua independência. De outra parte, Bucci também sustenta ser "vital que a imprensa debata a imprensa", embora, no Brasil, ainda estejamos longe de "tratar o direito à informação no nível dos demais direitos, como a educação ou a saúde". "Onde esse direito não se faz respeitar integralmente, a liberdade necessária para bem informar a sociedade não pode ser exercida plenamente", afirma.

O texto, como se verá, não sugere fórmulas prontas nem receitas universais, mas reafirma o papel da mídia, da imprensa e de seu princípio ativo, o jornalismo, como fatores decisivos no processo de aperfeiçoamento da democracia. E reivindica mais qualidade ao jornalismo praticado nos meios de informação como condição essencial para a manutenção de seu compromisso histórico com o interesse público. Por isso mesmo a mídia deve submeter-se ao exame continuado exercido pela sociedade: "Quanto mais debatida publicamente, melhor é a imprensa", diz Bucci, que concedeu ao Observatório da Imprensa a entrevista a seguir.

***

Por que deixou a presidência da Radiobrás no início do segundo mandato do presidente Lula? Continuar à frente da autarquia não seria importante para aprofundar as mudanças que promoveu nos quatro anos e três meses de sua gestão?
Eugênio Bucci – Eu já havia anunciado, até mesmo publicamente, desde 2005, que não continuaria no cargo após o primeiro mandato. No final de 2002, após as eleições presidenciais, eu enxergava uma grande abertura, uma oportunidade para imprimir mudanças de cultura na comunicação de instituições públicas. As portas de transformação me pareciam abertas. Não sei se era uma visão sensata, mas o fato é que tive a sorte de contar com uma equipe de gente reconhecida, alguns com grande experiência e já consagrados, como Celso Nucci, Carlos Knapp, José Alberto da Fonseca, Henri Kobata, Pedro Frazão, Bruno Vichi, Roberto Gontijo, Gustavo Krieger e depois José Roberto Garcez, que ficou na presidência da Radiobrás após a minha saída, Flávio Dieguez, Helenise Brant, além de jovens jornalistas como Rodrigo Savazoni, André Deak, Aloísio Milani, Spensy Pimentel e outros, que me ajudaram a mudar o que foi possível mudar.

Mudamos muito. Tentamos melhorar os serviços prestados aos cidadãos. Do começo ao fim, trabalhamos sob a convicção de que o direito à informação de que cada brasileiro é titular tinha de estar acima das causas partidárias do governo. Em parte, conseguimos e o projeto foi reconhecido como sendo justo. Cumpri até o fim meu compromisso com o presidente Lula e entreguei o cargo no dia 31 de outubro de 2006. A minha saída, porém, tardou um pouco. Fiquei até o momento em que o presidente designou um novo ministro para a área, que foi Franklin Martins, com quem me entendi bem. Levei a ele o projeto de fusão da Radiobrás com a TVE, que ele levou adiante. Claro que ainda há mudanças necessárias. Há desafios. Mas a minha parte está feita.

Que balanço faz de sua passagem pelo governo e de ter trabalhado numa área tão estratégica quanto a comunicação? Qual sua maior alegria e a maior frustração?
E.B. – Não me arrependo de ter ido para a Radiobrás. Não me arrependo de ter permanecido por quatro anos, três meses e vinte dias na função. Não me arrependo de ter saído quando foi a hora. Aprendi muito, mas muito mesmo. Sou grato por isso. Acho que a minha maior alegria foi constatar que é possível, numa empresa pública, informar o público de modo objetivo, sem permitir que as pressões partidárias contaminem o noticiário. O governismo, no meu modo de ver, é um partidarismo ainda mais grave, é um partidarismo com agravante. Conseguimos varrer os piores vícios do governismo na Radiobrás. Às vezes, escorregamos, e quando isso aconteceu tentamos reconhecer os erros e corrigi-los publicamente.

A maior frustração foi não ter conseguido mudar o regime de obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil, um tipo de comunicação oficial que, além de anacrônico, é ridiculamente inútil. Cheguei a defender publicamente a flexibilização do horário obrigatório, ao lado do então presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo. Não adiantou nada.

Você se auto-impôs uma quarentena quando saiu da Radiobrás. Por que o fez e para que lhe serviu o período de recolhimento?
E.B. – Só agora estou saindo desse isolamento. Um período de silêncio que me fez bem. Embora a lei não exija quarentena para o cargo que ocupei, senti que incorreria em alguma ordem de conflito de interesses se assumisse alguma outra função imediatamente. Eu me sentiria melhor se desse um tempo. E foi o que fiz. Depois, eu queria trabalhar em alguns textos que tinha deixado pendentes. Este, sobre o dever da liberdade, que o Observatório passa a publicar a partir de hoje, em quatro capítulos, é um desses trabalhos. Aproveitei o tempo para isso.

O tempo em que esteve na Radiobrás coincidiu com o incremento da popularização, no Brasil, das tecnologias de informação e comunicação e com a maior relevância do público (leitor, ouvinte, telespectador, internauta) como personagem atuante – muitas vezes protagonista – no processo da comunicação. Como, e com que resultados, as novas mídias foram incorporadas pelo jornalismo praticado na Radiobrás?
E.B. – Essa pergunta vem a calhar, porque nesse meu texto, "A imprensa e o dever da liberdade", que é publicado agora pelo Observatório, não trato diretamente das novas tecnologias. Nele, eu me concentro no papel do jornalista, qualquer que seja o suporte, como dizem, se papel, internet, televisão, rádio. Tento frisar o dever de ser livre. Alguns afirmam que com as chamadas "novas mídias" o lugar convencional do jornalista se dilui, e que surge uma espécie de parceria entre o profissional e o cidadão leigo na condução da reportagem, pois todos podem atuar na rede de computadores, online, ao vivo, no calor da hora. Do ponto de vista das possibilidades técnicas que alargaram os alcances da interação entre os sujeitos – as redes independentes, as manifestações na internet, os blogs e assim por diante – isso é verdadeiro. Mas, do ponto de vista do zelo que o profissional da imprensa precisa ter em relação à independência, garantindo confiabilidade para os relatos que leva a público, não houve alterações, embora na superfície tudo se mostre meio embaralhado. Ao contrário, a independência, nesse contexto, é mais crucial do que antes.

No texto, procuro falar sobre a atualidade do tema da independência. É verdade que, em matéria de novas tecnologias, a nossa experiência na Radiobrás avançou consideravelmente, apesar da escassez de recursos. Por exemplo: a Agência Brasil, sob a chefia de Rodrigo Savazoni, inaugurou, em junho de 2006, um novo projeto gráfico e uma nova plataforma, inteiramente baseada em Creative Commons, um novo regime de compartilhamento de conteúdos, criado por Larry Lessig, de Stanford. A Agência Brasil foi uma das primeiras a adotar esse protocolo no Brasil, em linha com as grandes modificações que o ambiente da comunicação vem sofrendo.

A propósito, há um bom livro, The Wealth of Networks, de Yochai Benkler, de Yale, ainda não traduzido no Brasil, que reflete com precisão e originalidade sobre esses novos cenários. O livro vem sendo debatido numa seqüência de seminários, no Instituto de Estudos Avançados da USP, que são coordenados pelo professor Imre Simon. A Agência Brasil está familiarizada e sintonizada com essas novas idéias. Abrir os conteúdos, estabelecer links horizontais com outros portais, sites e blogs são desafios que contaram, no Brasil, com o pioneirismo de equipes da Radiobrás. Rodrigo Savazoni e André Deak, um outro jornalista da Agência, já trataram disso em artigos publicados no Observatório da Imprensa [ver "Notas sobre a construção de um jornalismo livre" , "Nova prosa para novas mídias" e "O bom e velho jornalismo está morrendo"]. O resultado do trabalho que eles realizaram não poderia ter sido mais animador. A Agência conquistou alguns prêmios de jornalismo – como aconteceu com outros veículos da Radiobrás – ao mesmo tempo em que abriu a sua produção para que outros a utilizassem com mais rapidez e flexibilidade, mas sem permitir que seu noticiário fosse capturado por interesses engajados do governo ou dos movimentos sociais. Ela manteve sua autonomia. Aprofundou-a. Inovou também no plano da linguagem. Algumas coberturas contavam com infográficos animados, com vídeos, com uma integração radical entre texto, som, imagem, design. Foi uma experiência bem satisfatória.

Como avalia a influência que a crescente interatividade e a possibilidade ampliada de acesso a fontes alternativas de informação têm exercido sobre a atividade jornalística? O jornalismo brasileiro, impresso e eletrônico, tem dado conta de acompanhar essa nova realidade? E.B. – Com a internet, o cidadão opina e interfere sobre o noticiário a quente. Ele tem oportunidades para entrar no noticiário. Com isso, claro, a rede de fontes potenciais também se amplia, o que nos traz uma razão a mais para se fugir daquele vício antigo de entrevistar sempre a mesma meia dúzia de fontes para os mesmos assuntos. Em nosso programa de qualidade editorial, liderado por Celso Nucci, procurávamos exigir pluralidade e qualidade em matéria de fontes, para além do lugar-comum. Acho que vale mencionar que adotamos parâmetros éticos e editoriais, oficiais e públicos – nós os publicamos na internet –, que proibiam o uso de informações em off. Fora isso, a Agência Brasil inaugurou, no início de 2007, a coluna do ouvidor, que é o jornalista Paulo Machado. Com base nas opiniões dos chamados internautas, ele escreve semanalmente uma crítica pública do trabalho da Agência. Para suas avaliações, ele pauta pelos parâmetros do conjunto dos documentos oficiais da Radiobrás, como os planos editoriais e os padrões éticos de objetividade e apartidarismo.

Uma crítica corrente ao desempenho da mídia no Brasil é a de que os meios de comunicação, sobretudo a dita "grande mídia", têm-se comportado mais como partidos políticos do que como instâncias promotoras do interesse público. É perceptível, ademais, certa compulsão em desqualificar a mídia como instrumento da democracia. Qual o sentido disso? O fato de a mídia pouco discutir a si própria contribui para distorcer as avaliações correntes sobre seu papel na sociedade?
E.B. – De fato, a "crítica de mídia" está virando um esporte nacional entre nós. O que é bom, apesar de alguns momentos quase humorísticos. Faço apenas um ou dois comentários. O primeiro, diz respeito ao método. A expressão "a mídia" talvez seja ampla demais e nos conduz a uma generalização pouco eficaz. Mesmo a expressão "a grande mídia" não é útil nesse sentido. O segundo diz respeito ao que há de positivo quando a imprensa discute a imprensa. Eu diria que todo veículo jornalístico tem a ganhar quando debate publicamente os seus procedimentos, da maneira que lhe for mais adequada. Nisso, é possível que ainda tenhamos que avançar um pouco mais no Brasil. Quanto ao resto, o primeiro dever do jornalismo é ser livre. Ser explicitamente livre. Para começar, ele precisa ser livre do governo, qualquer governo. Nessa matéria, chamo atenção para um ponto sobre o qual temos falado pouco: o grande volume de verbas públicas que vão parar nos veículos comerciais como anúncios publicitários é um fator preocupante. Nos órgãos de imprensa mais vulneráveis, esse dinheiro – ou a sua ausência – pode ser uma pressão sobre a linha editorial. Esses recursos tendem a congregar um conjunto de veículos que se afinam em demasia com as causas dos governos – federal, estaduais ou municipais –, o que é algo tradicional no Brasil e não é nada saudável.

De minha parte, eu me sinto mais tranqüilo com uma imprensa que às vezes pode até cometer excessos, mas os comete com franca independência em relação aos governos, do que me sentiria com uma imprensa toda ajuizada que sempre apoiasse os governantes. Claro que a imprensa deve ser elegante, equilibrada, justa, objetiva etc., ao menos do meu ponto de vista, mas seu primeiro dever é ser independente. Financeira e editorialmente. Se alguns veículos querem bancar partidos políticos, desde que não o façam com dinheiro público, e desde que não sejam objeto de concessão pública, como é o caso das emissoras de rádio e TV, estão no seu direito. Se carregarem nas tintas, se distorcerem, cedo ou tarde perderão credibilidade e pagarão por isso.

É indiscutível que a mídia exerce um papel central nas sociedades contemporâneas e, também por isso, tem o poder de pautar agenda pública. Esta constatação implica a sugestão de que a este poder deva corresponder um contrapoder, e que a atividade dos meios de comunicação deveria ser submetida a algum tipo de regulação. Como isso poderia se dar? Quem deve vigiar o poder exercido pela mídia, e como?
E.B. – O público deve vigiar a mídia. As associações da sociedade civil devem fazê-lo. Os partidos políticos, os acadêmicos, os jornalistas, os sindicatos, os próprios meios de comunicação devem vigiar a mídia. Quanto mais debatida publicamente, melhor é a imprensa. O Estado e o governo têm que ficar fora disso. Eles precisam ficar longe de qualquer tentação de vigiar ou de regular o conteúdo dos noticiários. Se desobedecem esse protocolo tácito que é um pressuposto da democracia, agem mal. As autoridades devem explicitamente afastar qualquer aparência de que querem vigiar a imprensa. A velha fórmula continua válida: a imprensa vigia o poder; jamais o contrário. Claro que isso vale não apenas para o poder político, mas vale também para o poder econômico e também para o poder concentrado nos meios de comunicação: a imprensa deve vigiá-los. Acima de tudo, porém, a velha fórmula vale para o poder político. É em relação a ele que o dever da liberdade começa.

O desenvolvimento dos meios de comunicação e o aprimoramento jornalismo deram-se em concomitância com a consolidação dos valores universais da democracia. Concorda que uma mídia – e uma atividade jornalística – atuante e crítica é condição sine qua non para a sobrevivência de uma sociedade democrática? Como avalia as críticas acerbas de importantes atores sociais à atuação da mídia que temos?
E.B. – Concordo integralmente com a assertiva da pergunta. Sobre as críticas que são feitas por atores sociais à imprensa, são da normalidade. Devem ser debatidas em público. Quanto mais, melhor.

A decisão do governo federal de construir uma rede de TV pública suscitou a convocação de um inédito Fórum Nacional das TVs Públicas, derivou para o processo de preparação de uma Conferência Nacional de Comunicação e, de algum modo, ajudou a ampliar a discussão sobre a democratização das comunicações no país. Qual o futuro da comunicação pública no Brasil? Como uma TV pública pode contribuir para a disseminação do debate sobre o direito à informação numa sociedade tão desigual como a nossa? 
E.B. – Uma única palavra sintetiza o desafio desse momento: independência. Trata-se de saber se as emissoras públicas serão mais independentes a partir de agora, após o Fórum Nacional de TVs Públicas – que, aliás, fez da independência a sua principal palavra de ordem – ou se permanecerão no atual estágio de governismo, que ainda é a regra, sem prejuízo das meritórias exceções. Depois, o outro desafio é a austeridade administrativa. Ineficiência, cabides de emprego, essas coisas não podem mais acontecer. Remover as velhas práticas é trabalhoso, mas é possível.  A sociedade precisa de emissoras de comunicação pública, não-comercial. Nas principais democracias é assim que se estrutura o espaço público. Há um equilíbrio entre a comunicação comercial e a comunicação pública. A pauta, o repertório, a lógica de uma e de outra não se confundem – ou, melhor, ambas não deveriam se confundir. Quando a rádio ou a televisão pública apenas copiam, e de modo rebaixado, o que as comerciais já fizeram antes, tornam-se irrelevantes e descartáveis. No Brasil, ainda padecemos disso. A comunicação pública só irá vingar entre nós se for independente, tanto dos governos quanto dos mercados, se for gerida com austeridade, se for uma escola para novas linguagens, se encontrar sua especificidade insubstituível. Isso é possível, mas ainda falta muito chão.

Algo que não disse nesta entrevista e gostaria de ter dito?
E.B. – Creio que tudo me foi perguntado.

Active Image Observatório da Imprensa. 

Cadeias produtivas e mercado externo

A nomeação do carioca Mario Diamante à Ancine completa o processo de transição do grupo responsável pela revitalização dos programas de fomento e regulação do cinema nacional de posições chave na formulação de políticas do audiovisual no Ministério da Cultura para a direção da Ancine. O novo diretor, que ocupou cargo de assessor na Secretaria do Audiovisual do MinC, foi assessor na Ancine por dois períodos, no último como superintendente de Desenvolvimento Econômico da agência e esteve na assessoria do BNDES na reestruturação dos investimentos do banco em cultura, se junta aos colegas Manoel Rangel e Leopoldo Nunes, hoje respectivamente diretor-presidente e diretor da agência.

Pelas posições que ocupou durante a gestão Lula, não é de se estranhar sua declaração recente na sabatina que o levou ao cargo, quando sua indicação foi aprovada pela Comissão de Educação do Senado. Na ocasião, afirmou que irá trabalhar para tornar a indústria brasileira do audiovisual auto-sustentável, e também que, embora a agência possa se orgulhar do aumento da produção cinematográfica, dos 30 filmes anuais em 2002, quando criada, para os 70 filmes anuais produzidos atualmente, o Brasil está aquém do seu potencial, inclusive em relação à penetração do filme brasileiro em seu próprio território, de apenas 12%, contando ainda com um número reduzido de salas.

Diamante já foi presidente da Associação Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas do Rio de Janeiro, em duas gestões. Dirigiu ainda o documentário Getúlio Starling (1986) e os curtas-metragens Dama da noite (1999) e Carro-Forte (2002).

Em entrevista ao 100canais, realizada na semana da pátria, Diamante fala sobre sua trajetória no governo Lula, de políticas de fomento ao audiovisual, da questão da sustentabilidade no setor e de políticas de regulação do mercado, aprofundando questões colocadas na recente sabatina no Congresso.

100canais – Sua ascensão à Ancine se deu também a partir de sua militância na Associação Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas do Rio de Janeiro, passando por espaços institucionais na Secretaria do Audiovisual (SAV-MinC) e no BNDES. O que vem de importante do Mario, “líder de categoria de base”, para estes espaços, e hoje para a direção da ANCINE?
Mario Diamante – Tem uma coisa, por ser aquele espaço uma liderança setorial, que é a atenção às políticas setoriais. Em minha militância, sempre briguei pelo desenvolvimento do audiovisual como um todo, e sempre achei que não apenas o sucesso dos curtas e documentários bastaria para garantir uma boa posição do audiovisual nos mercados interno e externo.

Desde aqueles tempos, a preocupação nossa era com a economia do setor como um todo. Neste sentido, mesmo o documentário e o curta-metragem, apesar de feitos de forma pontual pelas produtoras, tinham um conjunto que realizava ações de mercado. Ajudei a articular a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) em âmbito nacional, órgão que tinha nacionalmente a presença do Leopoldo Nunes e em São Paulo do Manuel Rangel. Desde o começo, estas pessoas tinham como preocupação a geração de emprego e renda nos filmes. E para que estes filmes conseguissem ter impacto no mercado, formamos um convênio que gerou uma economia de escala, facilitando a questão operacional.

Do ponto de vista político, o sucesso do cinema brasileiro será possível somente com a diversidade, na forma e na temática. Sendo sintético, trago da militância a preocupação com o desenvolvimento setorial, preocupação que me levou a me engajar na política setorial.

E que projetos e articulações serão possíveis ou estão sendo iniciados para a classe dos curtametragistas e documentaristas na Ancine? Na SAV/MinC você atuou na viabilização da indústria cinematográfica nacional em âmbito externo. Devemos esperar políticas da Ancine também neste sentido com sua chegada na direção?
MD – Antes de mais nada, acho importante colocar que meu papel aqui na agência é de caráter executivo. Venho balançando a bandeira do desenvolvimento setorial desde que entrei na Secretaria do Audiovisual (SAV), e nela trabalhei junto ao BNDES na estruturação de uma linha específica para as salas de exibição, o que aprofundei quando fui para a assessoria do banco. Ainda na SAV, me aproximei da Apex Brasil, agência de exportação do governo brasileiro. O mercado externo se mostrava então como fonte de recursos para realização e mercado para a compra para produtos locais, e ainda se mostra. De certa forma, todas estas ações tiveram início na gestão do Leopoldo Nunes na SAV, como chefe de gabinete de Orlando Sena, e refletiram no período de reestruturação da Ancine, concomitante. A partir daí, minha relação posterior no BNDES permitiu ajudar a montar a estrutura dos FUNCINES e do modelo de fomento através de recursos incentivados que foi a base para o lançamento do Procult e do departamento de economia da cultura do banco (veja entrevista sobre o tema aqui) [linkar com minha entrevista com o Sá Leitão], departamento tocado hoje pela competente Luciane Gorgulho.

Após o BNDES, vim para a Ancine estruturar a superintendência de desenvolvimento econômico, espécie de micro de tudo que estávamos realizando. A superintendência passou a atuar de forma pró-ativa com o mercado. Isso abrange desde estandes criadas em eventos do mercado, com a finalidade de se comunicar com ele e de articular com ele, à organização de um ícone de co-produção internacional, que tem aumentado muitíssimo nos últimos anos no país, seja pela ação individual dos produtores de TV e independentes, seja pela ação do governo, articulada, para dar a estes produtores um patamar melhor do que o que vinham realizando até então nos principais trades internacionais. Isso eu continuo fazendo aqui, na direção da Ancine. Na superintendência, começamos a desenhar o fundo setorial do audiovisual, que presentifica todo um discurso, criando um modelo de apoio que permite projetos cinematográficos, mas também viabiliza investimentos na cadeia produtiva do setor. Investimos, portanto, no estabelecimento de uma plataforma de mecanismos de fomento e regulatórios que combinados dão condições para que as empresas, os empreendedores e os projetos ligados ao audiovisual sejam bem sucedidos.

Na sabatina da Comissão de Educação do Senado, você disse que trabalharia em prol de uma “indústria brasileira do audiovisual auto-sustentável”. O que seria uma indústria do audiovisual que tivesse estas condições?
MD – A questão da sustentabilidade eu tenho como linha do horizonte, e isso faz parte do projeto que criou a Ancine em 2001, encabeçado pelo ex-diretor-presidente e criador da agência, Gustavo Dahl. O que acontece hoje em termos de mecanismo de apoio é que de um lado existem as leis de incentivo que foram fundamentais e são absolutamente necessárias para a manutenção da produção de conteúdo audiovisual cinematográfico independente. Por outro lado, há incentivos implementados, como os fundos (FUNCINES) e o fundo do audiovisual, a partir da lei 11.437. O efeito sinérgico de todos estes meios tende a reposicionar o cinema brasileiro em todas as mídias. A sustentabilidade, por sua vez, parte do princípio de que o setor se sustente com as receitas geradas dentro do mercado audiovisual. Quando, na medida provisória 2.228/2001 o Executivo reinstaurou o Prêmio Adicional de Renda, efetivado em 2005, quando eu era assessor de Manoel Rangel, então diretor na Ancine, o Prêmio passou a atuar como um contra-investimento, ou seja, você premia pelo bom desempenho em produção, exibição ou distribuição, e compromete este prêmio ele ao seu reinvestimento na cadeia do audiovisual, na produção de outras obras. Temos ainda o próprio fundo do audiovisual, feito com recursos da Condecine. Ou seja, as próprias receitas do mercado, seus resultados e a Condecine darão sustentação ao setor.

Por outro lado, o conceito da sustentabilidade só pode ser bem sucedido se acompanhado de um arcabouço regulatório consistente, que crie condições de competitividade equânimes entre os agentes econômicos. Por isso, a atual plataforma está apoiada em mecanismos de fomento e em instrumentos de regulação. Avançamos no fomento regulatório, perseguindo o ideal. Os instrumentos de regulação, por sua vez, têm duas pernas: a regulação específica dos mecanismos de fomento e a regulação direta do mercado cinematográfico e videofonográfico.

Do ponto de vista da regulação do conteúdo audiovisual, por sua vez, estamos caminhando, por exemplo com a cota-de-tela – um mecanismo clássico de regulação. Outro destes mecanismos é o acompanhamento de mercado, em estruturação e consulta pública, através de duas instruções normativas que regulamentam o envio obrigatório pelas distribuidoras de relatório de comercialização de obras para salas de exibição e de obras no segmento de vídeo doméstico, e que estão disponíveis na página da Ancine. Porque são importantes estes dados de mercado? Por uma série de questões, desde o controle especificamente, para a gente ter uma noção real do percentual de obras no mercado, como pela segurança do investimento na área. Acredito que a melhor regulação é o próprio mercado. Para atrair recursos privados, com ou sem recurso incentivado, é fundamental você ter segurança sobre o retorno da receita. A Ancine oferecer isso, essa segurança para o mercado, certamente trará novos investidores.

E como isso tem sido feito?
MD – Tenho recebido alguns investidores internacionais e alguns gestores de fundos nacionais de investimento. O que é consenso é que o capital de risco, base, com os recursos incentivados, do mercado financeiro, busca segurança para investir, mesmo no cinema. Isso tem sido resultado de nossos investimentos em estandes internacionais, como os de Cannes, Berlim e outros. Em Cannes, tivemos um grupo bastante numeroso de produtores e agentes de venda “anunciando” produtos nacionais. Essa presença, não apenas nos filmes em exibição, mas também de produtores fazendo negócios, chamou a atenção de alguns head-funds (fundos que procuram ativos ligados ao cinema).

Um destes fundos, que financia filmes independentes americanos feitos pelas mini-majors, ficou interessado em alguns projetos que estávamos negociando na feira. Interessante é que todos os produtores falam da Ancine, em relação ao seu caráter regulador sobre os recursos incentivados e sobre o mercado. Ele ouvia Ancine aqui, Ancine lá, Ancine, Ancine. Aí, em continuação a estas negociações, quando veio ao Brasil, marcou hora comigo, para ver se existia e como funcionava esse negócio de agência reguladora no Brasil. Mostrei nossos projetos, unidades e afins, e acredito que isso tenha sido fundamental para ele fechar os negócios.

Outra atuação importante nossa ocorre nas co-produções internacionais. Algumas delas necessitam que as autoridades audiovisuais tenham uma ação pró-ativa no sentido de flexibilizar itens dos acordos internacionais, através de possibilidades abertas dentro destes acordos. Temos feito isso, através de reuniões mistas, de comissões bilaterais, a partir das quais damos o aval regulatório. Um caso foi o do filme Cegueiras, do Fernando Meirelles, grande produção internacional que necessitou de uma ação regulatória forte dos governos canadense e brasileiro, para acertar as condições da preservação das regras do acordo na co-produção, dando segurança aos investimentos canadenses e japoneses.

É possível pensar num mercado nacional sem cota-de-tela? Como garantir salas de exibição sem tal política, se a rentabilidade do cinema nacional não bate a dos blockbusters?
MD – Hoje, não. Até porque hoje é uma questão entranhada na legislação, uma obrigatoriedade, mas a cota-de-tela, pura e simplesmente, não é solução para os níveis de participação brasileiros no mercado de salas de cinema. Faz-se necessário uma série de outros mecanismos que, combinados com a cota-de-tela, devem criar um nível de participação de forma sustentada. No momento ela é uma segurança. Por sua vez, a cota, não só na sala, mas eventualmente em outros segmentos, puxa o produto, inclusive a um produto qualificado, adequando ao cumprimento desta cota.

Será positivo para o aumento da participação do produto audiovisual brasileiro uma aproximação entre o produtor e o comercializador. Isso deve ser entendido de forma bem ampla, pois para cada produto você pode ter formas bem específicas de comercialização, ou seja, lógicas bem específicas de venda. Se você pretende fazer um filme que seja um grande sucesso de bilheteria, esse filme deve ter ingredientes que justifiquem isso. Um filme de nicho é estruturado de forma semelhante, com características ligadas a este segmento. Quando eu estava no comitê de investimento do Funcine da Rio Bravo, representando o BNDES, o gestor do fundo apresentou o plano de investimento um determinado filme. A análise que fiz avalisava a compra dos direitos internacionais daquele filme como forma de financiamento, porque o filme tinha ingredientes que demonstravam a possibilidade de um sucesso internacional. Por outro lado, para este mesmo filme, o cenário para o mercado interno não era bom. O gestor do fundo reavaliou estas questões, e reavaliamos o investimento no mercado interno. Temos de levar em conta que, se você planeja o filme para fazer 150 mil ingressos e ele o faz, ele é um sucesso, dentro do que ele se propôs. Agora, quando o seu projeto pensa em 1 milhão de ingressos e ele faz 100 ou 150 mil, ele é mal sucedido. Quando falo desta aproximação, é porque faz-se necessário que coloquemos material para concorrer com os filmes populares norte-americanos, mas também para concorrer com os filmes iranianos e argentinos, portanto sendo válida para os dois casos. O mercado caminha para uma qualificação da estruturação dos projetos cinematográficos e para uma profissionalização da seleção destes projetos, além de caminhar para o apoio não só de projetos de produção, mas de exibição e distribuição, enfim, de empresas do setor audiovisual como um todo. Mas é sempre importante levar em conta uma questão. O cinema é um negócio de auto-risco. Apesar de ser uma indústria, cada filme é um protótipo, porque apesar do filme ter ingredientes que denotem a conformação de uma tipologia cinematográfica, que indiquem o sucesso, ele é uma indústria da Arte, e a Arte nunca deixará de lidar com o imponderável. O que os analistas e empreendedores podem fazer é tentar cobrir o risco das obras.

E como isso pode ser feito?
MD – Do ponto de vista do empresário do setor, trata-se de você trabalhar com um portfólio, ou seja, investir na variedade de produtos, como faz a indústria americana desde sua origem. Isso é para um tipo de empresa. Outras delas têm de investir na construção de um custo fixo baixo, de serem simples escritórios de produção. Outras têm de estruturar operações em parceria, otimizando infra-estrutura. Do ponto de vista do governo, temos de abrir mecanismos que possibilitem que todas as vertentes do setor, que todos os elos da cadeia produtiva, possam acessar mecanismos que permitam a realização de filmes. A preocupação do governo é criar critérios de seleção técnicos e qualificar o processo, que acredito que é o que tem sido feito.

Agora, nunca a política cinematográfica deve se afastar de abrir espaço para o novo, para o risco, que é daí que vem o inusitado, o risco, a Arte. Se você tiver ainda um bom comercializador do lado do artista, esse produto pode ter uma boa carreira nacional ou internacional. Um exemplo seriam dois filmes recentes, Se eu fosse você, um sucesso, com atores com um grande potencial de público e de carisma consolidado, com uma estrutura de marketing compatível ao produto e uma ótima narração. Por outro lado, o filme Cidade Baixa, que pode ser chamado de filme de nicho, e que é um sucesso esperado nacionalmente, e um grande sucesso internacional. Outro filme bem estruturado neste sentido foi O ano em que meus pais saíram de férias. Não deverá atingir um milhão de expectadores, mas foi muito bem aceito no mercado internacional.

Em relação à Ancinav, como tem sido feita a reestruturação do projeto?
MD – A Ancinav foi o primeiro trabalhado no Conselho Superior do Cinema, e por orientação da Presidência da República foi cindido. A lei 11.437 foi aprovada em 28/12/2006 e está em processo de regulamentação, sendo relacionada à parte de fomento e fiscalização dos mercados cinematográfico e videofonográfico. Nela foram consolidados mecanismos como o artigo 3°A, que permitem a co-produção entre a TV aberta e a produção independente, assim como a criação de um fundo setorial do audiovisual e a implementação dos Funcines.

A outra parte, que envolve a regulamentação do audiovisual, está sendo tratada hoje em discussões no Congresso Nacional. De certa forma o projeto colocava algumas questões que hoje tem sido discutidas com bastante vigor no Congresso, e em relação as quais era necessário de fato, naquela época, uma discussão mais ampla, até porque o Conselho Superior de Cinema não tinha a presença das empresas de telefonia e de TV por assinatura, agentes fundamentais neste debate.

O que nós, da Ancine, podemos contribuir é a questão do conteúdo audiovisual. Ele, por uma questão tecnológica e comercial, gera conteúdos na comunicação eletrônica e na telefonia. Há, hoje, um ambiente de convergência, e por estarmos tratando de cinema e de produção independente para televisão, em especial por assinatura, podemos colaborar, até pela herança que a agência tem, vinda do INC, da Embrafilme e da Concine. Tecnicamente temos experiência acumulada para isso.

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Concessões, a caixa preta da televisão

No dia 05 de outubro vencem as concessões de importantes emissoras de televisão do país, as cinco da Rede Globo – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Brasília, as da Band, Gazeta, Record e TV Cultura de São Paulo, entre outras. Para continuarem operando os canais que lhe foram outorgados pelo Estado, o governo federal precisa autorizar e o Congresso Nacional sancionar essa renovação.

O jornalista e professor da USP, Laurindo Leal Filho, conversou com o Vermelho sobre o assunto. Ele ressaltou a ausência de um marco regulatório para o setor, os fortes interesses políticos e econômicos que entravam o avanço do debate e o poder que a Rede Globo exerce nesse cenário. “É o grande partido político do Brasil, das classes dominantes”. Confira a íntegra da entrevista.

A população brasileira desconhece o fato de que a TV é uma concessão pública. No imaginário da população permanece a idéia de que a Globo, por exemplo, é proprietária daquele canal de televisão. Qual a importância do debate em torno das concessões para o aprofundamento da democracia no Brasil?
Essa é a verdadeira caixa-preta da televisão. É um assunto que pela primeira vez começa a ser discutido por alguns setores sociais, ainda que minoritários, mas pioneiros. É um debate muito difícil, porque a maioria absoluta da sociedade só se informa pela TV. A televisão está em praticamente 98% dos domicílios. Se nós pensarmos que 90% das pessoas só se informam pela televisão nós teremos cerca de 170 milhões de pessoas. Qualquer outro veículo – jornal, revista, internet, TV por assinatura – não chega a 10% da população. E, obviamente, a televisão não diz que é uma concessão pública e, muito menos, que essas concessões são renováveis, que não são propriedade das empresas. No Brasil, as concessões têm duração de 15 anos para a televisão e 10 anos para o rádio. Ao não ter acesso a essa informação, a população acaba criando no seu imaginário a idéia de que as empresas são proprietárias desses canais, quando na verdade esses canais são bens públicos, outorgados pelo Estado em nome da sociedade para que os concessionários prestem esse serviço por um período limitado de tempo. Então, enquanto não tivermos esse debate na sociedade brasileira ficará muito difícil que se cobre das autoridades e do governo e do Legislativo uma ação mais enérgica e mais eficiente para controlar a concessão e fazer o acompanhamento da renovação dessas concessões.

Quais são os critérios que uma emissora precisa cumprir, hoje, para obter a renovação da sua concessão?
Hoje as concessões são renovadas quase que burocraticamente, basta que o concessionário prove que tem colocado a emissora no ar, que não tem débitos com a Receita Federal ou com o INSS, são critérios todos desvinculados do conteúdo que ele deve transmitir. Muito embora a lei em vigor, de 1962, faça algumas exigências que não são levadas em conta, infelizmente, nos processos de renovação. Por exemplo, 25% de limite máximo de propaganda durante a programação. Há emissoras que colocam muito mais do que isso, que disfarçam a propaganda em merchandising. Não há controle sobre a exigência de 5% da programação ser destinada a conteúdo informativo, jornalístico. Embora defasada, a lei estabelece algumas normas para a exploração dessas concessões, só que os governos não têm acompanhado o cumprimento dessas exigências. Infelizmente, o Ministério das Comunicações sempre esteve atrelado, com raríssimas exceções, a pessoas muito vinculadas à radiodifusão, e não há empenho em que se seja cobrado o interesse público sobre a concessão. Vale mais na renovação da concessão o interesse do empresário para manter o serviço que lhe dá uma rentabilidade alta, do que o interesse do público em receber um serviço de qualidade.

Os concessionários atacam qualquer iniciativa de criação de instrumentos de controle social sobre a sua atividade. Essas são taxadas de censura e cerceamento da liberdade de imprensa.
É preciso rebater veementemente e com muita clareza essa recorrente imagem de que ser quer censura. Ao contrário, hoje quem faz censura são aqueles que detém os meios de comunicação, porque eles dizem o que não deve ser levado ao ar e excluem uma grande parcela da produção artística, cultural e simbólica brasileira. Todos nós sabemos o quanto do movimento social não passa pelos telejornais brasileiros. É preciso ficar claro que quem faz censura hoje são os concessionários dos meios de comunicação. Aos poucos estamos conseguindo rebater isso, mas ainda é difícil, porque ainda temos forte a marca da censura da ditadura militar que não foi esquecida. Mas controle social não tem nada haver com censura. Ao contrário, tem haver com democracia. Não podemos deixar que apenas duas ou três famílias digam o que o povo brasileiro deve saber, deve pensar, como deve se vestir, o que deve consumir.

Outro argumento utilizado pelas emissoras para menosprezar a necessidade do controle social é o de que a sociedade está satisfeita com a programação que lhe é oferecida e isso já seria uma chancela para a sua atividade.
Não é verdade que a população está contente com o que vê na televisão. O índice de audiência é sanção do mercado, isso é uma limitação muito grande a tudo aquilo que poderia ser produzido de cultura, informação e que está fora dos limites do mercado e, portanto, não são colocados para o público que não tem o que escolher. O problema da televisão comercial brasileira não é a baixa qualidade, mas é a falta da diversidade, da alternativa. Como as pessoas podem exigir algo que elas desconhecem? São gerações criadas com esse modelo de televisão comercial, diferente da Europa que teve o processo inverso. Lá, a televisão surgiu primeiramente estatal e pública, só depois vieram as emissoras comerciais e, então, o público já estava acostumado com um determinado nível de qualidade que passou a exigir das emissoras comerciais. Aqui, o público não tem referências para exigir uma qualidade melhor. Mesmo assim, quando se sai às ruas para questionar se as pessoas estão satisfeitas com o que é transmitido pela televisão, todas as pesquisas mostram que não, embora não saibam muito claramente qual seria a alternativa, porque essa nunca lhes foi oferecida. É como dizia Oswald de Andrade: como as pessoas podem gostar de biscoito fino se nunca provaram o biscoito fino?

E o que pode ser feito para alterar esse quadro?
Um dos objetivos claros da televisão pública é oferecer essa alternativa, mas ela não pode ficar restrita à TV Pública, ela tem que ser oferecida por todos os canais. Nisso a movimentação da sociedade é ainda embrionária, mas quando for se cristalizando, não só do ponto de vista da quantidade – um maior número de pessoas e entidades envolvidas, mas também na questão da qualidade na elaboração de propostas para o modelo, vamos chegar a uma situação em que será obrigatória a criação, no Brasil, de um órgão regulador da televisão brasileira, que dê conta não só da questão da concessão e renovação, mas que faça o acompanhamento das programações e que tenha o poder de estabelecer grades ou de influir na formulação das grades das emissoras para que elas ofereçam serviços complementares umas às outras. Você não pode ter, e alguém já disse que isso é uma esquizofrenia, 60, 80 milhões de pessoas assistindo ao mesmo tempo o mesmo tipo de programa. Isso só acontece porque não há alternativa. Caberia ao órgão regulador, como acontece na Inglaterra, por exemplo, estabelecer que quando numa emissora está se transmitindo uma novela, nas outras não possa ter novela, tem que ter um filme, na outra um documentário e na quarta um programa de entretenimento, porque a televisão é um serviço público e todo o serviço público deve ser acessado universalmente pela população. O cidadão não exerce esse direito porque não vê essa sua expectativa atendida. Alguns dizem, quem não gosta que desligue a televisão. Não, ao fazer isso você estará abrindo mão do direito de receber um serviço público de qualidade.

Como você vê o poder da Globo como indústria midiática no país e qual sua avaliação sobre a sua renovação?
A Globo é o grande partido político do Brasil, das classes dominantes, das oligarquias. Ela decodifica para a população o ideário da classe dominante, e não só a Globo, todas as outras, mas a Globo por ter mais audiência torna as idéias da classe dominante as idéias dominantes na sociedade. O poder da Rede Globo é um poder político partidário seríssimo no Brasil, muito forte. Agora nós não temos hoje instrumentos legais para se estabelecer uma definição em torno da não renovação da sua concessão. Ela pode ser uma bandeira política, mas não há um instrumento para dizer que a renovação da Globo não pode ser feita porque ela infringiu este e aquele requisitos. E temos os obstáculos constitucionais. Uma não renovação, ainda que fosse aprovada administrativamente teria que passar por uma votação que exige 2/5 do Congresso Nacional, o que é praticamente impossível. Nesse momento a luta deve ser, e eu acho que ela está caminhando nesse sentido, de mostrar à sociedade que a concessão é dela, sociedade, e que foi outorgada pelo Estado em nome dela. E a partir daí começar uma luta para que se consiga um consenso mais amplo e uma pressão sobre o Congresso Nacional para que sejam revistas essas leis e criados mecanismos democráticos para o acompanhamento dessas concessões. Enquanto não resolvermos isso, não chegaremos a uma democracia plena. Lembro-me de uma frase do Betinho que dizia, em tom de blague, que nós só teríamos democracia no Brasil quando o presidente da Rede Globo fosse eleito pelo povo. Essa é uma imagem que mostra bem o poder dessa organização na sociedade brasileira.

Quais seriam, em linhas gerais, algumas exigências que precisariam existir para que as renovações fossem ratificadas?
A exigência principal, sem a qual será difícil darmos um passo à frente é a elaboração, pelo Executivo e ouvida a sociedade, de uma Lei de Comunicação Eletrônica de Massa, que deveria ter sido enviada para o Congresso Nacional há muito. A lei em vigor é de uma TV em preto e branco e nós estamos no limiar da TV Digital. Foi elaborada num contexto cultural totalmente diferente. Naquela época, a sociedade estava mais no campo que na cidade. A nova lei teria que ser moderna, democrática e prever a criação de um órgão regulador. Há modelos para serem observados, como o Office of Comunication da Inglaterra, o Conselho Superior do Audiovisual na França, o Conselho de Televisão em Portugal. Aliás, Portugal aprovou em agosto uma nova lei para a televisão que passou a rever as concessões de 5 em 5 anos, que não permite que uma televisão mude sua programação 48 horas antes de ir ao ar para não prejudicar o telespectador, enfim, uma série de detalhes que podem ser observados. Com isso, o acompanhamento da concessão não seria subjetivo, seria baseado numa série de elementos e determinações que as emissoras teriam que cumprir. A primeira delas seria, ao se candidatarem para uma concessão, apresentar uma proposta de grade de programação dizendo que públicos e serviços elas estariam atendendo. Caso o contrato fosse infringido estariam ali os elementos objetivos para que o órgão regulador pudesse sancionar a emissora, até cancelando uma concessão, como acontecem nos países democráticos. Não seria nada subjetivo, nada antidemocrático, pelo contrário, isso se dá com qualquer serviço público. Quando uma empresa ganha uma concessão para operar uma linha de ônibus ela diz qual o horário, itinerário e a freqüência dos ônibus. Se qualquer um desses itens não for cumprido ela pode perder a concessão. A mesma coisa precisa acontecer com a televisão. É uma coisa aparentemente simples, mas que em função dos entraves impostos pelos interesses políticos e econômicos no Brasil não são praticados.

Qual o impacto do ingresso das novas tecnologias, principalmente com a digitalização, no cenário da Radiodifusão?
Um dos argumentos para protelar a elaboração de uma Lei de Comunicação Eletrônica de Massa era o fato de que a televisão digital estava chegando e iria mudar todo o cenário tecnológico, daí deveria se esperar que isso acontecesse para modificar a lei. Mas, no meu ponto de vista, deveria ter sido exatamente o contrário. A TV digital, ao ser implantada, já deveria encontrar uma lei que determinasse, por exemplo, que todos os canais deveriam atender o critério da multiprogramação. É uma tecnologia de ponta que favorece a democratização da oferta de produtos televisivos e a diversidade. A outorga das atuais concessões (analógicas) foi dada para que as empresas operassem apenas um canal e não quatro ou oito como elas agora se arrogam o direito de ter em função da digitalização. Vão usar esses oito como? A tendência é usar para alta definição e baixa interatividade. Vamos ter uma programação única, com imagem de altíssima qualidade e uma interatividade para atender apenas as questões comerciais, a possibilidade de uma venda mais rápida e eficiente dos produtos anunciados. É um uso medíocre para uma tecnologia tão avançada e que poderia garantir o aumento dos atores participando do processo, novas empresas, organizações sociais, fundações públicas que teriam possibilidade de colocar suas programações pelos novos canais. Haveria a possibilidade, também, de uma interatividade mais rica, incluindo pela televisão a grande massa da população que está fora da internet. Isso seria possível, mas não é compatível com a televisão em alta definição que parece será o modelo adotado pelas grandes redes.
Os movimentos que lutam pela democratização da mídia têm insistido na necessidade da realização de uma Conferência das Comunicações nos moldes das outras conferências que têm acontecido no País, como a de Saúde, Mulheres, Habitação.

Você considera viável a realização de uma conferência nesses moldes e que impacto ela teria para a elaboração de políticas para o setor?
Viável e necessária, seria o passo seguinte para dar consistência e organicidade para esses movimentos que estão preocupados com o papel e o poder da televisão. Nós começamos a nossa conversa falando das dificuldades que a sociedade tem em entender que a televisão é uma concessão pública. A Conferência estabelecida como são as outras citadas, feita a partir dos municípios, de baixo para cima, vai contribuir para essa conscientização da sociedade. Agora, talvez seja mais difícil levar isso a frente, já que os atuais beneficiários dessas concessões utilizam todos os mecanismos para evitar que haja um avanço nesse debate. Tanto no Legislativo quanto no Executivo existe um contra-poder muito forte para evitar essa avanço. É um embate forte e eu não acredito que uma Conferência nesses moldes seja organizada com o apoio desses poderes muito facilmente. Os obstáculos serão grandes, mas eles começam a ser enfrentados. Os movimentos devem ter o seu próprio caminho para levar em frente a bandeira de uma Conferência realmente democrática e popular das comunicações e isenta de qualquer tutela seja do Legislativo ou Executivo.