Cadeias produtivas e mercado externo

A nomeação do carioca Mario Diamante à Ancine completa o processo de transição do grupo responsável pela revitalização dos programas de fomento e regulação do cinema nacional de posições chave na formulação de políticas do audiovisual no Ministério da Cultura para a direção da Ancine. O novo diretor, que ocupou cargo de assessor na Secretaria do Audiovisual do MinC, foi assessor na Ancine por dois períodos, no último como superintendente de Desenvolvimento Econômico da agência e esteve na assessoria do BNDES na reestruturação dos investimentos do banco em cultura, se junta aos colegas Manoel Rangel e Leopoldo Nunes, hoje respectivamente diretor-presidente e diretor da agência.

Pelas posições que ocupou durante a gestão Lula, não é de se estranhar sua declaração recente na sabatina que o levou ao cargo, quando sua indicação foi aprovada pela Comissão de Educação do Senado. Na ocasião, afirmou que irá trabalhar para tornar a indústria brasileira do audiovisual auto-sustentável, e também que, embora a agência possa se orgulhar do aumento da produção cinematográfica, dos 30 filmes anuais em 2002, quando criada, para os 70 filmes anuais produzidos atualmente, o Brasil está aquém do seu potencial, inclusive em relação à penetração do filme brasileiro em seu próprio território, de apenas 12%, contando ainda com um número reduzido de salas.

Diamante já foi presidente da Associação Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas do Rio de Janeiro, em duas gestões. Dirigiu ainda o documentário Getúlio Starling (1986) e os curtas-metragens Dama da noite (1999) e Carro-Forte (2002).

Em entrevista ao 100canais, realizada na semana da pátria, Diamante fala sobre sua trajetória no governo Lula, de políticas de fomento ao audiovisual, da questão da sustentabilidade no setor e de políticas de regulação do mercado, aprofundando questões colocadas na recente sabatina no Congresso.

100canais – Sua ascensão à Ancine se deu também a partir de sua militância na Associação Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas do Rio de Janeiro, passando por espaços institucionais na Secretaria do Audiovisual (SAV-MinC) e no BNDES. O que vem de importante do Mario, “líder de categoria de base”, para estes espaços, e hoje para a direção da ANCINE?
Mario Diamante – Tem uma coisa, por ser aquele espaço uma liderança setorial, que é a atenção às políticas setoriais. Em minha militância, sempre briguei pelo desenvolvimento do audiovisual como um todo, e sempre achei que não apenas o sucesso dos curtas e documentários bastaria para garantir uma boa posição do audiovisual nos mercados interno e externo.

Desde aqueles tempos, a preocupação nossa era com a economia do setor como um todo. Neste sentido, mesmo o documentário e o curta-metragem, apesar de feitos de forma pontual pelas produtoras, tinham um conjunto que realizava ações de mercado. Ajudei a articular a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) em âmbito nacional, órgão que tinha nacionalmente a presença do Leopoldo Nunes e em São Paulo do Manuel Rangel. Desde o começo, estas pessoas tinham como preocupação a geração de emprego e renda nos filmes. E para que estes filmes conseguissem ter impacto no mercado, formamos um convênio que gerou uma economia de escala, facilitando a questão operacional.

Do ponto de vista político, o sucesso do cinema brasileiro será possível somente com a diversidade, na forma e na temática. Sendo sintético, trago da militância a preocupação com o desenvolvimento setorial, preocupação que me levou a me engajar na política setorial.

E que projetos e articulações serão possíveis ou estão sendo iniciados para a classe dos curtametragistas e documentaristas na Ancine? Na SAV/MinC você atuou na viabilização da indústria cinematográfica nacional em âmbito externo. Devemos esperar políticas da Ancine também neste sentido com sua chegada na direção?
MD – Antes de mais nada, acho importante colocar que meu papel aqui na agência é de caráter executivo. Venho balançando a bandeira do desenvolvimento setorial desde que entrei na Secretaria do Audiovisual (SAV), e nela trabalhei junto ao BNDES na estruturação de uma linha específica para as salas de exibição, o que aprofundei quando fui para a assessoria do banco. Ainda na SAV, me aproximei da Apex Brasil, agência de exportação do governo brasileiro. O mercado externo se mostrava então como fonte de recursos para realização e mercado para a compra para produtos locais, e ainda se mostra. De certa forma, todas estas ações tiveram início na gestão do Leopoldo Nunes na SAV, como chefe de gabinete de Orlando Sena, e refletiram no período de reestruturação da Ancine, concomitante. A partir daí, minha relação posterior no BNDES permitiu ajudar a montar a estrutura dos FUNCINES e do modelo de fomento através de recursos incentivados que foi a base para o lançamento do Procult e do departamento de economia da cultura do banco (veja entrevista sobre o tema aqui) [linkar com minha entrevista com o Sá Leitão], departamento tocado hoje pela competente Luciane Gorgulho.

Após o BNDES, vim para a Ancine estruturar a superintendência de desenvolvimento econômico, espécie de micro de tudo que estávamos realizando. A superintendência passou a atuar de forma pró-ativa com o mercado. Isso abrange desde estandes criadas em eventos do mercado, com a finalidade de se comunicar com ele e de articular com ele, à organização de um ícone de co-produção internacional, que tem aumentado muitíssimo nos últimos anos no país, seja pela ação individual dos produtores de TV e independentes, seja pela ação do governo, articulada, para dar a estes produtores um patamar melhor do que o que vinham realizando até então nos principais trades internacionais. Isso eu continuo fazendo aqui, na direção da Ancine. Na superintendência, começamos a desenhar o fundo setorial do audiovisual, que presentifica todo um discurso, criando um modelo de apoio que permite projetos cinematográficos, mas também viabiliza investimentos na cadeia produtiva do setor. Investimos, portanto, no estabelecimento de uma plataforma de mecanismos de fomento e regulatórios que combinados dão condições para que as empresas, os empreendedores e os projetos ligados ao audiovisual sejam bem sucedidos.

Na sabatina da Comissão de Educação do Senado, você disse que trabalharia em prol de uma “indústria brasileira do audiovisual auto-sustentável”. O que seria uma indústria do audiovisual que tivesse estas condições?
MD – A questão da sustentabilidade eu tenho como linha do horizonte, e isso faz parte do projeto que criou a Ancine em 2001, encabeçado pelo ex-diretor-presidente e criador da agência, Gustavo Dahl. O que acontece hoje em termos de mecanismo de apoio é que de um lado existem as leis de incentivo que foram fundamentais e são absolutamente necessárias para a manutenção da produção de conteúdo audiovisual cinematográfico independente. Por outro lado, há incentivos implementados, como os fundos (FUNCINES) e o fundo do audiovisual, a partir da lei 11.437. O efeito sinérgico de todos estes meios tende a reposicionar o cinema brasileiro em todas as mídias. A sustentabilidade, por sua vez, parte do princípio de que o setor se sustente com as receitas geradas dentro do mercado audiovisual. Quando, na medida provisória 2.228/2001 o Executivo reinstaurou o Prêmio Adicional de Renda, efetivado em 2005, quando eu era assessor de Manoel Rangel, então diretor na Ancine, o Prêmio passou a atuar como um contra-investimento, ou seja, você premia pelo bom desempenho em produção, exibição ou distribuição, e compromete este prêmio ele ao seu reinvestimento na cadeia do audiovisual, na produção de outras obras. Temos ainda o próprio fundo do audiovisual, feito com recursos da Condecine. Ou seja, as próprias receitas do mercado, seus resultados e a Condecine darão sustentação ao setor.

Por outro lado, o conceito da sustentabilidade só pode ser bem sucedido se acompanhado de um arcabouço regulatório consistente, que crie condições de competitividade equânimes entre os agentes econômicos. Por isso, a atual plataforma está apoiada em mecanismos de fomento e em instrumentos de regulação. Avançamos no fomento regulatório, perseguindo o ideal. Os instrumentos de regulação, por sua vez, têm duas pernas: a regulação específica dos mecanismos de fomento e a regulação direta do mercado cinematográfico e videofonográfico.

Do ponto de vista da regulação do conteúdo audiovisual, por sua vez, estamos caminhando, por exemplo com a cota-de-tela – um mecanismo clássico de regulação. Outro destes mecanismos é o acompanhamento de mercado, em estruturação e consulta pública, através de duas instruções normativas que regulamentam o envio obrigatório pelas distribuidoras de relatório de comercialização de obras para salas de exibição e de obras no segmento de vídeo doméstico, e que estão disponíveis na página da Ancine. Porque são importantes estes dados de mercado? Por uma série de questões, desde o controle especificamente, para a gente ter uma noção real do percentual de obras no mercado, como pela segurança do investimento na área. Acredito que a melhor regulação é o próprio mercado. Para atrair recursos privados, com ou sem recurso incentivado, é fundamental você ter segurança sobre o retorno da receita. A Ancine oferecer isso, essa segurança para o mercado, certamente trará novos investidores.

E como isso tem sido feito?
MD – Tenho recebido alguns investidores internacionais e alguns gestores de fundos nacionais de investimento. O que é consenso é que o capital de risco, base, com os recursos incentivados, do mercado financeiro, busca segurança para investir, mesmo no cinema. Isso tem sido resultado de nossos investimentos em estandes internacionais, como os de Cannes, Berlim e outros. Em Cannes, tivemos um grupo bastante numeroso de produtores e agentes de venda “anunciando” produtos nacionais. Essa presença, não apenas nos filmes em exibição, mas também de produtores fazendo negócios, chamou a atenção de alguns head-funds (fundos que procuram ativos ligados ao cinema).

Um destes fundos, que financia filmes independentes americanos feitos pelas mini-majors, ficou interessado em alguns projetos que estávamos negociando na feira. Interessante é que todos os produtores falam da Ancine, em relação ao seu caráter regulador sobre os recursos incentivados e sobre o mercado. Ele ouvia Ancine aqui, Ancine lá, Ancine, Ancine. Aí, em continuação a estas negociações, quando veio ao Brasil, marcou hora comigo, para ver se existia e como funcionava esse negócio de agência reguladora no Brasil. Mostrei nossos projetos, unidades e afins, e acredito que isso tenha sido fundamental para ele fechar os negócios.

Outra atuação importante nossa ocorre nas co-produções internacionais. Algumas delas necessitam que as autoridades audiovisuais tenham uma ação pró-ativa no sentido de flexibilizar itens dos acordos internacionais, através de possibilidades abertas dentro destes acordos. Temos feito isso, através de reuniões mistas, de comissões bilaterais, a partir das quais damos o aval regulatório. Um caso foi o do filme Cegueiras, do Fernando Meirelles, grande produção internacional que necessitou de uma ação regulatória forte dos governos canadense e brasileiro, para acertar as condições da preservação das regras do acordo na co-produção, dando segurança aos investimentos canadenses e japoneses.

É possível pensar num mercado nacional sem cota-de-tela? Como garantir salas de exibição sem tal política, se a rentabilidade do cinema nacional não bate a dos blockbusters?
MD – Hoje, não. Até porque hoje é uma questão entranhada na legislação, uma obrigatoriedade, mas a cota-de-tela, pura e simplesmente, não é solução para os níveis de participação brasileiros no mercado de salas de cinema. Faz-se necessário uma série de outros mecanismos que, combinados com a cota-de-tela, devem criar um nível de participação de forma sustentada. No momento ela é uma segurança. Por sua vez, a cota, não só na sala, mas eventualmente em outros segmentos, puxa o produto, inclusive a um produto qualificado, adequando ao cumprimento desta cota.

Será positivo para o aumento da participação do produto audiovisual brasileiro uma aproximação entre o produtor e o comercializador. Isso deve ser entendido de forma bem ampla, pois para cada produto você pode ter formas bem específicas de comercialização, ou seja, lógicas bem específicas de venda. Se você pretende fazer um filme que seja um grande sucesso de bilheteria, esse filme deve ter ingredientes que justifiquem isso. Um filme de nicho é estruturado de forma semelhante, com características ligadas a este segmento. Quando eu estava no comitê de investimento do Funcine da Rio Bravo, representando o BNDES, o gestor do fundo apresentou o plano de investimento um determinado filme. A análise que fiz avalisava a compra dos direitos internacionais daquele filme como forma de financiamento, porque o filme tinha ingredientes que demonstravam a possibilidade de um sucesso internacional. Por outro lado, para este mesmo filme, o cenário para o mercado interno não era bom. O gestor do fundo reavaliou estas questões, e reavaliamos o investimento no mercado interno. Temos de levar em conta que, se você planeja o filme para fazer 150 mil ingressos e ele o faz, ele é um sucesso, dentro do que ele se propôs. Agora, quando o seu projeto pensa em 1 milhão de ingressos e ele faz 100 ou 150 mil, ele é mal sucedido. Quando falo desta aproximação, é porque faz-se necessário que coloquemos material para concorrer com os filmes populares norte-americanos, mas também para concorrer com os filmes iranianos e argentinos, portanto sendo válida para os dois casos. O mercado caminha para uma qualificação da estruturação dos projetos cinematográficos e para uma profissionalização da seleção destes projetos, além de caminhar para o apoio não só de projetos de produção, mas de exibição e distribuição, enfim, de empresas do setor audiovisual como um todo. Mas é sempre importante levar em conta uma questão. O cinema é um negócio de auto-risco. Apesar de ser uma indústria, cada filme é um protótipo, porque apesar do filme ter ingredientes que denotem a conformação de uma tipologia cinematográfica, que indiquem o sucesso, ele é uma indústria da Arte, e a Arte nunca deixará de lidar com o imponderável. O que os analistas e empreendedores podem fazer é tentar cobrir o risco das obras.

E como isso pode ser feito?
MD – Do ponto de vista do empresário do setor, trata-se de você trabalhar com um portfólio, ou seja, investir na variedade de produtos, como faz a indústria americana desde sua origem. Isso é para um tipo de empresa. Outras delas têm de investir na construção de um custo fixo baixo, de serem simples escritórios de produção. Outras têm de estruturar operações em parceria, otimizando infra-estrutura. Do ponto de vista do governo, temos de abrir mecanismos que possibilitem que todas as vertentes do setor, que todos os elos da cadeia produtiva, possam acessar mecanismos que permitam a realização de filmes. A preocupação do governo é criar critérios de seleção técnicos e qualificar o processo, que acredito que é o que tem sido feito.

Agora, nunca a política cinematográfica deve se afastar de abrir espaço para o novo, para o risco, que é daí que vem o inusitado, o risco, a Arte. Se você tiver ainda um bom comercializador do lado do artista, esse produto pode ter uma boa carreira nacional ou internacional. Um exemplo seriam dois filmes recentes, Se eu fosse você, um sucesso, com atores com um grande potencial de público e de carisma consolidado, com uma estrutura de marketing compatível ao produto e uma ótima narração. Por outro lado, o filme Cidade Baixa, que pode ser chamado de filme de nicho, e que é um sucesso esperado nacionalmente, e um grande sucesso internacional. Outro filme bem estruturado neste sentido foi O ano em que meus pais saíram de férias. Não deverá atingir um milhão de expectadores, mas foi muito bem aceito no mercado internacional.

Em relação à Ancinav, como tem sido feita a reestruturação do projeto?
MD – A Ancinav foi o primeiro trabalhado no Conselho Superior do Cinema, e por orientação da Presidência da República foi cindido. A lei 11.437 foi aprovada em 28/12/2006 e está em processo de regulamentação, sendo relacionada à parte de fomento e fiscalização dos mercados cinematográfico e videofonográfico. Nela foram consolidados mecanismos como o artigo 3°A, que permitem a co-produção entre a TV aberta e a produção independente, assim como a criação de um fundo setorial do audiovisual e a implementação dos Funcines.

A outra parte, que envolve a regulamentação do audiovisual, está sendo tratada hoje em discussões no Congresso Nacional. De certa forma o projeto colocava algumas questões que hoje tem sido discutidas com bastante vigor no Congresso, e em relação as quais era necessário de fato, naquela época, uma discussão mais ampla, até porque o Conselho Superior de Cinema não tinha a presença das empresas de telefonia e de TV por assinatura, agentes fundamentais neste debate.

O que nós, da Ancine, podemos contribuir é a questão do conteúdo audiovisual. Ele, por uma questão tecnológica e comercial, gera conteúdos na comunicação eletrônica e na telefonia. Há, hoje, um ambiente de convergência, e por estarmos tratando de cinema e de produção independente para televisão, em especial por assinatura, podemos colaborar, até pela herança que a agência tem, vinda do INC, da Embrafilme e da Concine. Tecnicamente temos experiência acumulada para isso.

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