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“Melhor o jornalismo, melhor a democracia”

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da USP, é conhecido pela contundência e acidez com que critica mídia e política. Na entrevista concedida ao SESCTV, sua crítica aparece como fruto de uma extensa experiência jornalística, sempre associada à reflexão e à pesquisa.

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Qual a relação entre jornalismo e democracia?
Não há democracia sem a livre circulação de opiniões, sem o debate público e você não consegue fazer isso sem ter uma imprensa livre e diversificada. Quanto melhor o jornalismo, melhor a democracia. Do lado oposto, a primeira coisa que precisa ser suprimida para acabar com a democracia é a liberdade de informação. Então as coisas estão muito ligadas.


Você faz muitas críticas à mídia de forma geral. Mas, até que ponto a imprensa define a opinião do leitor/espectador?
O jornalismo vive uma contradição porque ele é um direito inerente às pessoas, à democracia, mas, é também uma indústria. E os grandes jornais, as grandes revistas e as grandes cadeias de televisão são empresas que querem lucro, e têm interesses políticos. O espaço público é um espaço de disputa permanente de grupos de interesse e também um campo de divergências ideológicas naturais, legítimas. Então, uma certa dose de manipulação é praticamente intrínseca ao jornalismo, que por sua vez é uma atividade muito subjetiva: não existe uma verdade sobre os fatos, existem maneiras de vê-los. Por isso, sempre prego, do ponto de vista do jornalismo, a necessidade da honestidade. Você pode tratar o fato como quiser, desde que seja honesto, não distorça a informação. No caso brasileiro, o que acontece hoje é que a imprensa está fazendo tantas jogadas – desonestas – que ela se descolou completamente da realidade. Nas notícias atuais, tudo aparece como negativo, enquanto a vida do povo está melhorando. Nesses casos, quando as informações veiculadas na mídia estão muito descoladas da realidade, a mensagem não é aceita, e a mídia destrói sua própria influência porque exagerou na manipulação. Foi isso que eu acho que aconteceu na reeleição do Lula, que venceu mesmo com a campanha negativa sobre sua re-candidatura.


E você atribui essa má qualidade a quê?
São vários fatores. Praticamente metade do que é publicado nos jornais são matérias de denúncias que muitas vezes não são nem comprovadas, mas tudo é colocado em suspensão. A mídia está moralista, denuncista, anti-governo, e apressadinha. Por exemplo, vi uma notícia de que tantos por cento dos eleitores são analfabetos e não têm nem mesmo o ensino fundamental completo. Então, um crítico da mídia foi lá pesquisar os dados e não era nada disso. O dado se referia a um momento passado em que as pessoas se inscreveram para obter o título de eleitor e declararam o grau de escolaridade. Mas não é o grau de escolaridade que têm hoje, porque muitos eleitores se inscrevem com 18 anos, 16 anos.

Qual o papel da televisão na percepção e na definição do espaço público?
Todos dizem que a televisão tem um papel dominante justamente por estar presente em praticamente todos os lares brasileiros. Mas eu acredito que este papel está se modificando hoje, porque há uma grande fragmentação da televisão, e há uma maior diversidade de mensagens. Acho também que a influência do rádio é muito minimizada. O que está em todo lugar hoje não é bem a televisão. É, na verdade, a imagem televisiva. Você entra no elevador, no ônibus, no metrô e tem uma telinha. É como se ela fizesse parte do meio ambiente. O homem moderno se forma no ambiente midiático. Hoje, a criança de seis ou sete anos já sabe operar um computador. A mídia não apenas informa, ela forma a pessoa. Ela é o próprio espaço público.


Mas é um espaço público dentro de um sistema de interesses privados…
Essa confusão entre público e privado sempre existiu. Por exemplo, fala-se muito da vida privada de um político – que está com câncer, que tem uma amante. Mas é de interesse público ou privado? Esse conflito é clássico no jornalismo e é resolvido caso a caso. Mas o que acontece atualmente é uma coisa diferente, mais profunda. Houve quase que a destruição da demarcação entre público e privado com a internet. Porque na internet – e correlatos, como, celulares, palm top etc. – não há um protocolo que defina o que é correspondência privada e o que é pública. É tudo misturado no mesmo meio, usando os mesmo recursos. Um email pode transmitir um manifesto político, mas também pode ser uma mensagem privada. Ninguém pede licença para te mandar nada, invadem sua caixa postal. Houve uma destruição de várias demarcações e o que a internet fez nesse sentido é uma verdadeira revolução: dissolução entre público e privado, entre quem é jornalista e quem não é, entre leitor e escritor. Precisamos recriar a demarcação entre público e privado.

Como você avalia a chegada da TV pública?
É muito importante que ela seja construída, implementada. É uma coisa que está na Constituição: criar um sistema público de rádio e de televisão. Mas, na minha opinião, está muito na defensiva, envergonhada, com medo de errar, de ser criticada, e está sendo operada dentro de uma mesma visão que rege a TV privada. Torço para que dê certo, mas estou cético quanto ao seu sucesso.

O Brasil ainda vai assistir à democratização da mídia?
Acho essa expressão equivocada. Você não democratiza a mídia. A mídia são os veículos. É preciso, sim, democratizar o mercado: não se pode permitir o monopólio, o oligopólio, o cartel, o acúmulo de propriedade de concessões, que a lei proíbe. Isso é o que tem que ser feito. O resto é por conta da sociedade civil. E nesse aspecto, a sociedade civil avançou muito. Se você for a uma banca de jornal, você vê a enorme quantidade de publicações. Por trás dos jornalões, das grandes emissoras, existe uma explosão de mídias. A imprensa hoje é muito heterogênea. Você tem revista de filosofia, de esporte, de turismo, de moda, várias de história, de ciência, de tudo o que você possa imaginar. Tem a internet. E isso é mídia, muito mais diversa do que há dez anos. Além disso, há um pouco mais de massa crítica. Sempre houve esse movimento, como a Frente Nacional pela Democratização da Comunicação. Mas, agora temos o movimento das rádios comunitárias, observatórios de mídia, ongs. E foi nesse contexto que o governo conseguiu criar a lei da TV pública.