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A quem interessa tornar a Carta Capital invisível?

Desde o fim de semana passado, tenho recebido uma dezena de e-mails por dia que, invariavelmente, me perguntam sobre a razão de ninguém repercutir, na chamada “grande imprensa”, a matéria da CartaCapital sobre a monumental quebra de sigilo bancário promovida, em 2001, pela empresa Decidir.com, das sócias Verônica Serra (filha de José Serra, candidato do PSDB à Presidência da República) e Verônica Dantas (irmã de Daniel Dantas, banqueiro condenado por subornar um delegado federal). Juntas, as Verônicas quebraram o sigilo bancário de estimados 60 milhões de correntistas brasileiros graças a um acordo obscuro fechado, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, entre a Decidir.com e o Banco do Brasil, sob os auspícios do Banco Central. Nada foi feito, desde então, para se apurar esse fato gravíssimo, apesar de o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ter oficiado o BC a respeito. Nada, nenhuma providência. Impunidade total.

Temer, atualmente, é candidato da vice na chapa da petista Dilma Rousseff, candidata do mesmo governo que, nos últimos dias, mobilizou o Ministério da Justiça, a Polícia Federal, a Controladoria Geral da União e a Comissão de Ética Pública da Presidência da República para investigar uma outra denúncia, feita contra a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, publicada na revista Veja no mesmíssimo dia em que a Carta trazia a incrível história das Verônicas e a quebra de sigilo bancário de 60 milhões de brasileiros.

Justíssima a preocupação do governo em responder à denúncia da Veja, até porque faz parte da rotina do Planalto fazer isso toda semana, desde 1º de janeiro de 2003. É quase um vício, por assim dizer. Mas por que não se moveu uma palha para se investigar as responsabilidades sobre, provavelmente, a maior quebra de sigilo do mundo ocorrida, vejam vocês, no Brasil de FHC? Que a mídia hegemônica não repercuta o caso é, para nós, da Carta, uma piada velha. Os muitos amigos que tenho em diversos veículos de comunicação Brasil afora me contam, entre constrangidos e divertidos, que é, simplesmente, proibido citar o nome da revista em qualquer um dos noticiários, assim como levantar a possibilidade, nas reuniões de pauta, de se repercutir quaisquer notícias publicadas no semanário do incontrolável Mino Carta. Então, vivemos essa situação surreal em que as matérias da CartaCapital têm enorme repercussão na internet e na blogosfera – onde a velha mídia, por sinal, é tratada como uma entidade golpista –, mas inexistem como notícias repercutíveis, definitivamente (e felizmente) excluídas do roteirinho Veja na sexta, Jornal Nacional no sábado e o resto de domingo a domingo, como se faz agora no caso de Erenice Guerra e a propina de 5 milhões de reais que, desaparecida do noticiário, pela impossibilidade de ser provada, transmutou-se num escândalo tardio de nepotismo.

Enquanto o governo mete-se em mais uma guerra de informações com a Veja e seus veículos co-irmãos, nem uma palha foi mexida para se averiguar a história das Verônicas S. e D., metidas que estão numa cabeludíssima denúncia de quebra de sigilo bancário, justamente quando uma delas, a filha de Serra, posava de vítima de quebra de sigilo fiscal por funcionários da Receita acusados de estar a serviço da campanha de Dilma Rousseff. Nem o Ministério da Justiça, nem a Polícia Federal, nem a CGU, nem Banco Central tomaram qualquer providência a respeito. Nenhum líder governista no Congresso deu as caras para convocar os suspeitos de terem facilitado a vida das Verônicas – os tucanos Pedro Malan e Armínio Fraga, por exemplo. Nada, nada.

Então, quando me perguntam o porquê de não haver repercussão das matérias da CartaCapital na velha mídia, eu respondo com facilidade: é proibido. Ponto final. Agora, se me perguntarem por que o governo, aliás, sistematicamente acusado de ter na Carta um veículo de apoio servil, não fazer nada para apurar a história da quebra de sigilo bancário de 60 milhões de brasileiros, eu digo: não faço a menor idéia.

Talvez fosse melhor vocês mandarem e-mails para o Ministério da Justiça, a Polícia Federal, a CGU e o Banco Central.

A velha imprensa

Entre as tantas denominações que a imprensa atual tem merecido – PIG, imprensa mercantil, monopolista, oligárquica, entre outras -, creio que aquela escolhida pelo Rodrigo Viana – velha imprensa – é a mais adequada.

Não porque o novo seja necessariamente bom e o velho, ruim. Mas, neste caso, velho remete a algo ultrapassado por modalidades muito mais amplas, democráticas, pluralistas. Velho remete ao Brasil velho, antigo, tradicional, aquele construído pelas mãos das elites, como o país mais desigual do mundo. Um país com um sistema político democrático, conforme os cânones do liberalismo, mas que mal podia disfarçar de ser uma imensa ditadura econômica, social e cultural, em que uma pequena elite usufruía e transmitia a seus descendentes, a maioria esmagadora dos bens existentes.

A concentração dos meios de comunicação nas mãos de algumas poucas famílias, que fazem uma gestão totalitária do seu uso, a favor das suas opções políticas e necessidades econômicas, é parte indispensável da concentração de riquezas no Brasil. A imprensa foi parte do poder oligárquico ao longo de toda a historia do país, fazendo e desfazendo presidentes, participando da preparação de golpes – como o de 1964 – e apoiando regimes e governos ditatoriais – como o regime militar – e de direita – como os governos de Collor, de Itamar e de FHC.

Definia as pautas de discussão no país, escondendo, por sua vez, os problemas estruturais do Brasil, a favor dos interesses dos seus anunciantes, situados entre a elite minoritária, que se enriqueceu sempre à sombra dos governos – da ditadura às privatizações de FHC, passando pelas maracutaias do Collor.

Uma imprensa em que o povo não tem lugar, o povo e seus problemas, suas opiniões. Por isso seus leitores são, cada vez mais, reduzidos ao estreito círculo da burguesia e da classe média alta das grandes cidades. Por isso foi perdendo poder de influência, chegando hoje ao ridículo de conseguir apenas 4% de rejeição do governo, atacado por ela todos os dias, nos jornais, rádios e televisões. Arma as campanhas mais gigantescas, mas não altera a opinião dos eleitores, alimenta uma direita raivosa, mas isolada do povo.

O quer dizer que não siga causando muitos danos ao país. O Brasil não será um país realmente democrático, sem uma profunda democratização das formas de construção da opinião pública, dando espaço e tempo para todas as vozes que hoje se pronunciam amplamente na direção oposta da orientação dessa velha imprensa.

Nestas eleições, essa velha imprensa é uma das grandes derrotadas. Fica mais claro do que nunca que se constituíram em partido e são derrotados amplamente. Abre-se espaço para consolidar e estender os espaços da nova imprensa, com suas múltiplas formas de manifestação. Renovar e dar outra consistência à TV Brasil e a toda a rede de rádios e TVs estatais e publicas. Fomentar todas as formas alternativas de mídia – internet, rádios comunitárias, jornais locais, grátis e pagos.

Que floresçam todas as vozes do Brasil, um país em claro processo de democratização social, que precisa estender essa democratização derrotando de forma clara a velha imprensa, expressão de um país oligárquico e ditatorial e abrindo caminho também para uma democracia cultural, que tem na mídia uma de suas principais manifestações.

A ambição do latifúndio religioso

Em maio do ano passado, escrevi para Ouvidoria da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) reclamando da presença de missas e cultos nas emissoras que compõem a empresa estatal. A TV Brasil exibe o programa Reencontro, produzido por evangélicos, aos sábados; transmite a Santa Missa e Palavras de Vida, da IC, aos domingos. A Rádio Nacional FM de Brasília transmite a missa aos domingos.

Na semana passada, em artigo para este Observatório ("Estado laico vs. proselitismo religioso"), mais uma vez de forma brilhante, o professor Venício Lima tratou da intenção da EBC de expurgar as manifestações proselitistas que contaminam suas emissoras. É uma resposta às indagações minhas e de outros pessoas indignadas com esse abuso da religião.

Como lembra Venício Lima, a Constituição Federal estabelece uma separação entre Estado e religião. Diz o texto:

Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

178 emissoras de televisão

Ora, se a presença desses programas é inconstitucional, como o Estado poderia sustentar essa ilegalidade?

Ninguém sabe exatamente quantas emissoras de rádio e TV estão nas mãos das igrejas. O Ministério das Comunicações não tem esse número – e talvez nem seja por má-fé. Ocorre que tanto a Igreja Católica (IC) quanto as diversas denominações religiosas evangélicas, nem sempre revelam seu credo quando solicitam concessões. Por exemplo, a emissora A Voz do São Francisco, instalada em Petrolina, sertão pernambucano, às margens do Rio São Francisco é, juridicamente, a Fundação emissora rural a Voz do São Francisco. O nome não diz nada, mas, inaugurada em 28/10/1962, faz parte do latifúndio nacional da IC e integra o imenso esquema de poder político que a IC estende por todo o semi-árido nordestino.

A única forma de se saber a dimensão do latifúndio das igrejas católicas e evangélicas é apelar para estudos e pesquisas, ou para os sites das religiões. Mas isso não resolve.

Verifico por alguns artigos que a Igreja Universal teria (?) 22 emissoras de geradoras TV, sendo 19 em nome da Rede Record. O site da instituição nada fala sobre esse poder. De acordo com a Folha de S.Paulo (16/8/2010), este ano foram distribuídas 28 emissoras de rádio para igrejas evangélicas e católicas.

Quanto à Igreja Católica, um estudo de 2003 do professor Venício Lima ("Existe concentração na mídia brasileira? Sim", dado neste OI)informava que a IC tinha 178 emissoras de televisão. Hoje se sabe que a IC tem pelo menos duas redes de televisão com cobertura nacional: Rede Vida e Canção Nova. Uma nova rede estaria surgindo a partir de Aparecida do Norte, São Paulo.

56 canais de retransmissores doados em um único dia

Quanto às rádios, hoje temos as seguintes redes em poder da IC:

1) Unda Brasil. É parte da Unda internacional, criada em 1968, em Colônia, Alemanha. A Unda Brasil, ou União de Radiodifusão Católica, foi criada em abril de 1976. A entidade, que tem sede em São Paulo, conta hoje com 184 emissoras de rádio associadas.

2) RCR. Criada em 1992, a Rede Católica de Rádio reúne as emissoras católicas para transmissão via satélite digital. Funciona no mesmo prédio da Unda Brasil. A RCR tem 185 emissoras filiadas. "É a maior rede de rádio do Brasil, com transmissão de programas diários em rede".

3) Rede Milícia Sat. Iniciou suas operações em 1995. Esta rede de rádios católicas é constituída por 112 emissoras que transmitem o programa A igreja no rádio, gerado pela Rádio Imaculada Conceição, de Santo André (SP), todos os dias, no horário da meia-noite às 5h00 da manhã.

Como a IC construiu um patrimônio dessa dimensão? O que assombra mais que o volume de recursos investidos é que esse latifúndio é feito de concessões públicas ofertadas gratuitamente pelo Estado. Ocorre que a concessão de emissoras educativas, conforme a legislação vigente, dispensa a passagem dos processos pelo Congresso Nacional – basta uma canetada do ministro e do presidente da República, isto é, ganha quem tiver "amigos no poder". E a IC sempre teve amigos no poder, seja lá qual for a cor do poder. Quantas emissoras a IC ganhou até hoje? Quantas educativas (com canetadas) ela levou no governo FHC e no governo Lula? Ninguém consegue precisar. E isso é muito bom para igreja.

Em 27/1/2004, o jornalista Daniel Castro, colunista da Folha de S.Paulo (Folha Online), relatou que "na semana em que foi demitido pelo presidente Lula, o ex-ministro das Comunicações, Miro Teixeira, deu em um único dia, 20 de janeiro, 56 canais de retransmissores à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, onde tem uma geradora educativa". O site da Fundação Nazaré não diz exatamente isso, mas dá a entender que, graças às boas relações com o governo (FHC ou Lula, dá no mesmo para a IC). Trata-se de uma rede educativa. Isto é, as emissoras foram concedidas à base da canetada. Gratuitamente…

As melhores terras de Brasília

A TV Nazaré foi se espalhando por toda a Amazônia Legal. As primeiras concessões foram feitas pelo ex-ministro Juarez Quadros e, a maioria até então, outorgadas durante o ano de 2003, pelo ex-ministro Miro Teixeira. Hoje, a Rede Nazaré de Comunicação é formada por sua geradora – Canal 30E UHF, de Belém – e 78 (setenta e oito) canais primários e secundários já outorgados e em processo de instalação (ver aqui).

A ganância da Igreja Católica pelo controle dos meios de comunicação é quase insaciável. A igreja hoje abocanha TVs em sinal aberto ou por assinatura; rádios AM e FM; rádios e TVs comerciais e educativas e até rádios comunitárias. A Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc) anunciou que possui mais de 200 rádios devidamente autorizadas. Mas se de acordo com a lei 9.612/98, artigos 3º e 11º, isso é proibido, como o Estado deu essas concessões? É preciso alertar que, embora o processo burocrático se dê de forma secreta, nas entranhas do poder, depois que as emissoras são contempladas com concessão os endereços são sabidos por todos. Por exemplo, a Igreja Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, tem uma concessão de rádio comunitária; o mesmo acontece em São Gonçalo, no interior do Rio de Janeiro; e a Igreja Casa da Benção, que é evangélica, em Taguatinga (DF), também tem concessão de comunitária.

O patrimônio da IC na área da comunicação é uma parcela reduzida do poder dessa imensa empresa transnacional. A Igreja é dona de terras, creches, editoras, colégios e universidades, que nem sempre cobram "valores cristãos". E para onde vai o que é arrecadado? Certamente não é para restaurar as suas igrejas e catedrais – isso é função do Estado brasileiro, conforme acordo aprovado com o Vaticano no Congresso Nacional, sancionado por Lula no ano passado. Somente para a recuperação da catedral de Brasília foram investidos 1 milhão de reais. Dinheiro dos fiéis, dos seguidores do papa? Não. Dinheiro de estatal (Petrobras), dinheiro público. Uma igreja foi totalmente queimada em Pirenópolis. Foi reconstruída. Quem pagou? O Banco do Vaticano? Os católicos? Não. O Estado. Ilegal, claro. Vide, mais uma vez, o art. 19 da Constituição.

É importante frisar que, historicamente, a Igreja Católica sempre se deu bem com o Estado. Praticamente em todas as cidades do Brasil, da capital ou do interior, a Igreja se apossou de largas extensões de terra e das melhores áreas urbanas. Ganhou de presente. Essa prática não é coisa do passado. A Igreja pegou as melhores terras de Brasília. Na Esplanada dos Ministérios, botou uma catedral. Ao lado da catedral, começa o setor de Embaixadas. Qual a primeira embaixada? A do Vaticano. Ao lado, vem a Nunciatura Católica e a sede da (esquerdista?) CNBB. Quando foi construir a Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro teve que negociar o terreno da UnB com o papa porque na Brasília ainda em construção as melhores terras já tinham dono (in Confissões, livro autobiográfico de Darcy Ribeiro).

Uma história de mil anos

Em toda a América não foi diferente. A Igreja Católica foi uma tragédia para os povos andinos e do Caribe. A América espanhola se fez às custas de tortura, assalto, pilhagem, matança dos povos indígenas. Mas a IC é uma instituição tão sagaz, tão esperta, que, apesar da parceria na matança cometida, ainda é venerada pelos povos da região. Nem satanás (uma invenção da Igreja), seria capaz de tamanho feito: o antigo matador agora é venerado pelos sobreviventes. O fato é que estamos diante de profissionais. O livro mais conhecido do florentino Machiavel, O príncipe, nasceu para fazer frente ao poder fraticida e desagregador da Igreja na época.

A dimensão do poder da igreja sobre os meios de comunicação não é muito clara em toda a América Latina. Por razões políticas. Quem ousaria revelar a dimensão desse latifúndio? Na Argentina, por exemplo, o Poder Público favorece esse ocultamento. Segundo o professor e pesquisador Jorge Zaffore, cuja tese de doutoramento se intitula "Mass media, derecho y poder. Ideología o conocimiento" (Editorial NovaTesis, Rosario, 2007), a autoridade pública argentina esconde os dados sobre a Igreja católica. Zaffore revela que existe uma discriminação do Estado argentino, que toma frequências dos evangélicos e as dá a los obispos católicos. Ele ainda informa que a IC tem cerca de 130 rádios FM em todo país, várias AM e vários canais de TV em VHF e UHF.

Tem algo de muito errado nas relações da Igreja com o Estado brasileiro. Seria o caso de um deputado ou senador propor uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), ou do Ministério Público intervir, para investigar como a Igreja Católica construiu esse patrimônio e, finalmente, desvendar como ela mantém essa influência sobre o Estado.

A história da igreja Católica revela que a instituição não tem nada de santa e que as atitudes mais atuais (ocupar a antiga Radiobrás ou conseguir concessões de emissoras educativas, por exemplo) é uma continuidade dessa sua ambição pelo poder. É uma história que se inicia há mil anos, quando ela dominava os Estados e ampliava seus territórios, trucidando os adversários; expandiu seu poder com as cruzadas; criou a inquisição para torturar e matar seus inimigos, em especial as mulheres; quase dizima os índios de toda a América; apoiou Mussolini e Hitler e assim conseguiu dinheiro e as terras onde hoje se assenta o Estado do Vaticano; apoiou os ex-nazistas após a Segunda Guerra mundial; protegeu os padres pedófilos da Igreja; faz campanha contra o uso da camisinha; faz campanha contra a descriminalização do aborto; discrimina os homossexuais…

Uma debandada dos fiéis

E tem a doutrina católica, baseada na dor e no sofrimento, na culpa e no remorso. Não por acaso o maior símbolo da Igreja – a cruz – é um homem sendo torturado e morto. Não tem nada a ver com a vida. O crucifixo mostra o filho (Jesus) que o pai (um deus) deixou morrer pela "salvação" dos homens. Para conhecer os crimes desse deus, o melhor é ler o seu dossiê em forma de romance no último livro escrito por José Saramago, Caim.

Como uma instituição com esse perfil conquista as pessoas? A fé não se explica, paciência. É de cada um. Mas quando ela se transforma em poder, ou é usada para conquistar patrimônios públicos, deixa de ser uma questão de foro íntimo para se tornar um problema de interesse de toda sociedade. Até se entende como, no passado, os governantes deste país se submeteram à Igreja Católica. Hoje, porém, não tem cabimento permitir que esse latifúndio se expanda mais ainda e, o que é pior, às custas do Estado e contrariando à Constituição.

A questão é que à Igreja Católica, ambiciosa, não basta ser dona de latifúndios (terras, escolas, editoras, emissoras de rádio e TV, etc.); quer mais. Se há um espaço na TV pública, ela reivindica, ela exige. É uma atitude indecente, e até anti-cristã – porque o próprio catolicismo condena a usura –, mas ela não parece se envergonhar disso.

Parece, no entanto, que a sanha gananciosa da Igreja Católica pelos espaços públicos terá fim. Pelo menos na EBC. Finalmente, o Conselho curador adotou um posicionamento para acabar com essa imoralidade. Ainda de forma tímida: colocar em "consulta pública" esse abuso é um sinal dessa timidez. O correto seria eliminar imediatamente esses programas porque assim referendaríamos a laicidade do Estado e o respeito ao cidadão, conforme prevê a lei.

É provável que neste momento a Igreja Católica esteja se movimentando em defesa da manutenção dos programas na EBC. Ela deve estar: 1) mobilizando seus fiéis cordeirinhos para que "votem" nessa consulta pública; 2) atuando dentro do governo, ligando para os "igrejeiros" do PT; 3) acionando os aliados da "igreja progressista" para que se manifestem; 4) conversando com os poderosos de sempre (a elite econômica e política que comanda este país e está com ela desde 1500); 5) unindo forças com os evangélicos que usam o espaço da EBC.

Se esse movimento acontece, tudo pode ficar como dantes e o Brasil permanecer sob o comando da Igreja Católica por mais 500 anos. Ou, talvez, nem tanto. Corrija-se. Afinal, a Igreja Católica está em franca decadência. Embora se "modernizando" com os pulinhos do padre Marcelo Rossi, seu discurso permanece fúnebre e funesto e as denúncias de pedofilia (coisa antiga que só agora vem à tona) estão provocando uma debandada dos fiéis. Mais um pouco e da Igreja Católica só restará o crucifixo pregado no alto da torre do templo e nos espaços públicos mais renitentes, como uma lembrança do quanto ela mandou no país e no mundo.

* Dioclécio Luz é jornalista, mestrando em Comunicação na Universidade de Brasília, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias.

E agora, não é censura?

O 8º Congresso Brasileiro de Jornais terminou na semana passada com a sinalização de que a entidade maior do setor, a ANJ, criará até o final do ano um conselho de autorregulamentação. Segundo a presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, o órgão deve ter sete integrantes e vai se ocupar da aplicação do código de ética da entidade. A notícia faz lembrar a ruidosa discussão de seis anos atrás, quando a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) defendeu a criação de um Conselho Federal de Jornalistas. Em 2004, a proposta causou grande polêmica, dividindo a categoria e espalhando mal-estar no mercado.

O cenário cindido tinha, de um lado, a defesa da necessidade de um órgão que pudesse regular a atividade jornalística, observando regras de acesso à profissão e aplicando o código de ética da categoria. No outro lado, havia o medo de que a instância se tornasse um instrumento de censura ao jornalismo. O fato é que a ideia do Conselho Federal de Jornalistas foi rechaçada, muito por conta de uma ampla campanha que promoveu o terror na sociedade: um grupo de sindicalistas iria censurar os meios de comunicação! O resultado foi o arquivamento da proposta e a perda de uma oportunidade história para se discutirem limites éticos e práticos para o jornalismo nacional.

Agora, uma ideia semelhante vem à tona. Não é preciso ir muito longe para ver que a proposta de um conselho de autorregulamentação dos jornais tem parentescos com a do Conselho Federal de Jornalistas. Há preocupações legítimas de se garantir a ética nos negócios e a responsabilidade social dos jornais. Mas o que causa surpresa é que, agora, não se rotula a proposta de censora, inibidora da liberdade de expressão no setor. Ora, o que mudou em seis anos? O conceito de liberdade de imprensa se modificou? O jornalismo se tornou mais livre desde então? Foram definitivamente afastadas as tentações de centralização da opinião e de controle da informação?

Nada disso. Os contextos atual e o de 2004 são bem semelhantes: o jornalismo ainda continua sua luta cotidiana em prol da pluralidade e da liberdade de informação e opinião; o jornalismo mantém seu compromisso com a democracia, na defesa do direito e no atendimento ao interesse público; o jornalismo continua sendo hostilizado por governos, empresas e cidadãos comuns que não se conformam com sua função fiscalizadora.

O que distingue 2004 de 2010 é a cada vez mais evidente constatação de que o cenário da comunicação está em transformação acelerada, e que os jornais impressos, em particular, precisam se reposicionar no mercado; que precisam se reinventar para dividir a atenção e as verbas publicitárias com os meios eletrônicos e instantâneos; que não podem se acomodar sob pena de não sobreviverem.

Isto é, motivações muito mais econômicas que políticas orientam a Associação Nacional dos Jornais a retomar um papel de protagonismo – já que essa expressão está tão em moda – no ecossistema informativo brasileiro. Os jornais querem manter seu prestígio junto a camadas sociais influentes; querem sobreviver e prosperar. E para fazê-lo é imperativo que se reaproximem da sociedade, que se reposicionem politicamente, empunhando bandeiras que são estratégicas, legítimas e populares, como a qualidade e a ética.

Um conselho de autorregulamentação para os jornais, gerido pela entidade empresarial do setor, é legítimo e é bem-vindo. Assim como um conselho federal para a categoria, a exemplo de entidades classistas que aproximem as profissões com a sociedade, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil ou do Conselho Federal de Medicina. A sociedade precisa de órgãos ou instrumentos que promovam a ética e os valores, que incentivem a qualidade de produtos e serviços, que defendam os direitos individuais – como a privacidade e a liberdade de opinião – e os direitos coletivos – como o direito de ser bem informado.

Não se trata aqui de defender um burocratismo que se apoie em entidades, conselhos, comitês que mais emperram que facilitam a vida do cidadão comum. Trata-se mais de promover o surgimento de iniciativas que possam se constituir em instrumentos verdadeiros e efetivos que auxiliem os públicos no consumo crítico das informações e do entretenimento.

Por isso, acho uma boa ideia a do conselho de autorregulamentação da ANJ. Como defendi claramente a existência de um Conselho Federal dos Jornalistas, proposta pela Fenaj. Aliás, penso que as duas entidades e outras ligadas às comunicações poderiam se aproximar mais em algumas lutas em comum. A ética no jornalismo preocupa também à Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner), ao Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) ou à sua irmã, a Abra, entre outras entidades.

Um bom primeiro passo pode ser dado na discussão e elaboração de um código de ética com elas. Durante a Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro do ano passado, foi aprovada uma resolução para um Código de Ética do Jornalismo, primeiro documento que seria chancelado tanto por jornalistas quanto por empresas, que teria força de lei e que seria mais efetivo que os acordos deontológicos hoje tão segmentados.

Esta é uma proposta que a ANJ poderia abraçar agora já que está tão disposta a promover a ética jornalística…

* Rogério Christofoletti é jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Autorregulamentação, mais do mesmo

Na quinta-feira (19/8), a Associação Nacional de Jornais (ANJ) veio à boca do palco para anunciar a criação de um conselho de autorregulamentação como forma de reiterar o compromisso da entidade com a liberdade de expressão e com a responsabilidade editorial. De acordo com a presidente da ANJ, Judith Brito, reeleita no dia 20, a entidade organizará até o final do ano um conselho autônomo, destinado a examinar queixas contra periódicos afiliados e impor eventuais sanções. E nunca escrevi um texto de abertura que demandasse tantas explicações, tanta necessidade de se colocar o assunto às claras como este.

O que passou a serem favas contadas e tratadas como instância deliberativa "mais que oportuna" pela quase totalidade dos grandes blocos empresariais de comunicação no Brasil, os mesmos que dão suporte físico e algum tipo de substância à sua entidade porta-voz, longe de acenar com algo útil, trouxe ao debate, uma vez mais, a desconcertante existência do monopólio da comunicação no Brasil que avança no século 21, sem perceber a força de enxurrada arrancando ideias arcaicas como a que sustentava a indústria da seca, e outras não menos letais que teimavam em rotular brasileiros em duas classes apenas – os do Sul-Sudeste, ricos e opulentos e os do Norte-Nordeste-Centro-Oeste, prisioneiros de crônica falta de meios elementares para sua subsistência física.

No entanto, ficou patente que é muito mais fácil mudar o curso do Rio São Francisco e também muito mais factível o Brasil constatar o mais vigoroso processo de mobilidade social que se tem notícia nos últimos séculos que o país democratizar o acesso aos meios de comunicação e transformar o direito de expressão em conquista não de um punhado empresas de comunicação, mas sim uma conquista de sociedade como um todo.

Três interrogações

Nada soa mais extemporâneo no momento por que passa o país que a criação de um Conselho de Autorregulamentação. Extemporâneo por quê?

Oras, alguém já teve a feliz e oportuna idéia de criar um Conselho de Autorregulamentação para os presidiários do país? Um conselho com força para evitar rebeliões, motins, assegurar a segurança da população carcerária, dos agentes públicos etc?

Alguma entidade de classe das operadoras de telefonia celular já teve a brilhante iniciativa de propor a criação de um Conselho de Autorregulamentação como algo viável para coibir os milhares de abusos cometidos por suas afiliadas, desde aquela comezinha falha de cobrar taxas e impostos do tipo "se colar, colou" até a de não prover com rapidez e eficiência o direito do usuário à sua portabilidade?

Não chama a atenção o fato de que, até o momento, nenhuma entidade representativa dos proprietários de transporte público (ônibus, vans etc.) tenha criado o seu Conselho de Autorregulamentação com a missão de punir os motoristas que mostram descaso com seus usuários, dirigem em alta velocidade, não param nos pontos designados, freiam bruscamente, arrancam antes mesmo de o passageiro estar completamente dentro do veículo?

A presidente Judith Brito promete que será um conselho autônomo, destinado a examinar queixas contra periódicos afiliados e impor eventuais sanções. Autônomo? Como assim? O cordão umbilical do conselho em gestação não derivaria, em absoluto, de sua entidade-mater, a ANJ?

Sei não, depois que o monobloco da comunicação no Brasil decidiu tutelar o conceito de liberdade de expressão parece que tudo é possível. A começar por iniciativa como esta que já nasce fadada ao descrédito: como tratar de julgar com objetividade matéria de natureza eminentemente subjetiva?

É sintomático recolher do editorial da Folha de S.Paulo de segunda-feira (23/8) estas pérolas:

"Setores autoritários do bloco hoje dominante na política brasileira, o de Lula e Dilma, acenam com um controle `social´ sobre a mídia. Mas como formar um conselho representativo? Como evitar que esse conselho seja dominado pela militância em nome da `sociedade´? Como assegurar que suas decisões sejam `certas´?"

E não seriam estas mesmíssimas três interrogações que inviabilizam logo de saída o anunciado Conselho de Autorregulamentação a ser indicado pela ANJ? Como formar um conselho representativo se quem o cria representa tão somente um espectro – majoritário, sem dúvida – das empresas de comunicação do Brasil?

Fim do ano

Apenas a título de exemplo, como imaginar que revistas como CartaCapital e Caros Amigos "se sintam representadas" em tal conselho?

E o jornalismo da internet, uma realidade que assoma os olhos por sua pujança e vigor nos últimos anos, como estariam representadas se não são subsidiários de portais mantidos por empresas como as Organizações Globo, a Editora Abril, os jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo?

E os blogues, por alguns chamados logo de início como "sujos"? Quem representaria os "sujos" no conselho de autorregulamentação? Ou então este seria apenas um conselho dos "cheirosinhos"

Como evitar que esse conselho proposto pela ANJ seja dominado exatamente por aqueles que mais se dizem porta-vozes da sociedade, muito embora não tenham recebido qualquer procuração da população para tal, seja por meio de eleições livres e universais, seja através de consultas plebiscitárias? A não se encontrar resposta plausível a esta pergunta, penso que a nova instância nada acrescentaria ao status quo de nossas comunicações no Brasil. Ao contrário, visaria tão somente legitimar a prepotência dos que muito podem sobre os que nunca podem, dos que têm direito a falar e a ser ouvidos sobre os que têm, quando muito, apenas o direito de falar, mas nunca o de ser ouvidos.

E, missão impossível mesmo seria a busca de meios que pudessem assegurar que as decisões do novo rebento da ANJ sejam "certas". Sim, porque é de todo impensável, em pleno século 21, acreditar que é justo… decidir em causa própria.

Ora, nem vamos muito longe com o andor porque os santos continuam sendo de barro: não é da praxe jurídica que a isenção por parte de quem julga é essencial para se obter julgamento justo?

E não é por isso que juízes devem se "declarar impedidos" quando têm interesses próprios em julgamento e, se não o fizerem, a parte prejudicada poderá requerer simplesmente a nulidade do mesmo?

Vamos ver se até o dia 31 de dezembro de 2010 seremos brindados com respostas a tais questões. Até lá, esperemos mais, cada vez mais, do mesmo.

* Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.