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A deterioração ética e moral do jornalismo

Em entrevista ao Vermelho, Luis Nassif revela como e por que resolveu desmascarar a farsa, através do “dossiê Veja”, publicado em capítulos no blog Luis Nassif Online.

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Você já escreveu um livro (O Jornalismo dos Anos 90) para tentar explicar mudanças paradigmáticas da imprensa na última década. Após as eleições 2006, soltou o artigo “A longa noite de São Bartolomeu”, que é quase um apêndice do livro, com um resumo e atualizações a respeito dessas transformações. O que houve nesse período? Como e por que a grande mídia mudou?
O livro terminava relativamente otimista. Eu achava que, com o avanço do discernimento por parte dos leitores, a imprensa seria mais seletiva e mais rigorosa na apuração de notícias. Mas nos anos 90 e nesta década entre 2000 e 2010, ao menos até agora, ocorreu uma confluência de fatores que piorou muito o ambiente midiático.

Tivemos, de um lado, a crise das empresas jornalísticas, que cometeram o que chamamos de ato de fraqueza como forma de não só saírem da crise como também de enfrentarem um outro cenário adverso que viria pela frente. Cederam à mídia internacional, com grandes grupos entrando e um novo padrão sendo introduzido — e nossos homens da mídia eram sempre acostumados com um ambiente fechado, sem uma visão estratégica para sobreviver num ambiente de competição.

Isso levou a um pacto de autodefesa entre esses grupos, porque eles precisariam fazer parcerias também com grandes investidores. É aí que aparece a figura dos banqueiros dos anos 90, alguns bem barra-pesada, que passam a ser uma das bóias de salvação da mídia. E aí você vende a alma. Quando você vende a alma e tem essa falta de critério jornalístico em algumas publicações, você dá tanto poder para seus diretores que eles saem do próprio controle da organização.

Nessa série da Veja que estou fazendo, há muitos episódios que não têm Abril no meio. A Abril perdeu o controle. A comparação que faria é a de uma empresa que usa o caixa 2 e sistemas não-formais para poder conseguir negócios — e que perde o controle de quem está fazendo as coisas. Na Veja, você tem matérias que são muito estranhas. Você olha e diz: que justificativa tem para isso? É a Abril que está pedindo isso? São os diretores?


Você está nos dizendo que a “hierarquia militar” da Abril foi violada? Ou o Roberto Civita (presidente da Editora Abril) poderia intervir e não interveio?
O Roberto Civita foi alvo, em momentos passados, de ataques pessoais pesados. E aí vem um pessoal pistoleiro de reputação e oferece a chance de fazer com eles o que antes fizeram com o Civita. E então ele libera esses mastins para sair atacando todo mundo. O que acontece? Ele não é um cara ideológico. Esse negócio de dizer que os sócios sul-africanos é que estão levando a essa posição da Veja é mentira. O Civita é um sujeito que se guia pelo mercado e que se baseia muito no que acontece nos Estados Unidos.

E nos Estados Unidos tem início esse movimento neocon, de agressividade na linguagem. Ele pensou: “Vamos trazer isso para cá”. E entregou essa função para as piores mãos possíveis — um pessoal jornalisticamente incompetente e inescrupuloso no trato da informação. Começaram a radicalização, a grosseria, os ataques contra todo mundo e os beneficiamentos pessoais. O que aconteceu com o livro do Mário Sabino? Ele usou todo o ferramental disponível inclusive para mudar critérios dos livros mais vendidos e, assim, se beneficiar. Isso aí não é coisa da Abril. É inacreditável um negócio desses.

Se essa série tivesse saído no ano passado, o que eles alegariam? São os inimigos políticos da Veja, são os chapas-brancas E atrás desse discurso, dessa blindagem, eles faziam tudo. A qualquer crítica que surgisse, eles diziam: “Ah, são os chapas-brancas”. O Diogo Mainardi foi usado pelo Mário Sabino, é um doente. Foi utilizado para isso: se alguém chegar perto, cria a marca “é da equipe do governo”, “é chapa-branca”. Com isso, você libera a direção para fazer o que desse na telha.

Foi o que fizeram com o Franklin Martins, com a Tereza Cruvinel…
Você pega o Franklin Martins. Eles conseguiram jogar nos braços do governo o melhor jornalista político do país: “Ah, agora está provado que o Franklin era governista”. Provado coisa nenhuma! O Franklin ficou fora do mercado e foi trabalhar no governo. A Tereza Cruvinel era uma das melhores colunistas que havia. Começaram com esses ataques baixos, desqualificadores, e ela foi trabalhar no governo.

A questão toda não é somente os ataques, mas a maneira como os jornais reagiram a isso. No Globo, o (diretor-executivo de jornalismo) Ali Kamel fechou com eles. O que o Ali Kamel fez com o Franklin quando foi atacado? Rompeu contrato com ele. Isso foi uma deslealdade que intimidou todos os demais colunistas do O Globo. Na Folha, o Otavinho (Otávio Frias Filho, diretor de Redação) não saiu em defesa quando seus colunistas foram atacados. Não digo nem a mim — mas ao Kennedy Alencar, ao Marcelo Coelho e a outros.

Isso criou uma insegurança geral nos colunistas. Nos anos 90, havia diversidade jornalística dada por eles. Quando se cria essa guerra e essa unanimidade para derrubar o Lula — e se permite que os seus jornalistas sejam atacados —, você induz todos eles a fazerem discurso único por uma questão de sobrevivência profissional. Eu pulei fora.

Nos anos 50, havia um jornalismo bastante carregado de opiniões. Isso voltou tal como era antes ou você vê diferenças?
Voltou com tudo, inclusive com os planos Cohen da vida. Toda aquela manipulação, inclusive dossiês falsos, passou a ser usada. Isso é uma loucura! Estamos na era da internet, da comunicação, e a Veja passa a usar dossiês falsos, passa a misturar a notícia com fantasia.

Aquele negócio de dólares de Cuba é um exemplo. A qualidade da notícia deveria ser melhor até por uma questão de cautela. Se hoje não há mais aquele controle da informação que se tinha antes, você não pode se dar à imprudência de sair inventando história, porque vai ser desmascarado.

Há um capítulo do dossiê em que você diz que, a cada sucessão no comando da Veja, entram jornalistas cada vez mais desqualificados e incompetentes…
É. A Veja está num processo de deterioração moral. Recebo vários e-mails de jornalistas que trabalharam lá, e há um que fala que, a cada edição, morria de medo de involuntariamente fuzilar alguma reputação. Porque eles pegam as matérias e alteram tudo.

Existem vários exemplos de jornalistas que faziam parte de um grande veículo e que, agora, têm seus sites e blogs, estão “nadando contra a corrente”. Temos o Paulo Henrique Amorim e o Luiz Carlos Azenha, que eram da Globo. Há você, que saiu da Folha. A internet virou uma válvula de escape?
Vou falar da minha experiência. Na Folha, sempre procurei jogar no contrafluxo. Um exemplo foi a Escola Base. Esse negócio de não seguir a manada, para mim, sempre foi um oxigênio. Qualquer forma de restrição ao pensamento, para mim, é um terror. E a restrição ao pensamento pode vir da empresa, pode vir do governo ou pode vir do leitor.

Ao longo dos anos 90, um grande fator de restrição à imprensa foram essas pesquisas de opinião. Os jornais criavam um escândalo, o leitor queria mais daquele escândalo, e o jornal ficava prisioneiro daquela opinião do leitor que ele mesmo tinha criado. Era um círculo vicioso.

O que aconteceu nos últimos anos foi que você não podia mais jogar no contrafluxo por conta dessa frente que se formou contra o governo. Uma das características do jornalismo é que a capacidade que você tem de fazer um elogio é que te garante credibilidade e a eficiência quando você faz a crítica. Se for sistematicamente a favor ou sistematicamente contra, não se faz jornalismo.

Só que quando, começou aquela campanha maluca contra o Lula, você tinha que ficar sistematicamente contra. Tinha denúncia verdadeira? Tinha. Mas também havia denúncias falsas. O jornalismo coerente tinha que separar o falso do verdadeiro. Só que o patrulhamento foi um negócio tão intenso — e essa frente da mídia foi tão emburrecedora — que acabou essa diferenciação.

Quando fomos para a internet, o público que estava lá era o público dos jornais. Mas a internet também é uma armadilha; você tem que tomar cuidado para não ficar prisioneiro dela também. Meu público é 80% a favor do Lula. Mas, se você cede a esse público, você perde a liberdade.

Que pressões você sofreu na Folha?
Ali foram desgastes internos, que já vinha há algum tempo. Quando entrou a “guerra santa” e eu comecei a fazer o contraponto, gerei insatisfação e não teve jeito.

Existe na blogosfera um “ativismo jornalístico” cujos principais nomes seriam o seu, o do Paulo Henrique Amorim?
Isso aí é malandragem desse pessoal da Veja. Quando a Veja resolveu montar a blindagem para a revista, o álibi encontrado contra as críticas foi dizer que se formou uma frente contra ela. Quando comecei minha série, o Paulo Henrique ligou me apoiando. E eu falei: “Não me apóia”. Daí, quando eu lancei o primeiro capítulo, ele fez um carnaval lá, e eu publiquei uma coluna até deselegante com ele, mas não tive outro jeito. Falei que não tenho nada a ver com Paulo Henrique — só para deixar bem claro que não havia essa ligação.

Você pega esses blogs da Veja e tem lá: “Porque o iG tem o Paulo Henrique, o Mino, o Nassif…”. Isso é malandragem. Qualquer crítica que você faz, eles dizem: “Você está fazendo a crítica porque existe uma frente”. Então a maior precaução que eu tomei quando comecei a escrever foi deixar bem claro que não havia essa ligação.Trabalhei com o Paulo Henrique há alguns anos e, nos últimos dois ou três anos, encontrei com ele em uma ou outra palestra. Não tenho intimidade com ele, nem ele comigo. Fazemos tipos diferentes de jornalismo. Esse negócio de frente foi malandragem da Veja.

A discussão que quero ter é jornalística. A Veja tem o direito de ser de direita ou de esquerda — quem define é o dono. Não tenho a pretensão de achar que tenha que haver uma assembléia de jornalistas definindo isso. O jornalista, quando quer ter opinião, vem para a internet. Minha crítica é que a Veja não obedeceu aos princípios jornalísticos. Manipulou, jogou, assassinou reputações, atropelou a lei.


Quando foi entrevistado por nós, em outubro de 2006, você já dava indícios de que havia esses problemas na Veja, mas apenas passava de raspão. Falava nos superpoderes do Eurípedes, comentou também da relação entre a revista e o Daniel Dantas. Por que você resolveu abrir a tampa e ir a fundo só agora, chegando ao dossiê?
Olha, eu teria assunto para mais uns 15 dossiês, se eu tivesse tempo. O meu método de trabalho é um pouco diferente do da Veja. Quando, lá atrás, sofri o ataque da Veja, fui procurar entender o que estava por trás daquilo. Estava na cara que era o Mainardi atuando na defesa do Daniel Dantas, mas não estavam claras as ligações e quem era quem no jogo. Passei esse período todo tentando entender.

Depois que você coloca as peças no lugar, basta pegar todas as matérias que estão lá e ir encaixando. Há uns oito meses, comecei a dar uns cutucões na Veja e o blog desse rapaz ficou oito meses me atacando, dizendo que eu era ladrão. Dizia coisas inacreditáveis. Sabe aquela coisa de você encontrar o cara de madrugada, bêbado, e ele vem xingar sua mãe, seu pai (risos). Depois que você fecha a lógica, é só encaixar as matérias.

Você levanta quatro nomes à frente dessa linha na Veja – Eurípedes, Sabino, Jardim e Mainardi. Por que o Reinaldo Azevedo, outro radical, não entra nessa lista?
O Azevedo é menor. Você tem o Mário Sabino, certo? E o Reinaldo Azevedo é um Sabininho. Pegue o último capítulo da série que foi publicado, sobre os livros — que tem o Azevedo escrevendo resenha. Aquilo lá é só Sabino. Você pega o texto do Azevedo, pega um professor de literatura, e compara. São as impressões e as marcas do Sabino.

O que o Mario Sabino faz na Veja? Ele tem dois ou três ali que ele usa para atacar: o Sérgio Martins, o Jerônimo Teixeira, por exemplo. Ele altera os textos deles. No caso do Reinaldo, o Sabino dá o texto pronto. O Reinaldo é apenas uma caricatura. E isso é importante porque, sendo uma caricatura, ele deixa mais à mostra o que é esse jogo. Outro dia, ele escreveu sobre o Obama (Barack Obama, pré-candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos), descendo o cacete, e de repente a Veja sai com uma visão diferente. Ele entrou em pânico, porque ele não representa nada. Como caricatura, todos os defeitos da Veja ficam mais evidentes com ele. Mas ele é apenas um Sabininho.

E quem é Daniel Dantas? Como ele aparece na história?
Nos anos 90, você teve o avanço dessas colunas de negócios, que passaram a ser utilizadas como ferramentas de lobbies empresariais. Não estou generalizando. Isso começa a ficar muito pesado mesmo nos anos 90, e esses lobistas maiores passam a recorrer aos serviços de assessorias de imprensa barras-pesadas. Com o tempo, eles passam a entrar direto com seus jornalistas. A IstoÉ é um caso clássico de uso de jornalistas para jogadas comerciais. Só que quando se chega na maior revista do país, quando se atinge e coopta o seu centro, aí é demais.

O Daniel Dantas é o maior exemplo de como degringolou política no país. No dia em que ele contar suas histórias, não sobrarão grandes próceres tucanos e não sobrarão grandes figuras petistas também, nem jornalistas expressivos, Poder Judiciário. Ele conseguiu montar uma rede de influência inacreditável. Nos Estados Unidos, talvez no século passado houve esses abusos — mas a sociedade americana criou formas de autodefesa. Aqui não. Aqui se fecha em torno dos novos homens do dinheiro. Esse é um grande mal que o Fernando Henrique deixou para o país, um mal que vai ter — aliás, já está tendo — desdobramentos terríveis. E com a mídia se dispondo a fechar com eles, você tem uma parte relevante dos poderes institucionais que vão pro vinagre.

A mídia é muito poderosa, cria mitos inacreditáveis. O Mainardi é um exemplo. Começou-se a criar um mito de que ele seria o novo Paulo Francis. Mas quando você vê as coisas que ele escreve… E não estou entrando em juízo de valor, mas em juízo de qualidade. De repente, você o transforma num personagem. E, nesses grupos de autodefesa, você tem o Sabino elogiando o Ali Kamel, que elogia o Mainardi, etc. Ou seja, cria-se dentro da imprensa um negócio fora das estruturas de controle dos jornais, grupos de autopromoção que são uma coisa mafiosa. Destrói-se pessoa que não seja do grupo e passa-se a tentar criar reputações intelectuais.

Foi o que o Sabino faz na Veja, com essas manipulações com relação ao livro dele. Ele escreve e assina sobre o Otavinho, sobre o Ali Kamel. Mas, na hora de tentar destruir o Davi Arrigucci, o Silviano Santiago (críticos literários e professores acadêmicos), ele coloca outros para assinar. Tentaram destruir o (também crítico José Miguel) Wisnik, o Santiago, o Arrigucci. E quem são as novas personalidades intelectuais que surgem? Ali Kamel, Mário Sabino, Mainardi. É inacreditável! Mainardi! Duas das maiores organizações do país — Abril e Globo — passaram a ser manipuladas por três ou quatro pessoas, criando esses mitos. É uma loucura.

Então você tinha uma clara dimensão de onde estava se metendo quando iniciou o dossiê?
Quando entrei, me preparei para o pior. Vamos pegar um exemplo. Há oito meses, esse rapaz (Reinaldo Azevedo) me ataca. Há oito meses, o Reinaldo escrevia baixaria contra os professores da USP. Dava no Jornal Nacional e dava na Veja. Aí percebi que, quando começasse a série, eles usariam esse cara para me fazer ataques. Minha reputação continua a mesma. Estava até esperando coisa pior, que deve vir ainda.

Mas usei esses oito meses para preparar minha família. Dizia: “Olha, vão lendo isso aqui. Essa baixaria vai estar ampliada quando eu começar a cutucar esse pessoal”. Minha preocupação maior era com os meus familiares. Cada vez que minha mulher ficava mais horrorizada com os ataques, eu dizia: “Maravilha — estão se enforcando na própria corda”. Desse pessoal, eu esperava tudo. Acho que a Abril está um pouco mais cuidadosa do que eles. Mas, se dependesse deles, estariam falando da minha mãe, das minhas filhas. Eles não têm limites.

Por outro lado, para mim era terrível, como jornalista, essa história de ver um grupo que conseguia ficar incólume com superpoderes para injúrias e difamações. No jornalismo, em qualquer lugar democrático, toda vez que você vê manifestações de superpoder, ou essa arrogância, é um desafio para a gente. Mas ninguém queria desafiar por que? Porque os jornais foram covardes na hora de defender os seus profissionais.

Não tem nenhum jornalista neste país que respeite o jornalismo da Veja. Eles temem. Temem porque a Veja tem autorização para atirar em cima deles, e seus jornais não vão defendê-los. Foi o que aconteceu comigo na Folha. Quando eu saí de lá, eu falei: “Bom, agora estou por minha conta”. Esperei um tempo para o blog pegar e para a radicalização política diminuir, e aí comecei. Vamos ver no que vai dar.

Se bem que, logo depois do artigo do Leonardo Attuch contra você (“Nassif: o fracasso lhe subiu à cabeça”), o Otavinho deu uma declaração a seu favor…
Esse negócio de que fui demitido da Folha porque eu recebia propina — o blog deles estava há oito meses falando sobre isso. Os meus leitores vinham e diziam: “Você não vai responder?”. Não. Se responder, você vai dar munição para um cara desqualificado. Você vai desviar toda a discussão para se defender de maluquices.

O Attuch é conhecido. A Veja, no começo, o atacava — até que fizeram um acordo. Quando veio o ataque do Attuch, foi bom, porque aí o Comunique-se e a Imprensa procuraram o Otávio Frias Filho, e ele esclareceu tudo. Agora, você vê: foram oito meses em que os caras ficaram falando isso aí no portal da Veja, que é maior revista do país. Quer dizer, será que não tem nada de errado com a mídia? Se isso não for uma deformação completa, eu não sei o que é.


Sobre a Globo…
A Globo não tem a mesma baixaria da Veja. A Globo é Ali Kamel.

Mas tem essa questão da superexploração da febre amarela, das crises…
Isso é coisa do Ali Kamel. O jornal O Globo caminhava para ser o melhor do país. Aí entrou o Ali Kamel com essas maluquices dele: o caso da TAM, da febre amarela, apagão, atletas cubanos, etc. O Globo tinha tudo para ocupar o espaço que a Folha deixou e foi comprometido pelo Ali Kamel.

Essa situação tem a ver com a questão da concentração da mídia?
Tem tudo a ver, mas a internet já está democratizando a mídia. Eu recebi aqui alguns e-mails que falam do Mário Sabino brigando com a Folha. A característica desse pessoal é que são todos puxa-sacos. Eles elogiam suas empresas de um tal jeito… Qualquer ser humano com um mínimo de pudor teria vergonha. Faz parte desse perfil.

E é interessante quando você pega o Sabininho. Como ele é caricatura, fica ele todo dia falando do Victor Civita (fundador da Editora Abril), comovido. É inacreditável. Fico vermelho por eles. Aí tinha o Kamel mandando carta toda semana para a Folha, para atacar a Folha e defender O Globo. A Folha era o grande agente de tensão e exerceu um papel de equilíbrio muito importante. Num determinado momento, a Folha deixa de exercer esse papel, e cria-se um pacto tácito entre os jornais.

E eles acham que, com esse pacto fechando a atuação deles, nada do que não quisessem viraria notícia. Não se deram conta do fenômeno da internet. Esse foi o grande engano. Aquela entrevista que a gente fez, acho que foi a primeira que rompeu com essa cortina de silêncio. Isso é resultado do fenômeno da internet.

“Melhor o jornalismo, melhor a democracia”

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da USP, é conhecido pela contundência e acidez com que critica mídia e política. Na entrevista concedida ao SESCTV, sua crítica aparece como fruto de uma extensa experiência jornalística, sempre associada à reflexão e à pesquisa.

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Qual a relação entre jornalismo e democracia?
Não há democracia sem a livre circulação de opiniões, sem o debate público e você não consegue fazer isso sem ter uma imprensa livre e diversificada. Quanto melhor o jornalismo, melhor a democracia. Do lado oposto, a primeira coisa que precisa ser suprimida para acabar com a democracia é a liberdade de informação. Então as coisas estão muito ligadas.


Você faz muitas críticas à mídia de forma geral. Mas, até que ponto a imprensa define a opinião do leitor/espectador?
O jornalismo vive uma contradição porque ele é um direito inerente às pessoas, à democracia, mas, é também uma indústria. E os grandes jornais, as grandes revistas e as grandes cadeias de televisão são empresas que querem lucro, e têm interesses políticos. O espaço público é um espaço de disputa permanente de grupos de interesse e também um campo de divergências ideológicas naturais, legítimas. Então, uma certa dose de manipulação é praticamente intrínseca ao jornalismo, que por sua vez é uma atividade muito subjetiva: não existe uma verdade sobre os fatos, existem maneiras de vê-los. Por isso, sempre prego, do ponto de vista do jornalismo, a necessidade da honestidade. Você pode tratar o fato como quiser, desde que seja honesto, não distorça a informação. No caso brasileiro, o que acontece hoje é que a imprensa está fazendo tantas jogadas – desonestas – que ela se descolou completamente da realidade. Nas notícias atuais, tudo aparece como negativo, enquanto a vida do povo está melhorando. Nesses casos, quando as informações veiculadas na mídia estão muito descoladas da realidade, a mensagem não é aceita, e a mídia destrói sua própria influência porque exagerou na manipulação. Foi isso que eu acho que aconteceu na reeleição do Lula, que venceu mesmo com a campanha negativa sobre sua re-candidatura.


E você atribui essa má qualidade a quê?
São vários fatores. Praticamente metade do que é publicado nos jornais são matérias de denúncias que muitas vezes não são nem comprovadas, mas tudo é colocado em suspensão. A mídia está moralista, denuncista, anti-governo, e apressadinha. Por exemplo, vi uma notícia de que tantos por cento dos eleitores são analfabetos e não têm nem mesmo o ensino fundamental completo. Então, um crítico da mídia foi lá pesquisar os dados e não era nada disso. O dado se referia a um momento passado em que as pessoas se inscreveram para obter o título de eleitor e declararam o grau de escolaridade. Mas não é o grau de escolaridade que têm hoje, porque muitos eleitores se inscrevem com 18 anos, 16 anos.

Qual o papel da televisão na percepção e na definição do espaço público?
Todos dizem que a televisão tem um papel dominante justamente por estar presente em praticamente todos os lares brasileiros. Mas eu acredito que este papel está se modificando hoje, porque há uma grande fragmentação da televisão, e há uma maior diversidade de mensagens. Acho também que a influência do rádio é muito minimizada. O que está em todo lugar hoje não é bem a televisão. É, na verdade, a imagem televisiva. Você entra no elevador, no ônibus, no metrô e tem uma telinha. É como se ela fizesse parte do meio ambiente. O homem moderno se forma no ambiente midiático. Hoje, a criança de seis ou sete anos já sabe operar um computador. A mídia não apenas informa, ela forma a pessoa. Ela é o próprio espaço público.


Mas é um espaço público dentro de um sistema de interesses privados…
Essa confusão entre público e privado sempre existiu. Por exemplo, fala-se muito da vida privada de um político – que está com câncer, que tem uma amante. Mas é de interesse público ou privado? Esse conflito é clássico no jornalismo e é resolvido caso a caso. Mas o que acontece atualmente é uma coisa diferente, mais profunda. Houve quase que a destruição da demarcação entre público e privado com a internet. Porque na internet – e correlatos, como, celulares, palm top etc. – não há um protocolo que defina o que é correspondência privada e o que é pública. É tudo misturado no mesmo meio, usando os mesmo recursos. Um email pode transmitir um manifesto político, mas também pode ser uma mensagem privada. Ninguém pede licença para te mandar nada, invadem sua caixa postal. Houve uma destruição de várias demarcações e o que a internet fez nesse sentido é uma verdadeira revolução: dissolução entre público e privado, entre quem é jornalista e quem não é, entre leitor e escritor. Precisamos recriar a demarcação entre público e privado.

Como você avalia a chegada da TV pública?
É muito importante que ela seja construída, implementada. É uma coisa que está na Constituição: criar um sistema público de rádio e de televisão. Mas, na minha opinião, está muito na defensiva, envergonhada, com medo de errar, de ser criticada, e está sendo operada dentro de uma mesma visão que rege a TV privada. Torço para que dê certo, mas estou cético quanto ao seu sucesso.

O Brasil ainda vai assistir à democratização da mídia?
Acho essa expressão equivocada. Você não democratiza a mídia. A mídia são os veículos. É preciso, sim, democratizar o mercado: não se pode permitir o monopólio, o oligopólio, o cartel, o acúmulo de propriedade de concessões, que a lei proíbe. Isso é o que tem que ser feito. O resto é por conta da sociedade civil. E nesse aspecto, a sociedade civil avançou muito. Se você for a uma banca de jornal, você vê a enorme quantidade de publicações. Por trás dos jornalões, das grandes emissoras, existe uma explosão de mídias. A imprensa hoje é muito heterogênea. Você tem revista de filosofia, de esporte, de turismo, de moda, várias de história, de ciência, de tudo o que você possa imaginar. Tem a internet. E isso é mídia, muito mais diversa do que há dez anos. Além disso, há um pouco mais de massa crítica. Sempre houve esse movimento, como a Frente Nacional pela Democratização da Comunicação. Mas, agora temos o movimento das rádios comunitárias, observatórios de mídia, ongs. E foi nesse contexto que o governo conseguiu criar a lei da TV pública.

O STF e Lei de Imprensa

Responsável pela liminar que derrubou 22 pontos da Lei de Imprensa, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto admite a possibilidade de propor, no julgamento final, a suspensão integral da lei. Caso avalie que todos os pontos afrontam a Constituição de 1988, proporá sua derrubada. "Se eu chegar à conclusão que nenhum dispositivo escapa, sem dúvida proporei isso", afirmou ao Estado.

Britto deu a liminar anteontem a uma ação do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) que pediu a suspensão de artigos da lei, que é de 1967, época da ditadura. Com ela, ficam suspensos todos os processos judiciais em andamento que invocam a lei e decisões que se baseiam nos artigos derrubados.

O plenário do STF terá agora de julgar o mérito da ação de Miro. A data ainda não foi marcada, mas é nesse julgamento que os ministros podem decidir acabar com a validade da Lei de Imprensa.

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Com sua decisão, a Lei de Imprensa está adequada à democracia?
Não, não está. É uma lei que nasceu de uma ordem constitucional que se contrapõe à ordem constitucional de hoje, da era 1988. Por isso muitos de seus dispositivos entram em rota mortal de colisão com a atual Constituição.

Por quê?
A lei cuida da imprensa e tem por objeto de regulação a imprensa, mas a partir de uma ordem constitucional que não tinha a imprensa na mais alta conta. E agora a ordem constitucional tem a imprensa na mais alta conta. Então é natural que a lei esteja em descompasso com a Constituição. A Constituição fez da imprensa a irmã siamesa da democracia. Elas caminham juntas. Uma se alimenta da outra, uma é servente da outra. É uma relação de mútuo proveito.

Não demorou muito para alguém contestar essa lei?
Pois é. São as coisas da vida. A lei prorroga a vida indevidamente de uma Constituição vencida. Em termos de imprensa, essa lei, em boa parte, não totalmente, prolonga a vida de uma ordem constitucional superada. O que foi que fiz? Entendi que, mesmo sendo uma lei de 1967, ainda assim urgia suspender certas decisões judiciais proferidas com base em alguns dispositivos dela, porque não se pode perder nenhuma oportunidade de sair em defesa de uma instituição que é a imprensa, que a atual ordem constitucional tanto preza. Então entendi que havia perigo na demora da prestação jurisdicional. Se eu não decidisse imediatamente, poderia permitir que por mais alguns dias ou por mais alguns meses essa lei continuasse sendo aplicada.

Inclusive nessas várias ações judiciais da Igreja Universal contra meios de comunicação?
Pois é isso. Havia periculum in mora (perigo da demora) sim. Por esse perigo na demora da prestação jurisdicional é que eu resolvi afastar (os artigos da lei). Agora é uma decisão que o plenário é que vai dar a última palavra. A minha decisão foi apenas um pronto-socorro jurídico à liberdade de comunicação e de informação.

Mas por que o sr. não optou por suspender toda a lei?
Havia pedidos alternativos. Eu acolhi um deles, porque foi uma decisão singular. Eu resolvi suspender os processos e decisões que, a meu sentir, mais imediatamente cerceavam a liberdade de imprensa e a livre atuação profissional do jornalista. Outros aspectos mais abrangentes deixo que o STF aprecie no devido tempo.

É possível que toda a lei caia?
Ah, sim. Aí terei de fazer análise mais acurada, mais detida. E se chegar à conclusão que nenhum dispositivo escapa, sem dúvida proporei isso. Mas ainda não fiz essa análise, não dissequei toda a Lei de Imprensa.

Mas o sr. admite que há alguns artigos que continuam vigorando e não condizem com a Constituição, como o que proíbe a circulação de jornais que "atentem contra a moral e os bons costumes"?
Sem dúvida. Se na ação esse artigo estivesse, eu teria também atendido ao pedido. Outros artigos escaparam por enquanto, mas não resistirão por certo à análise detida, à luz da atual Constituição. A Constituição atual é meritória superlativamente pelo modo como tratou a imprensa. A liberdade de expressão, a liberdade de comunicação, o acesso à informação, o sigilo da fonte, a proibição de censura, tudo isso é um punhado de comandos constitucionais do mais alto valor. A imprensa é para ser azeitada, estimulada, desembaraçada. Sem isso não há democracia. Dois dos mais visíveis, vistosos pilares da democracia brasileira hoje são a informação em plenitude e de máxima qualidade e, em segundo, a visibilidade do poder, o poder desnudo.

Nesse sentido, a Constituição de 1988 foi um avanço?
Isso é avanço. Foi a superação de uma época de obscurantismo, de autoritarismo, de atraso mental. A imprensa cumpre esse papel de arejar as mentes. Eu não me canso de dizer que o Brasil experimenta uma quadra de arejamento mental, de depuração mental por efeito da democracia. Quando fazemos uma viagem democrática, é uma viagem sem volta, não se admite retrocesso.

Seria melhor o Congresso aprovar rapidamente uma nova lei?
Vivemos num mundo que se caracteriza pela velocidade das comunicações. As instituições interagem com rapidez, uma inspira a outra. Então quem sabe essa decisão sirva de motivação para o retomar da futura Lei de Imprensa. Que esse tipo de decisão sirva de motivação para esse retomar de estudos sobre o projeto de lei que tramita no Congresso e tenhamos celeridade maior.

Liberdade e autonomia

Manuel Castells é um dos sociólogos internacionais que mais estuda a sociedade da informação. Sua trilogia A era da informação: economia, sociedade e cultura já foi traduzida para 23 línguas. Depois de ter lecionado por 24 anos na Universidade da Califórnia, em Berkeley, desde 2001 ele dirige o departamento de pesquisa da Universidade Aberta da Catalúnia. Seu estudo mais recente chama-se Projeto Internet Catalúnia. Durante seis anos, por meio de 15 mil entrevistas pessoais e 40 mil via internet, Castells analisou as mudanças que a internet produziu na cultura e na organização social. O pesquisador acaba de publicar, com Marina Subirats, a obra 'Mulheres e homens: um amor possível?', onde aborda o impacto da web. Nesta entrevista concedida ao Jornal El País, Castells revela os principais pontos da pesquisa.

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Esta pesquisa mostra que a internet não favorece o isolamento, como muitos acreditam. Pelo contrário, ela revela que as pessoas que usam, por exemplo, as salas de bate-papo são as mais sociais.
Manuel Castells
– Exatamente, o que para nós não é nenhuma surpresa. A surpresa é que esse resultado tenha sido recebido com espanto. Há, pelo menos, 15 estudos importantes no mundo que revelam o mesmo resultado.


Por que acredita-se exatamente ao contrário?
Manuel Castells – Os meios de comunicação tem muito a ver com isso. Todos sabemos que, para a mídia, o que é mais notícia é a notícia negativa. Você utiliza a internet e seus filhos também. Mas é mais interessante acreditar que ela está cheia de terroristas, de pornografia… Pensar que ela é um fator de alienação é mais interessante do que dizer que a web é a extensão de nossas vidas. Se você é sociável, será mais sociável. Se não é, a internet lhe ajudará um pouquinho, mas não muito. De certa forma, os meios de comunicação expressam o que a sociedade pensa. A questão é: por que a sociedade pensa assim?


Por que tem medo do novo?
Manuel Castells – Exatamente. Mas medo de quem? A velha sociedade tem medo da nova. Os pais dos seus filhos. As pessoas que têm o poder ancorado num mundo tecnológico, social e culturalmente antigo do poder que pode destabilizá-las, do poder que não entendem, controlam e que percebem como perigoso. A internet é um instrumento de liberdade e de autonomia. O fato é que o poder sempre foi baseado no controle das pessoas, por meio do controle do acesso à informação e à comunicação. Mas isto, com a web, acaba. A internet não pode ser controlada.


Vivemos numa sociedade onde a gestão da visibilidade na esfera pública midiática, como define John J. Thompson, se converteu na principal preocupação de qualquer instituição, empresa ou organismo. Mas o controle da imagem pública requer meios que sejam controláveis. Mas nesse sentido, e se a internet não é …
Manuel Castells – Não, não é controlável. E isso explica porque os poderes têm medo da internet. Participei de várias comissões que assessoravam governos e instituições internacionais nos últimos 15 anos. A primeira pergunta que os governos faziam era: como podemos controlar a internet? A resposta é sempre a mesma: não se pode. Pode se vigiar, mas não controlar.


Se a internet é tão determinante na vida social e econômica das pessoas, seu acesso pode ser o principal fator de exclusão?
Manuel Castells – Não. O mais importante ainda é o acesso ao trabalho e à carreira profissional, bem como o acesso à educação. Sem educação, a tecnologia não serve para nada. Na Espanha, a chamada exclusão digital é uma questão de idade. Os dados são bem claros: entre os maiores de 55 anos, somente 9% são usuários da internet. Mas entre os menores de 25 anos, 90% navegam regularmente.

O acesso integral é, portanto, uma questão de tempo?
Manuel Castells – Quando minha geração desaparecer não haverá mais esta exclusão digital no que diz respeito ao acesso. Mas na sociedade da internet, o complicado não é saber navegar, mas saber onde ir, onde buscar o que se quer encontrar e o que fazer com o que se encontra. Isso requer educação. Na realidade, a internet amplifica a velha exclusão social da história: que é a educação. A verdadeira exclusão digital é o fato de que 55% dos adultos não tenham completado, na Espanha, a educação secundária.


Nesta sociedade que tende a ser tão líqüida, na expressão de Zygmunt Bauman, em que tudo muda constantemente e que é cada vez mais globalizada, o senhor acredita que a sensação de insegurança vem aumentando?
Manuel Castells – Há uma nova sociedade que busquei definir teoricamente com o conceito de sociedade-rede e que não está distante da que define Bauman. Creio que, mais que líqüida, é uma sociedade em que tudo está articulado de forma transversal e onde há menos controle das instituições tradicionais.

Em que sentido?
Manuel Castells – Admite-se a idéia de que as instituições centrais da sociedade, o Estado e a família tradicional já não funcionam. Então, o chão se move sob os nossos pés. Primeiro, as pessoas pensam que seus governos não as representam e que não são confiáveis. Começamos mal. Segundo, elas pensam que o mercado é bom para os que ganham e mau para os que perdem. Como a maioria perde, há uma desconfiança para o que a lógica pura e dura do mercado pode proporcionar às pessoas. Terceiro, estamos globalizados. Isso significa que nosso dinheiro está no fluxo global que não controlamos, que a população está submetida às pressões migratórias muito fortes, de modo que é cada vez mais difícil aglutinar as pessoas numa cultura ou nas fronteiras nacionais.

Qual é o papel da internet neste processo?
Manuel Castells – Por um lado, ao nos permitir acessar toda informação, ela aumenta a incerteza, mas, ao mesmo tempo, é um instrumento chave para a autonomia das pessoas, e isto é algo que demonstramos pela primeira vez na nossa pesquisa. Quanto mais autônoma é uma pessoa, mas ela utiliza a internet. Em nosso trabalho definimos seis dimensões de autonomia e comprovamos que quando uma pessoa tem um forte projeto de autonomia, em qualquer uma dessas dimensões, ela utiliza internet com muito mais freqüência e intensidade. E o uso da internet reforça, por sua vez, a sua autonomia. Mas, claro, quanto mais uma pessoa controla a sua vida, menos ela se fia nas instituições.

E maior então pode ser a frustração da pessoa pela distância que há entre as possibilidades teóricas de participação (o voto, por exemplo) e as que exerce na prática?
Manuel Castells – Sim, há um descompasso entre a capacidade tecnológica e a cultura política. Muitos municípios colocaram Wi-Fi de acesso. No entanto, se ao mesmo não são capazes de articular um sistema de participação, servem para que as pessoas organizem melhor as suas próprias redes, mas não para participar da vida política. O problema é que o sistema político não está aberto à participação, ao diálogo constante com os cidadãos, à cultura da autonomia. Portanto estas tecnologias contribuem para distanciar ainda mais a política da cidadania.

* Tradução de Marcus Tavares, do Rio Mídia (http://www.multirio.rj.gov.br/riomidia/).

Potencialidades para uma nova TV brasileira

A migração da TV analógica para a digital, bem como o interesse do Governo Federal em promover a televisão pública como motor de uma cidadania mais informada e participante, têm trazido inúmeras discussões sobre o potencial da TV para além do entretenimento. Em tempos de mudanças e expectativas, Tadao Takahashi, diretor geral do Instituto Sociedade da Informação (ISI) e Presidente do Conselho de Administração da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto ACERP/TVE Brasil), fala ao SESCTV sobre novos rumos, desafios e possibilidades de uma televisão interativa, de qualidade e democrática.

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Quais as implicações sociais, econômicas e culturais mais significativas trazidas pela mudança do sistema de TV analógico para o digital?
Do ponto de vista tecnológico, a televisão digital terrestre não é muito novidadeira, pois boa parte das funções que ela embute ou você tem na internet, ou na TV por assinatura de sinal fechado. O interessante da TV digital terrestre é a possibilidade de juntar essas funções em uma coisa só e ser de sinal aberto. Assim, 90% da população brasileira teriam acesso a um meio tecnológico bidirecional (o espectador recebe informações, mas pode também interagir com elas), tanto para entretenimento quanto como para serviços públicos e assim por diante. Então, há um potencial de democratização do acesso à informação, da possibilidade de buscar informação e não apenas ficar sentado recebendo. A combinação de interatividade com recepção de som e imagem em alta qualidade dá para a pessoa, ou para a residência, a possibilidade de ser uma espécie de passageiro inicial do mundo globalizado, da internet, sem o custo que a internet atualmente acarreta.

Quais as perspectivas da TV digital se tornar uma ferramenta de amplo alcance para combate à exclusão digital?
A função de comunicação da internet tende a ser cada vez mais forte. Acredito que, em 2015 ou 2020, todo mundo vai ter acesso à rede. Se não diretamente, via celular. Então, creio que o grande veículo de inclusão digital dos próximos cinco ou dez anos em países como o Brasil tende a ser o celular evoluído, e não a televisão com Internet ou a internet com a televisão. Por outro lado, mesmo o celular evoluído continuará tendo algumas limitações em função de sua característica primeira, que é facilidade de carregar. A tela continuará pequena, a capacidade de memória tende a ser menor do que um computador, dentre outros detalhes que vão acabar incentivando a televisão como meio de combinar transmissão de informação e interatividade. Em um horizonte de dez anos, vai ter atividades que remetem à inclusão digital do ponto de vista de televisão digital com interação, computador e Internet com banda larga, e certamente o celular também. Teremos uma combinação dessas três coisas.

Quais os impactos da TV Digital e da interatividade sobre a produção de conteúdo?
Vai mudar muita coisa na programação. O primeiro ponto é que o custo de produção possivelmente vai baixar, porque a infra-estrutura passa a ser digital. A produção daqui a dez anos tende a ser mais barata e tecnologicamente mais sofisticada, o que é muito interessante, porque uma pequena produtora de televisão vai conseguir produzir pequenos filmes e conteúdos de excelente qualidade. Por outro lado, a emissão propriamente dita tende a encarecer, porque se a emissora quer proporcionar algum tipo de interatividade, em 2015 ela precisará ser uma mistura de TV, call center e servidor de internet. Esse canal de retorno interativo vai demandar recursos tecnológicos e humanos que são caros. Então a coisa tende a ser muito interessante para pequenos produtores por um lado, e muito complexa e cara para grandes emissoras.

Mas essas novas fontes de produção de conteúdo, independentes das grandes emissoras, teriam espaço, de fato, no modelo de TV digital que está sendo discutido?
Teria espaço sim. Uma das idéias básicas da iniciativa do Governo Federal de implantar uma televisão pública de alcance nacional é que nos canais ditos educacionais você não teria propaganda, teria uma ambição pela qualidade, pela veiculação de conteúdos educacionais e culturais. Uma das coisas interessantes nesse modelo é justamente incentivar a produção independente descentralizada.

A idéia é que se você tiver uma pequena produtora, você pode fazer coisas com muita qualidade entrando em algum tipo de recurso ou programa do governo e teria espaço na grade de programação não só local, mas em escala nacional. Se a TV comercial continuar nesse modelo, e se uma televisão pública realmente começar a desafiar emissoras comerciais em termos de qualidade, mudanças poderão ocorrer. Por exemplo, programas culturais e educacionais como os do canal Futura, que hoje são veiculados apenas em sinal fechado, poderão migrar para o sinal aberto, no caso a Globo.

Ou seja, se todos esses fatores – TV pública, TV digital, público, pequenas produtoras – forem bem orquestrados e bem trabalhados, é possível pensarmos em uma revolução em termos de conteúdo e em termos de mentalidade em relação ao que é a TV.

Por que as discussões sobre uma TV pública de qualidade, que teoricamente já poderia ter sido implantada, têm estado tão interligadas às discussões sobre a TV digital?
Eu diria que por um lado há uma razão histórica e por outro há um senso de oportunidade. Quando olhamos a BBC ou a NHK japonesa, ficamos espantados com a qualidade de alguns programas. Claro, há coisas comerciais, mas não são a regra, como aqui no Brasil. Na verdade, essas emissoras foram estruturadas sob a égide do poder público antes dos canais comerciais. No caso do Brasil, o modelo foi o oposto: perseguimos o modelo americano. O primeiro canal a entrar no ar em 1950 foi a TV Tupi e o modelo era basicamente comercial. Embora tenhamos tido várias iniciativas de rádio, televisão educativa etc., elas nunca conseguiram nem os recursos nem a estabilidade nem a popularidade que os canais comerciais rapidamente ganharam. Essa é a razão histórica. Quanto ao senso de oportunidade, a TV digital cria espaço para se fazer uma campanha em torno de canais públicos, voltados para a qualidade e não para o entretenimento, que dêem lugar para novas produções. Se o governo não aproveitar a televisão digital que ele mesmo está implantando para criar de fato uma TV pública que mude a estrutura da programação televisiva no país, vai fazer isso quando?