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“Precisamos de uma lei que ajude o Direito a respeitar a internet”

O marco civil da internet, projeto de lei do governo que será enviado ao Congresso Nacional em agosto, virá com algumas novidades frente à consulta pública no que se refere às responsabilidades pelo conteúdo que trafega na Web. Conforme um dos coordenadores do projeto, Guilherme Almeida, chefe de gabinete da secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, o ministério ainda não se sente confortável com a posição de que só sejam retirados conteúdos do ar mediante decisão judicial, pois esta medida, se preserva a liberdade de expressão, pode prejudicar aqueles que querem se proteger dos abusos pornográficos.

A neutralidade da rede, se é um princípio previsto na proposta, deve, no entender de Almeida, ser regulada pela Anatel, agência responsável pela infraestrutura de telecomunicações. Quanto à proteção à privacidade dos dados, ele observa que a proposta também traz somente os princípios gerais, mas que a preservação dos dados individuais deve ser regulada por uma outra lei, que também está em discussão no Ministério da Justiça.  

Acabou a segunda rodada da consulta pública ao Marco Civil da Internet, que recebeu mais de mil contribuições. Quais são os próximos passos?
Analisar todos os cometários, fazer alterações nos artigos, manter integrado o texto. Consultar os órgãos de governo a respeito da versão final, e encaminhá-lo para o Congresso Nacional.

Será um projeto de lei simples ou complementar?
É um projeto de lei simples.

A dúvida é: se é um projeto de lei simples, ele não prevalece sobre as demais proposições que tramitam no Congresso Nacional, com propostas bem antagônicas. Por que então lançar mais um projeto?
Até por isso é que ele existe. Existem muitos projetos de lei que ignoram a natureza da internet. Por exemplo: tem projeto que obriga a cadastrar todos os e-mails enviados por 10 anos. É uma medida anacrônica e irreal para a internet. Ou eles vão travar a internet, ou vão ser desrespeitados. Entendemos que  seria necessária uma lei que tivesse uma camada de tradução, que ajudasse o Direito a respeitar  a internet.

Quando a minuta do projeto seráa enviada o Congresso Nacional?
A previsão é para o final deste mês. Mas considerando que ele ainda terá que ser aprovado por diferentes instâncias do governo, acredito que deverá ser encaminhado ao Legislativo no final de julho.

O governo pedirá que sua tramitação se dê em regime de urgência?
Acredito que não. Essa iniciativa será definida pela Casa Civil. Embora o pedido de urgência seja uma iniciativa do presidente Lula, acredito que é melhor o debate estar mais amadurecido.

Quais os princípios que nortearam o Ministério da Justiça na elaboração da proposta?
Trazer os usos e costumes da internet para serem reconhecidos pelo Direito. Questões como neutralidade da rede, proteção a dados pessoais, garantia da privacidade, liberdade de expressão, intimidade, segurança. Premissas e valores, a inimputabilidade dos meios de transmissão. Uma série de elementos da natureza da internet para que sejam interpretados pelo judiciário. Que possam ser usados por promotores, advogados em suas petições. E também pautar o debate legislativo a esse respeito.   

Há críticas sobre o alcance da proposta.
O projeto não se propõe a esgotar o tema. Por exemplo, ele não trata da comunicação social eletrônica de massa; certificação digital; direito autoral, spam, e uma dúzia de temas. Ele é uma base, a partir da qual esperamos que cada tema seja revisado segundo os seus  princípios. Ele não tem uma forma vinculante, mas deve pautar o debate.

Hoje existem dois movimentos importantes no mundo. Um, liderado pelos países europeus  questiona o livre download através do P2P.  Há outro movimento que quer maior  controle da internet aí envolvendo diferentes potências mundiais. Em minha avaliação, o projeto de lei do Ministério da Justiça está  na contramão destes movimentos, mais em prol da liberdade. Concorda?
Seu diagnóstico está  bom. Existe um conflito entre liberdade e controle na internet. É um dilema é legítimo: combate à criminalidade à honra a preservação do direito intelectual por um lado e a defesa da liberdade e direitos fundamentais de outro. Nossa função é tentar buscar um equilibrio, com a determinação de que os direitos fundamentais não sejam sonegados. O debate que busque a repressão, o controle, a criminalização, etc., pode ser duplamente perigoso: primeiro porque, com o argumento da segurança corre-se o risco de suprimir direitos fundamentais das pessoas. O segundo risco é da própria internet. O excesso de dominação e controle pode – caso da China – prejudicar a estrutura e desenvolvimento da rede.

No momento em que os países desenvolvidos tendem a um maior controle, de que forma esse movimento afeta o projeto brasileiro?
É uma resposta brasileira a esta situação.

Você acha que o Brasil não vai precisar passar por esta discussão?
Acho que o Brasil está apresentando para si e para o mundo um novo caminho possível de regulamentação. No âmbito internacional, está-se apontando para o maior controle como único caminho possível. Estamos tentando construir uma alternativa. Achamos importante algum grau de controle, procedimentos de segurança e cooperação internacional. Não somos contra, mas este não pode ser o principal argumento para regulamentar a internet.

Da mesma forma em que existe a discussão liberdade versus controle. Há também a questão liberdade versus privacidade. Nos últimos tempos temos assistido denúncias de usos indevidos das informações de seus usuários.  Como projeto trata a questão da privacidade?
Há uma lacuna ainda maior em nossa legislação. O Brasil não tem uma lei clara para a proteção de dados pessoais. Este é um passo importante e necessário. No ministério estamos trabalhando com o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) para formularmos um novo projeto de lei neste sentido. Este tema não estará presente do Marco Civil da Internet.

Por que não?
Porque o Marco Civil é  um projeto transversal. E a questão dos dados pessoais não  trata apenas da internet. O cartão de crédito, de  fidelidade, do banco, do mercado também carregam dados pessoais. Antecipamos no Marco Civil três premissas para internet: o princípio da privacidade, na forma da lei; o provedor de conexão não pode filtrar, monitorar o  tráfego que passa por ele. Ou seja, não cabe àquele que transporta violar a comunicação.

O princípio da inviolabilidade da comunicação está na Constituição
Só para as comunicações telefônicas e telemáticas. Queremos deixar claro para a internet. Outro ponto que deixamos claro refere-se ao destinatário da comunicação, com o princípio da auto-determinação afirmativa, dá ao titular dos dados o poder de decidir o que fazer com eles. Ou seja,  para se fazer  algo com os dados de alguém, tem que haver o consentimento da pessoa, e tem que ser livre, não compulsório, além de se informar com clareza sobre o seu  uso.

As polêmicas da proposta estão concentradas em três grandes temas: a neutralidade da rede; a guarda de registros e responsabilidades na remoção de conteúdo. Vocês já mexeram em uma delas, não?
Sim na de remoção de conteúdo. O “x” da questão é: na situação atual, não existe uma clareza sobre a responsabilidade civil daqueles que recebem conteúdos de terceiros. Em alguns casos eles respondem por comentário, postagem, etc. Seja pequeno ou grande portal.

Em relação à neutralidade da rede, também há um debate mundial. As empresas de telecomunicações alegam que há um desbalanceamento entre a procura por bits e oferta da infraestrutura. Elas não querem se meter no controle do conteúdo, mas argumentam que uma única corporação, ou produto, ou site que consumir 80% do tráfego da rede é um  privilegiado em relação aos pequenos provedores. Como o Marco Civil trata esta questão?
Ela é complexa, mas parte da lógica da não-discriminação. O que não quer dizer, por exemplo, que não se pode estabelecer que a pessoa que paga “x” tenha até 300 Kbps e a que paga “x” mais “y” tenha mais capacidade. Isto não quer dizer, que está-se ferindo a neutralidade da rede.

Mas em relação às grandes corporações? Exemplo: um site de busca, sei lá, consome 80% do tráfego da rede mundial. Outro que não consome, cai. Como lidar com isso?
É um tema que merece debates mais aprofundados e que a a sua exata regulamentação  tem um “q” de regulamentação de telecom.  Temos uma tarefa para a Anatel. A função do Marco Civil é apontar o fundamento legal que permita a regulamentação posterior. E que já estabeleça algumas vedações. Assim como a Lei Geral estabelece algumas obrigações de interoperabilidade, seria possível obter obrigações de não discriminação com mais clareza.

E o que o Marco Civil traz para esta questão?
Em primeiro lugar, traz a neutralidade da rede para a internet. Ele trata com uma premissa (artigo  12) de não discriminação de conteúdo em relação a sua origem, formato, padrão, protocolo, salvo por questões técnicas. Uma pessoa que compra um carro 1.0 não vai ter o mesmo potencial de correr em uma estrada do que uma pessoa com um carro 3.0, mas a estrada não deveria proibir que essa pessoa corresse menos do que a outra.

O problema é como você assegura isso?
Buscamos assegurar a não-discriminação como princípio geral. O detalhamento disto pode vir por normas de telecomunicações ou eventualmente pode-se estender para a  defesa do consumidor ou Ministério Público.

O marco Civil não remeteu esta questão à Anatel.
Há uma dúvida se deveríamos remeter esta questão à Anatel nesta lei, visto que a LGT já trata disso. Existe uma discussão maior sobre a natureza do provimento de serviço de internet. Uma discussão de fundo, que também o projeto não quis entrar ( se internet é SVA ou telecom). Não quisemos tratar de infraestrutura, mas da camada de garantia de direito e responsabilidades, poderes, deveres e restrições.

Em relação ao segundo tema polêmico, com a mudança feita ao longo da consulta pública, como ficou a proposta do Ministério?
A linha de fundo da proposta é que os que são meros intermediários da comunicação, que hospedam conteúdos de terceiros, não devem ser responsabilizados pelo conteúdo que não é deles. Após essa premissa, precisamos estabelecer as responsabilidades. E a primeira alternativa foi a de criar um mecanismo de ajuda a quem se sentiu prejudicado. Mas, a  partir da demanda da sociedade, mudamos as regras para que a remoção de um conteúdo só possa ocorrer por ordem judicial. Esta forma é benéfica  à liberdade de expressão, mas pode ser prejudicial a outros direitos

Do tipo?
Do tipo honra, do tipo imagem, do tipo abusos de pornografia, bullying. A menina que  sofreu uma montagem por pornografia divulgada na internet, conforme a proposta modificada, precisará contratar um advogado e ir à justiça e esperar uma, duas, três, cinco semanas para tirar  do ar o conteúdo que lhe causa esse grande prejuízo. Mas este foi, até o momento, o caminho que se formou para preservar a opção da sociedade pela liberdade de expressão.  

É uma questão que poderá ser revisitada?
O ministério ainda não se sente satisfeito com a proposta. O próprio ministro (do STF) Gilmar Mendes  apontou com clareza o problema dos Tribunais Judiciais Especiais, criados para melhorar o acesso ao Judiciário e que funcionaram tão bem, mas que agora têm 3 milhões de ações em menos de um ano. Eles entupiram. Achamos que judicializar a questão não é a solução. Ainda estamos buscando um meio-termo para preservar a liberdade de expressão, mas criando algum mecanismo que possibilite a pessoa a voltar atrás do que fez ou que  facilite a vida do judiciário no processo.

Alguns afirmam que o marco civil trará mais ônus para os provedores
Mesmo que prevalecesse a primeira proposta, de o provedor notificar os afetados pela comunicação, ainda assim os benefícios certamente seriam maiores do que os prejuízos. A eliminação da responsabilidade dos intermediarios já é um ganho incontestável. Além do mais, o custo do armazenamento de dados cai a cada dia.

E as lan houses e telecentros serão tratados como provedores de internet para esta lei?
Não, eles são encarados como usuários. Os provedores são as telefônicas, que teriam o registro.

“Quebra do anonimato na internet coloca em risco a liberdade e a privacidade”

[Título original: Anonimato na Internet: ‘absolutamente necessário’. Entrevista especial com Fernanda Bruno]


“A discussão sobre a legitimidade do anonimato em esferas ou espaços públicos não é um privilegio da atualidade e marcou calorosas disputas na modernidade”, relembra a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fernanda Bruno. Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, ela trata da questão do anonimato na Internet. “O anonimato é absolutamente necessário para indivíduos e grupos que vivem em regimes totalitários ou sob censura, para os quais, muitas vezes, comunicar-se anonimamente é uma questão de sobrevivência muito concreta”, opina.

Fernanda Bruno é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, onde coordena a Linha de Pesquisa “Tecnologias da Comunicação e Estéticas” e o CiberIdea: Núcleo de Pesquisa em Tecnologias da Comunicação, Cultura e Subjetividade. É organizadora do livro Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação (Porto Alegre: Sulina, 2010).

Confira a entrevista.

O anonimato na Internet é algo legítimo?
Sim, o anonimato na Internet é absolutamente legítimo. Tão legítimo quanto a privacidade e a liberdade de comunicação, informação e expressão. É importante ressaltar que, no caso da Internet, esses três aspectos estão entrelaçados e que a quebra do anonimato pode colocar em risco tanto a liberdade quanto a privacidade dos indivíduos e dos dados que hoje circulam na rede.
A discussão sobre a legitimidade do anonimato em esferas ou espaços públicos não é um privilégio da atualidade e marcou calorosas disputas na modernidade. Parte dessa discussão está atrelada à utopia de uma sociedade transparente, a qual tem muitas faces. Para citar uma delas, aquela que paradoxalmente constitui um dos lados mais “sombrios” do “Século das Luzes” é exatamente a que vai defender a ordem social intimamente atrelada a uma visibilidade total, à utopia política de um olhar vigilante. Um dos mais conhecidos projetos dessa utopia é o sonho panóptico de Jeremy Bentham [1]. Conhecidos também são os temores que o anonimato despertou com o surgimento da vida urbana e das massas modernas. Toda uma polícia e uma política de identificação se constituiram na tentativa de distinguir os traços de uma identidade individual nos rostos e corpos indiferenciados e anônimos das multidões urbanas.
Na contracorrente desses processos, toda uma outra linhagem de pensadores e práticas defende o anonimato como um princípio fundamental para o pleno exercício da vida pública e da liberdade em coordenação com a proteção da vida privada. Hoje, tanto o temor do anonimato quanto uma tentativa de ampliar os sistemas de identificação ressurgem com a Internet, mas, seguramente, qualquer tentativa de quebrar o anonimato é muitíssimo mais perigosa para a sociedade do que a sua existência como princípio legítimo e aliado à privacidade e à liberdade.

E, em sua opinião, o anonimato na Internet deve ser protegido?
Sim, deve ser protegido no sentido de garantido, assegurado, sem dúvida. Pois, sem o anonimato, a Internet se torna um espaço de controle e de vigilância potencial. Como bem mostram vários estudos, entre os quais destaco os de Alexander Galloway [2], nossas comunicações na rede são operadas por protocolos que como deixam rastros que podem ser localizados, o que implica a possibilidade do controle.
Entretanto, não há, nesta mesma estrutura e na arquitetura da rede, nada que exija o vínculo de tais rastros a indivíduos especificamente identificados. Ou seja, essa estrutura acolhe e assegura o anonimato, ainda que o número do IP possa ser rastreado. E isso deve ser mantido. Na verdade, a garantia do anonimato é o que, digamos, nos “protege” do controle e do vigilantismo na Internet.

Quem não quer o anonimato e por quê?
A Internet é, desde o seu surgimento, uma rede de comunicação distribuída, baseada no anonimato, apesar de algumas tentativas pontuais contrárias. E, com essa estrutura, ela se tornou o que é hoje, uma rede fundamental e essencial em nossa vida social, política, econômica, cultural, cognitiva etc.
Segurança e interesses comerciais e corporativos são a base de boa parte dos argumentos recorrentes contra o anonimato na Internet. É plenamente legítima e necessária a defesa da segurança na Internet, mas não creio que esta seja inimiga do anonimato, ao contrário. Mesmo porque, em caso de crimes, a quebra do anonimato já está prevista e garantida pela lei.
Mas acho que há pelo menos dois níveis a serem considerados: um primeiro, mais “vital”, no sentido forte do termo, é que o anonimato é absolutamente necessário para indivíduos e grupos que vivem em regimes totalitários ou sob censura, para os quais, muitas vezes, comunicar-se anonimamente é uma questão de sobrevivência muito concreta. Um segundo nível consiste não tanto no anonimato em si, mas em uma série de outros processos que estão articulados a ele na Internet, a liberdade de comunicação e expressão, a privacidade, a possibilidade e abertura em reinventar modelos de partilha de informação, conhecimento, bens etc.

Como você vê a relação da fama e do anonimato na Internet?
Fama e anonimato convivem plenamente e profusamente na Internet, território absolutamente cambiante e marcado pela diversidade. Estamos falando agora não mais do anonimato, digamos “estrutural” ou “arquitetural”, mas no desejo de as pessoas permanecerem anônimas ou conquistarem alguma fama. Por um lado, há um impulso e uma corrida pela fama muito presente em diversos domínios da rede, reproduzindo os ideais da cultura de massas com novas roupagens. Por outro lado, há dinâmicas colaborativas em que sistemas de reputação convivem com o anonimato dos participantes. E há, ainda, processos sociais, políticos, estéticos cujo “pathos” passa pelo anonimato. A mais recente e breve ‘mania’ que chamou a minha atenção neste sentido foi o Chatroulette, onde uma das grandes excitações, à diferença das redes sociais “entre amigos eleitos ou relativamente conhecidos”, é o encontro aleatório com o desconhecido, uma roleta de anônimos interconectados. Não sei se o Chatroulette vai vingar ou não para além de seu sucesso inicial, mas trata-se de um dispositivo interessantíssimo, e é instigante imaginar esse processo coletivo de encontros aleatórios com o desconhecido.

Os engenheiros que viabilizaram a Internet fizeram isso pensando no anonimato. Para você, que história social da Internet, enquanto mídia e a partir do anonimato intrínseco, criamos?
Eu diria que a história da Internet é marcada por uma extrema inventividade, uma grande capacidade de se desviar dos fins que lhes são propostos. E isso desde seu início, em que se desviou dos fins estritamente militares e acadêmicos e, desde então, vem sendo apropriada de múltiplos modos e em muitas direções, constituindo modelos alternativos não apenas de comunicação, mas de produção e circulação da informação e do conhecimento, de sociabilidade, de ação política, social, cultural, assim como dinâmicas alternativas de mercado, trocas etc.
É claro que essa inventividade não se dá num território de plena harmonia, mas num campo de embates e disputas cada vez mais acirrados em que concorrem também modelos centralizados, massificados, corporativos, conservadores etc. Mas de toda forma, na Internet, esses embates são possíveis, enquanto, nas mídias massivas, as relações de força eram muito mais cristalizadas. E, voltando ao anonimato, toda essa inventividade que atravessa a história da Internet, sem dúvida não se deve apenas ao anonimato, mas a múltiplos fatores, atuando de forma conjunta e extremamente complexa. Porém, creio que a Internet estaria muito ameaçada sem ele.
O que há de mais interessante é que a Internet não está encerrada e não pode ser explicada nem pelo gênio de alguns indivíduos, nem pela gestão de certas corporações, nem por ações de um pequeno número de centros. Embora haja tudo isso na rede (egos inflados, grandes corporações, centros), a inventividade que importa e que me parece mais efetiva na história da Internet é essa inventividade distribuída, coletiva, atrelada, entre outras coisas, às redes do anonimato.

Notas:
[1] Jeremy Bentham foi um filósofo e jurista inglês. Juntamente com John Stuart Mill e James Mill, difundiu o utilitarismo, teoria ética que responde todas as questões acerca do que fazer, do que admirar e de como viver, em termos da maximização da utilidade e da felicidade.
[2] Alexander Galloway é professor do Departamento de Cultura e Comunicação da Universidade de Nova York.

 

“A homogeneização cultural faz o jovem perder a ligação com a sua cultura”

[Título original: Pesquisadora fala sobre influência da mídia na formação da identidade de jovens e da importância da educação para e com as mídias]

Raquel Pacheco é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e Licenciada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro. Coordena o projeto Media e Literacia – http://mediaeliteracia.blogspot.com – é membro do Centro de investigação Media e Jornalismo, em Portugal. É professora universitária em Reportagem e em Educom (Educação e Comunicação). É integrante da Rede de Trabalho do Projeto Criança e Consumo e divulga as ações do Instituto Alana em Luanda, Angola, onde reside hoje e em Portugal.

Em seu livro "Jovens, Media e Estereótipos" você faz uma análise sobre construção da identidade dos jovens pelos meios de comunicação e as implicações disso. O que te levou a fazer essa pesquisa? Quais foram os principais resultados que encontrou na sua investigação?
Sou do Rio de Janeiro e desde pequena me sentia incomodada com a maneira com que as crianças e os jovens pobres eram tratados socialmente. Na maior parte das vezes, tínhamos que ter cuidado ao andarmos na rua e cruzarmos com um jovem negro e pobre. Era melhor mudar de calçada, ou então corríamos o risco de sermos assaltados. Ficava pensando como deveria ser ruim estar na pele daquelas crianças e jovens, sempre vistos como marginais. No Rio temos a sensação de que só os jovens pobres, moradores de favelas e de preferência negros é que cometem crimes. Depois que assisti ao filme "Cidade de Deus" e acompanhei toda a polêmica entre seus realizadores e o rapper MV Bill, senti definitivamente que deveria conduzir minha investigação por este caminho.
Comprovei aquilo que já imaginava. Existe o estereótipo da imagem do jovem que é "vendida" pela mídia: jovem, branco, de classe média alta/rico. Na maior parte das vezes é explorada sua imagem feminina. Este modelo vende a juventude como um estilo de vida, é a imagem de glamour da juventude. O outro estereótipo é aquele em que o jovem assume uma postura ameaçadora, de criminoso ou deliquente. Normalmente este grupo é composto por jovens pobres, na maioria das vezes não brancos e do sexo masculino. Estes jovens possivelmente têm sua imagem associada à bandidagem, ao tráfico, não são pessoas bem quistas e devem estar restritos ao seu gueto que é a favela. Este jovem não corresponde às necessidades do mercado do "ter": ele é pobre, preto, não é nada, e, normalmente quando há referências na mídia a este tipo de jovem, ele é tratado por menor, delinquente, infrator.

Você pode explicar o conceito de culturas juvenis que utiliza na sua pesquisa e porque da importância do plural dessa expressão?
No sentido lato, por cultura juvenil pode entender-se um sistema de valores socialmente atribuídos à juventude (tomada como conjunto referido a uma fase da vida), isto é, valores a que aderirão jovens de diferentes meios e condições sociais. Assim sendo, concluímos que não existe apenas uma cultura juvenil, mas sim várias culturas juvenis. Quando pensamos que o plural de duas palavras pode mudar o modo como encaramos a nossa juventude, isso faz toda a diferença. Quando falamos em cultura juvenil, restringimos a juventude a uma massa compacta e homogênea. Quando percebemos que existem diversas culturas juvenis, acreditamos na diversidade da juventude, abrimos possibilidades para a pluralidade que é a juventude. No livro "Cidade Partida", de Zuenir Ventura, consegui distinguir mais de cinco diferentes culturas juvenis em Vigário Geral. Existem os jovens que conseguem ir para a universidade, os que muito jovens são pais de família, existem as jovens que são mães, os que dão aulas para crianças, os que formam associações de direitos humanos, músicos, traficantes.

O que é Educomunicação? Que contribuições o trabalho com jovens por meio da educomunicação (ou como você usa em seu livro, "media-educação") tem a dar à construção democrática da imagem desse grupo social? Em que esse trabalho difere da educação formal que é praticada nas escolas?
A Educomunicação (ou educação para os media ou mídia educação) é um nome novo para uma forma antiga de educar e de ser educado, mas de maneira mais democrática. Explico: estamos educando e sendo educados através dos meios de comunicação social. Lembro de perceber muitas coisas e pensar sobre tantas outras enquanto assistia ao programa de televisão "Balão Mágico", ou "As aventuras de Tio Maneco", ou o "Sítio do Pica Pau Amarelo". Lembro que desde muito pequena adorava acompanhar as novelas junto com a minha empregada, quantas coisas aprendi nas telenovelas. Mas hoje em dia temos ainda a internet, a publicidade a todo vapor. Percebemos então que tínhamos que utilizar a mídia a favor da educação, educar com, para e através dos meios de comunicação. A Educomunicação promove uma junção entre a mídia, o que aprendemos ou vemos através dos meios de comunicação social e a realidade dos grupos com que trabalha – crianças e jovens, por exemplo. Utilizamos os meios de comunicação para analisar, aprender, dialogar e re-construir as diferentes realidades. José Outeiral diz que a escola pode sustentar o desejo, o sonho e a utopia. Não só das mães como dos adolescentes e dos professores. Deve ser um lugar que ensine a pensar – o autor sugere que as crianças chegam às escolas e não pensam. Pensar, diz, surpreende o pensador. Pensar é transgredir. Pensar é fundamental. A escola pode ensinar também a brincar… é mais ou menos assim. Essas palavras são muito importantes para mim e acredito que o caminho para a escola renascer, ou uns dos caminhos, é através da Educomunicação. Ensinar a pensar é a ideia número um dentro deste novo conceito de educação. Através dos projetos de Educomunicação que coordeno, pude perceber que crianças, jovens e adultos descobrem ferramentas dentro de si para lidar com as suas realidades, deixam de ser sujeitos passivos, espectadores de suas próprias vidas e dão um salto, aprendem a pensar, a dialogar, a refletir, a analisar e a produzir.

Na sua visão, a sociedade de consumo e os padrões de comportamento consumista colaboram com a glamorização da violência nos media?
Sim, essa pergunta complementa aquilo que dizia na primeira questão. Observamos também que o jovem tem necessidade de sair dos lugares marcados pelo cinema sensacionalista, pelas notícias dos noticiários televisivos, enfim, pela mídia de maneira geral. Todos têm necessidade de auto-estima, de afirmação, mas nem todos têm condições sócio-econômicas para corresponder ao que é esperado e esta desigualdade constantemente é descontextualizada na mídia.
Um jovem português que participou do projeto que cito no meu livro dá um depoimento no vídeo em que diz que: "Uma pessoa que não tem tv a cabo, um carro, gás canalizado (…), não é pessoa". O tratamento diferenciado que é dado ao jovem de uma determinada classe social e o que é dado ao que é de outra produz um processo de mutilação da auto-estima. Acontece uma desvalorização do sujeito, pois já que não pode corresponder aos valores implícitos socialmente, sente-se inferiorizado. Não é o fator econômico que gera a violência, mas a apatia da sociedade, enquanto grupo, em relação aos problemas envolvendo esses jovens vulneráveis.
As pressões exercidas por uma imagem dominante que corresponde à ideia positiva de jovem rico, esperto e feliz, que é constantemente reforçada pela mídia, faz parte da sociedade de consumo que vivemos e cria necessidades de posse de objetos, de status e de uma aparência que normalmente não corresponde à realidade. As diferenças existentes nas formas de adquirir esses bens de consumo e essa estética "juvenil" acentua a desigualdade e demanda uma recusa da subordinação da "ordem social", gerando algumas vezes graves problemas sociais, principalmente os que envolvem drogas e violência.

Na sua opinião, em que diferem as relações de consumo na construção de identidades dos jovens nos países em que já desenvolveu trabalhos, como Brasil, Portugal e Angola?
Ousaria dizer que não difere em quase nada, ou em muito pouco. Analisando as relações de consumo associadas à construção de identidades, percebo que aquilo que é bom para os jovens, tanto no Brasil como em Portugal ou Angola, é aquilo que está na mídia. A moda é ditada pela publicidade, pelo que vem de "fora", que depois é adaptado à realidade local. O que se come, o que se bebe, o que se veste ou a música que os jovens ouvem, tratando-se destes três países de língua portuguesa é tudo muito parecido. Existe uma homogeneização cultural onde o jovem perde cada vez mais a ligação com a sua cultura, com a cultura de seu país e se liga a uma cultura globalizada, uma cultura de massa. A Hannah Montana, Miley Cyrus, são bons exemplos disso, que deveria ser para jovens, mas na verdade foi fabricada para entreter crianças. É um ícone tanto no Brasil como em Portugal e em Angola. Não há uma menina dos 5 aos 11 anos, em um destes três países, que não conheça ou possua pelo menos um produto relacionado a Hannah Montana. Hoje em dia os filmes produzidos em Angola por jovens são filmes em sua maioria de violência, baseados, segundos seus realizadores, nos filmes de violência brasileiros e norte-americanos.

Qual a importância de fazer parte da Rede de Trabalho do Projeto Criança e Consumo para seu trabalho?
É sentir que não estou sozinha, que no deserto tem postos de socorro. O Projeto surgiu para o meu trabalho como um sopro de ar puro. Sentia muitas vezes que as pessoas estavam mergulhadas nesta inversão de valores, neste capitalismo selvagem, onde o que vale e o que fala mais alto é o dinheiro, é o ter. Sentia que somos massas de manobra a favor do capital. E que a publicidade era o porta-voz do capitalismo. Querem dizer o que devemos comer, vestir, ouvir, onde devemos ir e até o que pensar, pior do que isso, querem fazer o mesmo com as nossas crianças. O Criança e Consumo surge como um divisor de águas, cada newsletter ou publicação é uma vitória, é como se fosse a resposta do ser contra o ter. A rede de trabalho é a cereja em cima do sorvete, é como se dissessem: "Ei, vocês, que querem mais para nossas crianças, que não querem que elas sejam meros cifrões, vocês que trabalham contra isso, que tem princípios diferentes dos princípios do ‘mercado’, venham para cá formar esta rede de trabalho".

Conheça nossa Rede de Trabalho – http://www.alana.org.br/CriancaConsumo/RedeTrabalho.aspx

“Historicamente, imprensa alternativa não disputa hegemonia”

[Título original: Assumindo-se como marginalizados, jornais alternativos não disputam a hegemonia]

A tendência da imprensa alternativa de fazer uma espécie de sociologia dos acontecimentos, optando por sempre explicar as estruturas e relações de poder por trás dos fatos, impede que os próprios fatos falem por si. Além disso, os veículos alternativos assumem a posição de marginalizados e permitem que somente os meios vinculados a grandes empresas narrem o cotidiano. Dessa forma, deixam de disputar hegemonia no terreno do moderno jornalismo. Refletir sobre as características desses meios e como eles se relacionam com a tradição dos veículos contra-hegemônicos, especialmente em um contexto de “crise das esquerdas”, foi o objetivo da dissertação Brasil de Fato: A imprensa popular alternativa em tempos de crise, de autoria do jornalista Daniel Cassol.

Em entrevista concedida por e-mail, Cassol comenta a sua pesquisa e analisa as possibilidades de se fazer um jornalismo alternativo que fuja desse padrão. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo (RS) no início do mês de abril, e teve a orientação da pesquisadora Christa Berger, coordenadora do programa.

Daniel Cassol graduou-se em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2003. Trabalhou com assessoria de imprensa de movimentos sociais e colabora com veículos alternativos, entre eles o Brasil de Fato. Durante o primeiro semestre de 2009, atuou como correspondente do jornal em Assunção, Paraguai.

O que motivou a sua pesquisa e como foi feita a análise?
Quem alguma vez conversou sobre comunicação alternativa certamente já se deparou com a discussão sobre a incapacidade de os veículos alternativos alcançarem parcelas mais amplas da população. Normalmente, as respostas estão em fatores externos, como a falta de recursos. Minha intenção foi refletir sobre que tipo de jornalismo os alternativos, no caso o Brasil de Fato, vêm fazendo atualmente, como se relacionam com a tradição dos veículos contra-hegemônicos e como se situam num contexto de dificuldade para as ideias de transformação. Além disso, eu considerava importante fazer uma reflexão atualizada sobre imprensa alternativa, uma vez que os estudos neste campo normalmente se voltam aos jornais do período da ditadura militar ou seguem mais os processos de comunicação e ativismo relacionados às novas tecnologias. Assim, optei por fazer uma interpretação do jornal, procurando compreender seu funcionamento, suas questões e sua relação com o contexto social.

Em que contexto social se deu a criação do jornal Brasil de Fato? Quais foram os objetivos da sua criação?
O Brasil de Fato nasce em 2003, num contexto de esperanças, mas também de um certo ceticismo. Esperanças principalmente em torno da eleição do presidente Lula, visto como uma possibilidade de retomada das mobilizações sociais, como de fato aconteceu no início. Prova disso foi o ato de lançamento do jornal durante o Fórum Social Mundial de 2003, que reuniu lideranças e personalidades, além de uma multidão que não coube no auditório Araújo Vianna em Porto Alegre. Porém, o jornal é criado exatamente para contribuir no processo de reorganização dos movimentos sociais, a partir da leitura de que a esquerda brasileira vive um período histórico de crise. Guardadas as diferenças em relação aos períodos históricos, o Brasil de Fato

Crise das esquerdas –

Você menciona uma crise das esquerdas. Como ela se configura?
O próprio jornal é criado em torno desta ideia: a esquerda brasileira vive uma crise de valores, práticas, organização, pensamento e estratégia política. Trata-se de um processo amplo, cuja origem é antiga, e que se caracteriza pelo ataque às organizações dos trabalhadores, o esvaziamento de sindicatos, a burocratização e o pragmatismo de partidos de esquerda, além de um abandono de antigas práticas. Por isso, o Brasil de Fato se apresenta como um instrumento para superação da crise, a partir da retomada da formação política, do trabalho de base e das lutas sociais. O jornal debate a crise da esquerda e acaba desenhando uma espécie de mapa das lutas e dos atores sociais que considera mais urgentes e importantes, promovendo uma agenda mínima para os movimentos sociais. Porém, mais que fragilidade das forças sociais, o que vivemos é uma crise das alternativas. Boaventura de Souza Santos tem uma ideia interessante: a hegemonia não se dá mais pela imposição dos interesses da classe dominante como se fosse algo bom para toda a população, mas porque não existe alternativa. As coisas são do jeito que são porque não há alternativas, eis uma noção muito presente nos discursos dos administradores políticos, por exemplo. Um contexto em que o pensamento alternativo é tratado como inviável acaba impondo muitas dificuldades para a imprensa de resistência ao pensamento dominante.

Como o jornal sobrevive, há sete anos, nestes tempos de crise?
Minha pesquisa toca pouco nas questões administrativas e políticas do jornal, pois minha opção foi sempre compreender que tipo de jornalismo é feito pelo Brasil de Fato. Mas é possível dizer que a existência de uma unidade mínima em torno do jornal, liderada pela Consulta Popular (saiba mais) e pelo Movimento Sem Terra (MST), garante a permanência do Brasil de Fato ao longo dos anos. Além disso, há que se destacar o trabalho profissional dos jornalistas da redação, que superam o amadorismo tradicional dos alternativos e mantêm a periodicidade e a qualidade necessárias. É claro que, nestes sete anos, o jornal enfrentou suas próprias crises internas, em razão da eterna falta de recursos, mas de fato é impressionante como o jornal se mantém vivo após sete anos, se constituindo numa das experiências mais longevas de jornal alternativo no Brasil.

– Jornalismo popular alternativo –

Por que você classifica o jornal de “popular alternativo”?
Basicamente, porque esta denominação dá conta das especificidades de um jornal como o Brasil de Fato e afasta incompreensões. O termo “imprensa alternativa” tem problemas: é datado historicamente, porque se refere mais aos jornais de resistência à ditadura militar. Além disso, sob “alternativa” se inscrevem diferentes tipos de comunicação. Da mesma forma, somente “jornal popular” pode confundir com os jornais chamados “sensacionalistas”. A professora Cecília Peruzzo sustenta que a comunicação popular alternativa é aquela que está inserida no contexto dos movimentos sociais. Além de atender essa característica, o Brasil de Fato traz em sua linha editorial a defesa das classes populares e de um projeto de país. Ao mesmo tempo, tem uma certa vocação para se tornar uma imprensa de interesse geral, uma vez que aborda temas diversos e tem a pretensão de disputar espaço com os jornais de referência. No entanto, não vejo problemas em se utilizar a expressão “jornal alternativo”, já consagrada. Para efeitos da pesquisa, foi uma forma de precisar a natureza do jornal.

O Brasil de Fato vive, segundo o seu estudo, a tensão entre sua vocação massiva e o recuo para uma postura de resistência. Diante disso, qual é o público do jornal?
Creio que esta é uma das dificuldades enfrentadas pela imprensa popular alternativa como um todo. Estes jornais convivem com o desejo de falar ao leitor comum, para convencê-lo; com a pretensão de desafiar os adversários políticos, para reafirmar as posições; e com a necessidade de conversar entre companheiros, a fim de afinar discursos. Disto decorre, a meu ver, uma indefinição no contrato de leitura estabelecido entre o jornal e seu público, na medida em que este é difuso. O Brasil de Fato, também por sofrer a crise, foi reduzindo sua intenção de se tornar massivo e diário para voltar-se a uma postura mais de resistência.

O jornal terminou por reproduzir o jornalismo alternativo clássico? Quais são as suas diferenças em relação ao dito jornalismo?
O que existe é uma tradição de se fazer jornalismo desde uma perspectiva contra-hegemônica, que vem desde o início do século XX, a partir de leituras mecânicas de alguns textos esporádicos escritos sobre jornalismo, por Lenin, Trotsky, Gramsci e pelo próprio Marx. O Brasil de Fato, como herdeiro legítimo, não poderia deixar de apresentar algumas marcas desta tradição. Em resumo, historicamente a esquerda promoveu uma certa instrumentalização do jornalismo em nome de sua visão política, ignorando aok!té mesmo a potencialidade desta forma de conhecimento sobre a atualidade. O jornal é tomado, muitas vezes, como um instrumento para a orientação política das massas e, desse modo, só publica aqueles temas considerados necessários à denúncia dos inimigos de classe e à politização dos trabalhadores. Algo que está presente no Brasil de Fato e em outros veículos alternativos atuais é uma tendência a fazer quase uma sociologia dos acontecimentos, optando por sempre explicar as estruturas e relações de poder por trás dos fatos, impedindo que os próprios fatos falem por si e tirando a autonomia dos leitores.

O jornal apresenta uma visão estática do povo, reduzindo-o ao conflito de classes?
Creio que este é um problema crônico da imprensa de esquerda, que tem a ver com esta tradição de que falei antes e aparece, em parte, no Brasil de Fato. Foi o pesquisador chileno Guillermo Sunkell que, ao analisar os jornais populares do Chile no período do presidente Salvador Allende, apontou que os discursos daqueles jornais interpelavam apenas espaços, atores e conflitos considerados politizados ou politizáveis pelos partidos de esquerda. Assim, o operário fabril era visto como o agente da transformação social, enquanto outras parcelas da população eram esquecidas pelos jornais populares. Disso resultava essa visão estática da ideia de povo, ou seja, povo era o operário em um conflito econômico com seus patrões. Para Sunkell, estes jornais acabavam marginalizando outras parcelas da população e, também, deixando de lado a realidade subjetiva do povo e outros aspectos da realidade popular, como a religiosidade, a vida em família, o lazer. O resultado era a incapacidade de expansão destes jornais. No caso do Brasil de Fato, por ser de uma época diferente, os espaços, atores e conflitos contemplados por seus discursos são outros. O operário fabril dá lugar, principalmente, a populações que luta em defesa dos seus territórios e de recursos naturais, em conflitos que poderíamos dizer mais estratégicos. Nota-se também que o jornal dá voz prioritariamente ao povo organizado em sindicatos, movimentos e associações. Povo, para o Brasil de Fato, é povo em luta. Os inimigos é que não são apenas os patrões ou latifundiários, mas principalmente as grandes transnacionais.

– O papel do jornalista –

Quais os caminhos dos jornalistas para mudar isso?
Talvez um caminho seja fazer mais jornalismo. Apesar de todas as críticas que podemos fazer à atividade, o jornalismo tem fundamental importância na medida em que nos provê de informações sobre os diferentes aspectos da atualidade. É através do jornalismo que organizamos uma determinada visão de mundo, com informações desde as condições das ruas e das paradas de ônibus de nossa cidade até as grandes questões estratégicas de política internacional, por exemplo. Mas a imprensa alternativa, historicamente, se dedica somente àquelas pautas que interessam à conjuntura imediata ou estratégica das organizações sociais. Assim, como dizia Adelmo Genro Filho, deixa de disputar hegemonia no terreno do moderno jornalismo, ou seja, assume esta posição de estar à margem e permite que somente os veículos vinculados a grandes empresas narrem o cotidiano.

Você conhece alguma outra experiência de jornalismo alternativo que fuja desse padrão?
O próprio Brasil de Fato representa um esforço do jornalismo popular alternativo se reinventar. Considero uma experiência exitosa, não só por sua longevidade, mas porque tenta encontrar uma nova linguagem necessária para estes tempos de crise, principalmente em sua página na internet. Logicamente, vive problemas das mais diferentes naturezas e passa por dificuldades para se expandir hegemonicamente. Mas, dentro dessa ideia de um jornalismo capaz de abordar os diferentes aspectos da atualidade e da vida em sociedade, acho importante analisarmos experiências como o do jornal La Jornada, do México, a RadioCom, de Pelotas, a Rádio Viva, de Assunção, no Paraguai, e a Radioagência NP, parceria do Brasil de Fato de São Paulo. No seu conjunto, não são veículos de esquerda, mas tem um “lado”. E não se furtam de falar de assuntos do cotidiano, do buraco na rua, dos cuidados com a saúde, dos resultados do futebol, temas que historicamente foram ignorados por não serem politizáveis. São alguns exemplos de possibilidades que me ocorrem agora.

O que a esquerda poderia fazer para ter um jornalismo diferente?
Aqui volto ao Adelmo Genro Filho, que no livro “O Segredo da Pirâmide”, cujas idéias são incompreendidas na mesma medida em que não são lidas, propôs uma “teoria marxista do jornalismo”, que vem sendo atualizada por alguns autores. Em resumo, correndo o risco de reduzir a complexidade, Adelmo Genro Filho sustentava que o jornalismo é uma forma de conhecimento capaz de revelar o que a realidade tem de singular. E o singular tem sua potência na capacidade de revelar os aspectos particulares de determinado acontecimento e nos levar à compreensão do universal. Ou seja, o autor apostava na potencialidade do jornalismo e refutava sua instrumentalização. Talvez este seja um dos caminhos a serem considerados por quem faz jornalismo alternativo. Há que se considerar a possibilidade de realização de um jornalismo informativo contra-hegemônico, que reconheça a presença da ideologia não como uma limitação da atividade, uma vez que a apreensão da realidade objetiva só se dá na relação dos sujeitos com a realidade – sendo esta, inclusive, riqueza deste processo –, mas que não se reduza à mera propaganda desses pressupostos políticos. Gosto de uma ideia do Adelmo Genro Filho, que encerra essa aposta nas potencialidades do jornalismo: ele diz que o jornalismo, por mais que tenha sido gestado ao longo do desenvolvimento da sociedade capitalista, supera a mera funcionalidade ao sistema, porém “não é reconhecido em sua relativa autonomia e indiscutível grandeza”. buscou desempenhar de certa forma um papel de “jornal de frente”, reunindo diferentes organizações sociais.

“Veja foi indispensável para construir o neoliberalismo”

A professora do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Carla Luciana Silva passou meses dedicando-se a leitura paciente de pilhas de edições antigas da revista Veja. A análise tornou-se uma tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense, e agora, em livro. “Veja: o indispensável partido neoliberal (1989-2002)” (Edunioeste, 2009, 258 páginas) é o registro do papel assumido pela principal revista do Grupo Abril na construção do neoliberalismo no país.

A hipótese defendida pela professora Carla é que a revista atuou como agente partidário que colaborou com a construção da hegemonia neoliberal no Brasil. Carla deixa claro que a revista não fez o trabalho sozinha, mas em consonância com outros veículos privados. Porém, teve certo protagonismo, até pelo número médio de leitores que tinha na época – 4 milhões, afirma Carla em seu livro.

“A revista teve papel privilegiado na construção de consenso em torno das práticas neoliberais ao longo de toda a década. Essas práticas abrangem o campo político, mas não se restringem a ele. Dizem respeito às técnicas de gerenciamento do capital, e à construção de uma visão de mundo necessária a essas práticas, atingindo o lado mais explícito, produtivo, mas também o lado ideológico do processo”, afirma trecho do livro.

O livro pode ser adquirido diretamente com a autora, através do email carlalssilva@uol.com.br

Sobre o título do livro, porque “indispensável”? É uma brincadeira com o slogan da Veja ou reflete a importância da revista para o avanço do neoliberalismo no Brasil?
O título é uma alusão ao slogan da revista e ao mesmo tempo nos lembra que ela foi um sujeito político importante na construção do neoliberalismo. A grande imprensa brasileira foi indispensável para que o neoliberalismo tenha sido construído da forma que o foi. A Veja diz ser indispensável para o país que queremos ser. A pergunta é: quem está incluído nesse “nós” oculto? A classe trabalhadora é que não.

Quais os interesses defendidos por Veja?
Os interesses são os dominantes como um todo, mais especificamente os da burguesia financeira e dos anunciantes multinacionais. Em que pese o discurso de defesa da liberdade de expressão articulado à publicidade, o que importa pra revista são os interesses em torno da reprodução capitalista. A revista busca se mostrar como independente, o que se daria através de sua verba publicitária. É fato que a revista tem uma verba invejável, mas isso não a transforma no Quarto Poder, que vigiaria os demais de forma neutra. Ao mesmo tempo em que ela é portadora de interesses sociais, faz parte da sociedade, a sua vigilância é totalmente delimitada pela conjuntura e correlação de forças específica. O exemplo mais claro são as denúncias de corrupção e forma ambígua com que Veja tratou o governo Collor, o que discuto detidamente no livro.

Isso significa defender atores e grupos específicos? E, ao longo dos anos, estes atores mudam?
Essa pergunta é mais difícil de responder, requer uma leitura atenta, a cada momento histórico especifico. A revista não é por definição, governista [no período estudado]. Ela é defensora de programas de ação. No período analisado (1989-2002), sua ação esteve muito próxima do programa do Fórum Nacional [www.forumnacional.org.br] de João Paulo dos Reis Velloso. Ela busca convencer não apenas seus leitores comuns, mas a sociedade política como um todo e também os gerentes capitalistas.

E que relação Veja estabelece com grupos estrangeiros?
Essa é outra pergunta que requer atenção e mais estudos. O Grupo Abril não é um grupo “nacional”. Suas empresas têm participação direta de capital e administração estrangeira. Primeiro, é importante ter claro que o Grupo Abril não se restringe a suas publicações. A editora se divide em várias empresas, sendo que a Abril é majoritariamente propriedade do grupo Naspers, dono do Buscapé [site de comparação de preços] e de empresas espalhadas pelo mundo todo, da Rússia à Tailândia. Essa luta pela abertura de capital [no setor das comunicações] foi permanente ao longo dos anos 1990 e a Abril foi o primeiro grande conglomerado [de comunicação] brasileiro a abrir seu capital legalmente. É bom lembrar que o grupo tem investido bastante também na área da educação, e por isso a privatização do ensino continua sendo uma meta a atingir.

Aconteceram várias edições do “Fórum Nacional” no período em que faz sua análise. Por que Veja defendeu com tanto afinco as resoluções, especialmente econômicas, saídas desse Fórum?
O Fórum Nacional tem vários títulos. Eles [os integrantes do Fórum] foram se colocando ao longo dos anos, desde 1988, como intelectuais que pensam o Brasil e defendem programas de ação – as formas específicas de construção de um projeto sócio-econômico, que mudaram ao longo dessas duas décadas. Não existe um vínculo orgânico da revista com o Fórum, ao menos não o comprovamos, mas existe uma afinidade de programa de ação. A tentativa de reforma da Constituição em 1993 foi um bom exemplo, conforme desenvolvo no livro.

No livro, você aponta que a Veja “comprou” as idéias no Fórum Nacional, transformando-as numa verdadeira cartilha econômica para salvar o Brasil no começo dos anos 90. Quais seriam os principais tópicos desta “cartilha”?
O Fórum Nacional surgiu em 1988 como uma forma de organizar o pensamento e ação dominante. Ele se constituiu um verdadeiro aparelho privado de hegemonia, buscando apontar caminhos para a forma da hegemonia nos anos 1990. E existe até hoje, fazendo o mesmo. Portanto, ele não é apenas uma fórmula econômica, mas de economia política. Tratou de temas relevantes como “modernidade e pobreza”, “Plano Real”, “Segurança”, “estratégia industrial”, “política internacional”, sempre trazendo intelectuais considerados “top” do pensamento hegemônico para ver, a partir de suas pesquisas, quais caminhos deveriam ser seguidos, não apenas pelos governos, mas também pela sociedade política, ditando os rumos da economia.

Essa “cartilha” econômica foi atualizada? Você se recorda de alguma campanha recente em que a revista tenha tomado a frente?
A atualização é constante, mas não é uma cartilha. O Fórum e a revista são independentes um do outro, ao que parece, não há um vinculo orgânico. Mas Veja assumiu várias campanhas, sendo a principal delas a manutenção do programa econômico de Fernando Henrique durante todo o governo Lula. A blindagem feita ao presidente Lula da Silva foi imensa, especialmente se compararmos com o que foi feito do caso do mensalão ao que ocorreu no governo Fernando Collor. O que explica isso parece ser claramente a política econômica [de FHC e reproduzida por Lula] que garantiu lucros enormes aos bancos e a livre circulação de capitais, além de outras políticas complementares.

Qual foi a importância da revista para a corrente neoliberal desde Collor? Dá para mensurar?
Foi muito importante, mas não dá pra mensurar. É importante que tenhamos claro que o neoliberalismo não é uma cartilha, por mais que se baseie em documentos como o Consenso de Washington, por exemplo. Ele não foi “aplicado”. Foi construído como projeto de hegemonia desde os anos 1980. A grande imprensa participou da efetivação de padrões de consenso fundamentais: as privatizações, o ataque ao serviço público, a suposta falência do Estado. É importante olharmos hoje, pós crise de 2008, para ver que muitos desses preceitos são defendidos como saída da crise.

Qual a importância de Veja para as privatizações?
Difícil medir dessa forma. Posso falar da importância das privatizações para Veja: elas precisavam acontecer de qualquer forma. E isso era um compromisso com o projeto que representava e com os seus interesses capitalistas específicos, do Grupo Abril. É bom lembrar que a criação de consenso em torno desse ideal foi importante para que o grupo pudesse abrir seu capital oficialmente ao capital externo.

Veja deixa de ser neoliberal para ser neoconservadora? Digamos assim, amplia sua atuação do debate econômico, fundamental à implantação do neoliberalismo, e passar a fazer campanhas também em outras pautas conservadoras?
Não vejo essa distinção. Neoliberalismo foi um projeto de hegemonia, uma forma de estabelecer consenso em torno de práticas sociais específicas. A forma do capitalismo imperialista, portanto, não se restringe à economia. A política conservadora sempre esteve presente no neoliberalismo, haja visto a experiência de [Ronald] Reagan [presidente dos Estados Unidos] e [Margareth] Thatcher [primeira-ministra da Grã-Bretanha], a destruição do movimento sindical, a imposição do chamado pensamento único. Por esse caminho chegou-se a dizer que a história tinha acabado e que a luta de classes não fazia mais sentido. Os movimentos sociais foram duramente reprimidos e, além disso, se buscou construir consenso em torno de sua falência, o que foi acompanhado pelo transformismo dos principais partidos de esquerda, especialmente no Brasil. O que vemos hoje é a continuidade dessa política. Os dados dos movimentos sociais denunciam permanentemente o quanto tem aumentado a sua criminalização ao passo que os incentivos ao grande capital do agrobusiness só aumenta.

Existem diferenças muito contundentes entre a Veja de 89, a de 2002 e a de hoje?
Há diferenças claro. Havia, em 1989, um grau um pouco mais elevado de compromisso com notícias, com investigações jornalísticas, o que parece ter se perdido totalmente ao longo dos anos. A revista se tornou uma difusora de propagandas, tanto de governos como de produtos (basta ver as capas sobre Viagra ou cirurgias plásticas).

Já nos primeiros capítulos do livro, você chama atenção para o fato de Veja ser muito didática e panfletária quanto ao liberalismo. Ela deixou de fazer apologia ao neoliberalismo de maneira tão clara?
Teria que analisar mais detidamente. Essa é uma coisa importante: sentar e ler detidamente, semanas a fio, pra podermos concluir de forma mais segura a posição da revista.

Em algum momento do período analisado a revista foi muito atacada por alguma cobertura específica?
Sim, a revista teve embates, especialmente com a IstoÉ e, posteriormente, com a Carta Capital. Essas revistas talvez tenham ajudado a tirar uma ou outra assinatura de Veja em conjunturas especiais. O caso Collor não é simples como parece. A revista Veja fazia campanha nas capas mostrando o movimento das ruas e dentro do editorial ia dizendo que o governo deveria ser mantido em nome da governabilidade. Foi quando isso se tornou insustentável que ela defendeu a renuncia do presidente (e não o impeachment). Mas depois, construiu uma bela campanha publicitária. A Abril colocou luzes verde amarela em seus prédios, lançou boton comemorativo, pra construir memória, dizer que foi ela que derrubou o Collor. O importante é a gente perceber que não é esse o movimento mais importante. O importante é a gente ter instrumentos contra hegemônicos que nos permitam construir uma visão efetivamente critica do que está acontecendo. É importante ressaltar que ela [Veja] sempre fala como se fosse a porta-voz dos interesses da nação, do país, da sociedade, e como se não fosse ela portadora de interesses de classe.