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Imagens sem poesia

Um dos mais importantes artistas gráficos brasileiros, Elifas Andreato é um autodidata. Alfabetizou-se na adolescência, trabalhou como operário, aos vinte e poucos anos iniciou uma carreira vertiginosa na Editora Abril, foi militante político durante a ditadura. Tornou-se referência no meio artístico e intelectual e foi professor da Universidade de São Paulo. Amante da música brasileira, fez célebres capas de vinis para artistas consagrados, de Pixinguinha a Zeca Pagodinho, passando por Toquinho, Chico Buarque, Paulinho da Viola e muitos outros. Hoje, dirige a Andreato Comunicação. O que poucos sabem é que realizou vários trabalhos para a televisão. Nesta entrevista, Elifas Andreato fala de estética visual e linguagem artística na TV a partir de sua trajetória.

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Você se tornou um dos maiores nomes das artes nacionais sem nunca ter tido uma relação formal com os estudos, ou mesmo com as artes plásticas. Como foi esse processo?
Venho da área rural do Paraná. Quando meu pai ficou doente, no final da década de 1950, viemos para São Paulo; éramos seis irmãos. Ele praticamente abandonou a família e eu, mais velho, com 12 para 13 anos, trabalhava para ajudar minha mãe. Morávamos na Vila Anastácia, bairro industrial, onde trabalhava como operário – e também desenhava no jornal da fábrica. Um dia, transformaram o refeitório em salão de festas e um gerente me pediu para decorar os bailes. Eu esticava papel Kraft numa moldura e cada semana fazia um desenho diferente. Com esse trabalho, fiquei conhecido em toda a Lapa, fui até para a televisão como “menino prodígio”. Aquela fama não parecia real para mim e continuei trabalhando ali. Mais ou menos nessa época, com 15 para 16 anos, aprendi a ler num curso de alfabetização para adultos. Pouco depois, uns ingleses vieram visitar a fábrica e ficaram encantados com o cenário que eu havia feito.  Quando descobriram que eu era apenas um menino, me deram uma indenização para estudar artes. E assim deixei a vida de operário. Mas não fui estudar e meu pai bebeu todo o dinheiro. Aí fui trabalhar no que podia. Foi nessa época o meu primeiro trabalho na TV, como assistente de cenografia do programa Eu Show Luís Vieira, na Record. A TV não me pagava, fui então para uma agência de publicidade e pouco depois fui parar na Abril. Descobri um mundo, desenhava sem parar: tinha tinta, pincel, papéis e a generosidade de uma porção de grandes jornalistas. Foi minha grande escola. Me adotaram, mas eu tinha só 26 anos! Era um moleque e não queria ser capataz. Se eu tivesse ficado lá, teria ficado rico e virado um dos grandes diretores. Eles estavam me preparando para isso, mas eu não queria aquela vida. Dois anos depois que saí de lá, explodi: fiz capas de discos, livro, teatro… E por aí foi.

Seu trabalho artístico é reconhecido em diversas áreas culturais, mas você chegou também a realizar algumas coisas para a televisão. Quais foram esses trabalhos?
O começo disso está lá atrás, no Eu Show Luís Vieira, como falei. Nessa época também cheguei a fazer os slides do canal 3, que era a TV Cultura do Chateaubriand. Eu desenhava esses slides, que eram a propaganda do momento, uns cartões focados pelas câmeras. Depois me afastei completamente e só em 1979, ano internacional da criança, escrevi uma história para a Declaração dos Direitos da Criança e fiz a Arca de Noé, com o Toquinho. Nessa época fiz também a cenografia da Ópera do Malandro, na TV Tupi. Em 1987, convenci a Globo a transformar num especial de TV o que inicialmente eu tinha concebido como uma peça de teatro para escolas públicas, que acabou virando o programa Canção de Todas as Crianças. Já tinha sido cenógrafo e assessor do programa Som Brasil. Criei e organizei, junto com a TV Globo, a Primeira Semana Elis Regina e a Semana de Arte Paulista. Coisas desse tipo.

Como foi realizar esses trabalhos, no sentido de adaptar sua arte à linguagem televisiva?
Foi bastante dramático, principalmente no que se refere ao especial Canção de Todas as Crianças. Com muita insistência, consegui convencer a emissora a exibir isso. Fui sacaneado do começo ao fim e fiz literalmente tudo – cenário, produção, maquete, abertura, até a locução final. Tive dificuldade em emplacar o roteiro, que eles queriam mudar a qualquer custo, achavam que os atores convidados não participariam – e todos participaram, nomes como Lima Duarte, Chico Anísio, Marieta Severo. Enfim, tudo foi feito com muito sacrifício. Depois, o Silvio Santos me chamou para transformar aquele especial em programa infantil, com os meus personagens, no SBT. E foi um desastre total. Isso era em 1988, 1989 e eu fui lá discutir meio ambiente, ecologia, direitos da criança. Acabei me tornando um E.T., a começar pelo fato de que eu proibia merchandising nocivo aos pequenos. Isso significava ausência de jabá e, conseqüentemente, descontentamento da equipe. Bom, eu tinha um personagem extraordinário: um mímico, em homenagem ao Chaplin, chamado Charlito. Ele fazia o papel de ensinar higiene pessoal, meio ambiente, e não usava uma palavra, apenas gestos e poesia. Era um personagem artístico, delicado. E as crianças o adoravam. Mas percebi que nada daquilo daria certo porque um dia me chamaram e disseram assim: “o mudinho tem que sair”. Eu disse: “o quê?”. E eles: “olha, TV é para ouvir, o mudinho precisa sair”. Quer dizer, não tinha lugar para o encantado, para outra forma de imagem, mais sutil, mais poética. E acho isso exemplar porque reflete exatamente aquilo que a TV deixa de lado hoje.

Como você vê essa questão da estética visual na TV atualmente? Existe espaço para experimentação artística?
A TV é essencialmente redundância, repetição. Vemos programas de televisão que eu via quando vim morar em São Paulo. Mudaram um pouco, a tecnologia evoluiu, mas são essencialmente os mesmos. Mas, para falar de estética e televisão, precisamos também separar claramente o que é TV comercial e o que não é. Porque nas emissoras abertas, a busca pela audiência é uma luta encarniçada que não deixa espaço para mais nada. Há exceções, claro, mas o grosso da produção a que a maioria da população tem acesso é lixo puro. A estética é medonha, porque mostra um certo hiper-realismo, representações que tornam tudo aquilo muito explícito, nivelado por baixo. E isso se dá em função de uma busca desenfreada pela hegemonia da audiência. A lógica comercial dessa busca não permite experimentações, novidades ou sutilezas no que se refere à estética. Se hoje temos TV de alta definição, é para mostrar esse lixo com mais nitidez. Além disso, arte para mim é aquilo que alguns seres humanos são capazes de produzir e que toca as outras pessoas, é uma deliberada intenção de melhorar o mundo. E não parece não haver muito espaço para isso na televisão aberta.

Regionalização da programação: o Brasil não conhece o Brasil

Pergunte a um morador de Rio Branco, no Acre, onde fica o Leblon. Ele dirá, sem titubear, que este é um bairro do Rio de Janeiro e ainda descreverá sua paisagem. Experimente fazer o inverso: pergunte a um carioca onde ficam o 1o e o 2o distritos. É quase certo que nada se ouvirá. Um dos principais motivos para exemplos como esse serem tão comuns está na maneira como se constrói a programação televisiva no país.

Criada com caráter local nos anos 50, a televisão se difundiu nos anos 60 e 70 estimulada pelos governos militares, que viam nela uma missão integradora. Emissoras das cinco regiões brasileiras tornaram-se afiliadas das cabeças-de-rede, aquelas instaladas em regiões de forte industrialização e urbanização. Até hoje, todas as redes nacionais têm sede no Rio ou em São Paulo. As emissoras regionais tornaram-se simples reprodutoras de conteúdo, com uma mínima grade de programação local.

Muitas vezes as emissoras locais se resumem a gerentes comerciais; retransmitem a produção nacional e ganham o slogan da empresa nacional, usando essa marca para vender seus anúncios locais. As afiliadas ficam sem o custo de produção e as cabeças-de-rede ganham em dobro. Amortizam parte do valor já investido e aumentam o público que recebe as mensagens de seus anunciantes.

A defesa da regionalização da programação da televisão não parte de uma leitura “folclórica” da realidade, mas do fato de que é por meio da expressão do cotidiano local que os cidadãos podem construir significados e se reconhecer nos meios de comunicação. Hoje, os pontos de vista que circulam e se consolidam na opinião pública são geralmente de especialistas do sudeste. O mesmo fenômeno se repete no campo dos valores e da cultura. As novelas, por exemplo, há 40 anos difundem diariamente os valores da classe média-alta paulistana e carioca para o restante do Brasil. As poucas exceções, em geral, tendem a reforçar estereótipos, como os tipos e sotaques nordestinos.

Nesse contexto, a presença da diversidade cultural na telas significa ao mesmo tempo garantir o conhecimento das diferentes realidades do Brasil e viabilizar que essas diferentes realidades tenham espaço similar na construção da opinião pública. A regionalização é ainda um estímulo ao mercado de produção local, criando trabalho para jornalistas, produtores e técnicos.

Dependendo do objetivo, pode haver diferentes interpretações do que significa regionalizar a programação. Pode ser a realização do programa naquela região, sobre aquela região, feito por produtores locais ou ainda qualquer combinação dessas três variantes. O importante é a referência da regionalização como um elemento fundamental para garantir o direito humano dos diversos cidadãos a ter voz.

A questão é que essa regionalização não se dá espontaneamente. Produzir localmente é mais custoso do que simplesmente reproduzir a programação. Além disso, a ausência de limites legais faz com que uma afiliada possa transmitir 100% da programação da cabeça-de-rede, sem nenhuma inserção de programação local.

Assim, fica evidente a necessidade de que se dê suporte legal à regionalização.  Embora o artigo 221 da Constituição Federal estabeleça que as emissoras devam atender ao princípio da “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”, até hoje essa obrigação não foi regulamentada. Desde 1991, há um projeto de lei em debate no Congresso Nacional sobre o assunto, mas por conta da pressão dos donos das emissoras de TV, ele até hoje não foi aprovado.

Além das motivações econômicas, a resistência das emissoras está baseada numa combinação de preconceito e espírito civilizatório. Em 1996, Luiz Eduardo Borgerth, à época vice-presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), declarou à revista da própria entidade que “[a regionalização da programação] é um absurdo, pois implica condenar a população das localidades distantes a ficar vendo eternamente seu bumba-meu-boi”.

Na última década, estudos mostram que algumas emissoras passaram a investir mais na produção local, por verificar que o público tem grande interesse em conteúdos que dialoguem com sua realidade. No entanto, essa mudança é pontual, e acontece apenas onde é economicamente vantajosa. Mesmo assim, com a diminuição do custo de produção, há um aumento da produção audiovisual local, que todavia não encontra janelas de exibição. Sem a regulamentação da Constituição, o Brasil segue refém dos interesses comerciais das emissoras e o cidadão segue sem saber onde ficam o 1o e o 2o distritos.

* João Brant é membro do Intervozes. Mestre em regulação e políticas de comunicação pela LSE (Londres).
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Rosário de Pompéia é membro do Intervozes e jornalista do Centro de Cultura Luiz Freire. Mestranda em Comunicação Social pela UFPE.

Potencialidades para uma nova TV brasileira

A migração da TV analógica para a digital, bem como o interesse do Governo Federal em promover a televisão pública como motor de uma cidadania mais informada e participante, têm trazido inúmeras discussões sobre o potencial da TV para além do entretenimento. Em tempos de mudanças e expectativas, Tadao Takahashi, diretor geral do Instituto Sociedade da Informação (ISI) e Presidente do Conselho de Administração da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto ACERP/TVE Brasil), fala ao SESCTV sobre novos rumos, desafios e possibilidades de uma televisão interativa, de qualidade e democrática.

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Quais as implicações sociais, econômicas e culturais mais significativas trazidas pela mudança do sistema de TV analógico para o digital?
Do ponto de vista tecnológico, a televisão digital terrestre não é muito novidadeira, pois boa parte das funções que ela embute ou você tem na internet, ou na TV por assinatura de sinal fechado. O interessante da TV digital terrestre é a possibilidade de juntar essas funções em uma coisa só e ser de sinal aberto. Assim, 90% da população brasileira teriam acesso a um meio tecnológico bidirecional (o espectador recebe informações, mas pode também interagir com elas), tanto para entretenimento quanto como para serviços públicos e assim por diante. Então, há um potencial de democratização do acesso à informação, da possibilidade de buscar informação e não apenas ficar sentado recebendo. A combinação de interatividade com recepção de som e imagem em alta qualidade dá para a pessoa, ou para a residência, a possibilidade de ser uma espécie de passageiro inicial do mundo globalizado, da internet, sem o custo que a internet atualmente acarreta.

Quais as perspectivas da TV digital se tornar uma ferramenta de amplo alcance para combate à exclusão digital?
A função de comunicação da internet tende a ser cada vez mais forte. Acredito que, em 2015 ou 2020, todo mundo vai ter acesso à rede. Se não diretamente, via celular. Então, creio que o grande veículo de inclusão digital dos próximos cinco ou dez anos em países como o Brasil tende a ser o celular evoluído, e não a televisão com Internet ou a internet com a televisão. Por outro lado, mesmo o celular evoluído continuará tendo algumas limitações em função de sua característica primeira, que é facilidade de carregar. A tela continuará pequena, a capacidade de memória tende a ser menor do que um computador, dentre outros detalhes que vão acabar incentivando a televisão como meio de combinar transmissão de informação e interatividade. Em um horizonte de dez anos, vai ter atividades que remetem à inclusão digital do ponto de vista de televisão digital com interação, computador e Internet com banda larga, e certamente o celular também. Teremos uma combinação dessas três coisas.

Quais os impactos da TV Digital e da interatividade sobre a produção de conteúdo?
Vai mudar muita coisa na programação. O primeiro ponto é que o custo de produção possivelmente vai baixar, porque a infra-estrutura passa a ser digital. A produção daqui a dez anos tende a ser mais barata e tecnologicamente mais sofisticada, o que é muito interessante, porque uma pequena produtora de televisão vai conseguir produzir pequenos filmes e conteúdos de excelente qualidade. Por outro lado, a emissão propriamente dita tende a encarecer, porque se a emissora quer proporcionar algum tipo de interatividade, em 2015 ela precisará ser uma mistura de TV, call center e servidor de internet. Esse canal de retorno interativo vai demandar recursos tecnológicos e humanos que são caros. Então a coisa tende a ser muito interessante para pequenos produtores por um lado, e muito complexa e cara para grandes emissoras.

Mas essas novas fontes de produção de conteúdo, independentes das grandes emissoras, teriam espaço, de fato, no modelo de TV digital que está sendo discutido?
Teria espaço sim. Uma das idéias básicas da iniciativa do Governo Federal de implantar uma televisão pública de alcance nacional é que nos canais ditos educacionais você não teria propaganda, teria uma ambição pela qualidade, pela veiculação de conteúdos educacionais e culturais. Uma das coisas interessantes nesse modelo é justamente incentivar a produção independente descentralizada.

A idéia é que se você tiver uma pequena produtora, você pode fazer coisas com muita qualidade entrando em algum tipo de recurso ou programa do governo e teria espaço na grade de programação não só local, mas em escala nacional. Se a TV comercial continuar nesse modelo, e se uma televisão pública realmente começar a desafiar emissoras comerciais em termos de qualidade, mudanças poderão ocorrer. Por exemplo, programas culturais e educacionais como os do canal Futura, que hoje são veiculados apenas em sinal fechado, poderão migrar para o sinal aberto, no caso a Globo.

Ou seja, se todos esses fatores – TV pública, TV digital, público, pequenas produtoras – forem bem orquestrados e bem trabalhados, é possível pensarmos em uma revolução em termos de conteúdo e em termos de mentalidade em relação ao que é a TV.

Por que as discussões sobre uma TV pública de qualidade, que teoricamente já poderia ter sido implantada, têm estado tão interligadas às discussões sobre a TV digital?
Eu diria que por um lado há uma razão histórica e por outro há um senso de oportunidade. Quando olhamos a BBC ou a NHK japonesa, ficamos espantados com a qualidade de alguns programas. Claro, há coisas comerciais, mas não são a regra, como aqui no Brasil. Na verdade, essas emissoras foram estruturadas sob a égide do poder público antes dos canais comerciais. No caso do Brasil, o modelo foi o oposto: perseguimos o modelo americano. O primeiro canal a entrar no ar em 1950 foi a TV Tupi e o modelo era basicamente comercial. Embora tenhamos tido várias iniciativas de rádio, televisão educativa etc., elas nunca conseguiram nem os recursos nem a estabilidade nem a popularidade que os canais comerciais rapidamente ganharam. Essa é a razão histórica. Quanto ao senso de oportunidade, a TV digital cria espaço para se fazer uma campanha em torno de canais públicos, voltados para a qualidade e não para o entretenimento, que dêem lugar para novas produções. Se o governo não aproveitar a televisão digital que ele mesmo está implantando para criar de fato uma TV pública que mude a estrutura da programação televisiva no país, vai fazer isso quando?

Qualidade na TV?

A qualidade da programação é determinada pela audiência? Ou a audiência determina a qualidade da programação? Na entrevista deste mês, Esther Hamburger, antropóloga e professora do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), mostra como esse falso “dilema do ovo e da galinha” é construído e distorce a relação entre emissoras de televisão, público e pesquisas de audiência. Fala também sobre mecanismos de regulamentação e o que seria uma programação de qualidade, que foge ao estereótipo do que é estabelecido como o “gosto da audiência”.

As emissoras, quando questionadas pelos críticos de TV a respeito da má qualidade da programação, rebatem dizendo que veiculam aquilo que o público quer assistir, medido pela audiência. Como você vê essa questão?
Na resposta das emissoras a essas críticas está embutida a idéia de que uma programação de qualidade não segura audiência. Acho isso um grande preconceito. A televisão brasileira já teve uma qualidade reconhecida dentro e fora do Brasil. Quem tem memória da televisão nos anos de 1980 e 1990, por exemplo, lembra que a TV aberta era tida como um veículo de aprendizagem, porque trazia muita informação. E as pesquisas de audiência são uma medida nesse jogo da interlocução entre as emissoras e o público. Acontece que esse padrão de medida, no caso brasileiro, era muito distorcido, e ainda é. Por exemplo, até o final dos anos de 1990, essas pesquisas, inclusive o Ibope, excluíam as populações de baixa renda por não serem consideradas consumidoras. O anunciante só estava interessado no público a partir de um determinado poder aquisitivo, daí essas populações ficarem de fora do sistema. E como no Brasil tudo é paradoxal, isso significou que a televisão nivelou sua programação por cima ou pela média em vez de nivelar por baixo, como é o caso da TV americana, que até recentemente era uma coisa de muito pouco interesse. O paradoxo está no fato de que a TV comercial em geral é pensada como “nivelada por baixo” – porque essencialmente não é para ser provocativa, ela visa à reprodução de consensos –, mas a TV brasileira, até o fim dos anos 90, nivelou pelo meio ou por cima, resultando em uma qualidade de programação melhor, que hoje se perdeu. E se perdeu por esse preconceito dos programadores. Hoje, se a grande maioria é reconhecida como consumidora, a audiência é nivelada por baixo.

Quem é essa audiência?
Tudo isso [a relação entre programador, público e as pesquisas de audiência] é, na verdade, um jogo imaginário, porque não existe audiência concretamente. Você não junta no Estádio do Morumbi a audiência da novela das oito. Audiência é uma categoria simbólica, não existe de fato. Você não toca nela, você não distribui um questionário para ela. Você faz um questionário para poucas pessoas que compõem um coletivo que você está inventando. Audiência é um conceito construído de acordo com algumas noções sobre quem é essa audiência. O Rubem Fonseca [escritor brasileiro] tem um conto muito interessante que se chama “Mulher”, e conta a estória de uma revista feita para um público chamado de “mulheres de classe C”. A redação é toda de homens e quem narra o conto é um jornalista demitido de uma seção policial de um jornal diário e que só consegue emprego naquela revista. Ele é contratado para cuidar de uma seção de cartas do leitor. Começa a inventar a personagem que ia responder às cartas e inventa também cartas que essa personagem recebe. Depois de um tempo, ele começa a receber cartas de verdade, com consultas de verdade. No fim da narrativa, vem um técnico de pesquisa de audiência e revela para aquela redação que o público deles não era de “mulheres de classe C”, como eles imaginavam e construíam. Eles atingiam, na verdade, “homens de classe B”. A última revelação do conto é que uma das pessoas que se correspondia com o jornalista era o próprio editor da revista, que era gay, tinha uma vida secreta e revelava isso nas cartas. Então, é legal pensar justamente esses desentendimentos que surgem a partir das distorções das pesquisas de audiência. O que se faz na TV aberta, muitas vezes, é imaginar um outro que você solenemente despreza.

Então, a suposta escolha da audiência não determina muita coisa…
Não. Acho que a programação é basicamente determinada pela produção, por quem controla a programação. O público tem capacidade para optar entre aquilo que vai ao ar na TV aberta. Mas essa capacidade de escolha do telespectador é muito limitada; há um menu bastante limitado de programas a serem escolhidos. E eles são muito parecidos entre si. Para falar em qualidade da programação, temos que pensar fundamentalmente em quem está produzindo. Sem dúvida isso é mais importante do que pensar no público, em um primeiro momento. Quem está produzindo é quem tem efetivamente a possibilidade de fazer algo interessante ou não.

Discutir qualidade na programação passa por determinar mecanismos de regulamentação para as emissoras e produtores?
Isso não tem a menor dúvida. E acho que a demanda do público não é só por medidas como a classificação indicativa, que gerou tanto debate. Acho bom de fato ter lá uma classificação indicativa, mas não acho que seja a principal questão, porque as pessoas são capazes de olhar e ver se querem que seus filhos assistam aquilo ou não. Acho que a demanda do público é por respeito e por uma programação que não subestime a inteligência das pessoas. É qualidade nesse sentido: uma programação estimulante, desafiadora, que faça crescer. É muito mais barato fazer um programa de auditório – não que não existam bons programas de auditório, mas é uma das coisas mais baratas que tem. E aí você coloca a culpa na audiência pela falta de investimento em programas de qualidade maior, mais elaborados. Agora, as melhores coisas na TV brasileira foram feitas com risco, já que não se enquadravam no que é veiculado normalmente. Mas acho que é isso que o público espera: coragem de quem detém a capacidade de produzir de inventar coisas novas.

O que seria uma programação de qualidade?
Não sei se qualidade é um termo bom. Não existe algo objetivo que a defina. O que pode ser bom para mim não é bom para o outro, por exemplo. Qualidade pode ser apenas a qualidade técnica, ou só qualidade ideológica – um bom programa que ninguém assiste por ser tecnicamente ruim, por exemplo. Então o que é uma coisa que escapa do estereótipo? Acho que é algo inteligente, como as séries Hoje é dia de Maria e Cidade dos Homens, o programa infantil Castelo Rá Tim Bum, só para citar algumas das muitas iniciativas que vemos por aí e que tiveram muita audiência. De certa forma, esses programas são “independentes” e representam a desproporcionalidade entre o que se tem de energia e capacidade de realização e aquilo que efetivamente ganha espaço de difusão na TV aberta.