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E se falarmos de “eticamente correto”?

Rafinha Bastos, humorista e apresentador do programa CQC, fez uma piada em um dos seus shows que logo repercutiu por toda a internet: mulher feia que é estuprada não tem que reclamar, tem que agradecer. O relato está no perfil do comediante publicado na edição de maio da revista Rolling-Stone.

Auto-denominado politicamente incorreto, Rafinha insiste na pertinência da sua piada e diz que a função do humor é provocar. Aliás, ouve-se de praticamente todas as bocas dos atuais comediantes brasileiros (e com ecos significativos no conjunto da sociedade) a necessidade de se combater o “politicamente correto” pelo humor. Mas, afinal, do que se trata esse combate?

É constituinte do humor a transgressão. Ele se estabelece por uma ruptura, um estranhamento, num “esforço inaudito de desmascarar o real”, nas palavras do historiador Elias Thomé Saliba em seu livro Raízes do riso. E existe toda uma longa tradição humorística que relaciona o riso à liberdade, à infração das normas que sufocam os sujeitos em determinados contextos históricos, à revelação do inaceitável frente ao aceitável imposto, etc.

Mas também existe a tradição que relaciona o humor ao preconceito, às generalizações e às ofensas. As piadas, por esta tradição, refletem, cristalizam, e alimentam um universo simbólico calcado na desigualdade, na relação hierárquica com o Outro pelo vetor da superioridade/inferioridade, no desprezo e na segregação.

É certo, por sua vez, que o que se denominou de “politicamente correto” também carrega certos excessos que atuam como normas sufocantes aos sujeitos, mas não se pode ignorar que o seu núcleo sólido é resultado de tensões, conflitos e lutas históricas e sociais daqueles agentes que antes eram alvos da segregação e preconceito manifestado pelo riso de outros agentes hegemônicos. E há de se ter claro também que a linguagem é um palco privilegiado onde se manifestam esses conflitos.

Sendo assim, o que se percebe atualmente no combate ao dito “politicamente correto” é uma confusão relacionada a qual caminho seguir pela transgressão: transgride rumo à tradição libertária do humor ou transgride rumo à tradição preconceituosa e segregante? Cruza-se a fronteira do “politicamente correto” rumo ao progresso ou rumo ao atraso?

Nota-se ainda que muitos humoristas atualmente, sob a premissa de ser contra o “politicamente correto”, marcham para trás: acreditando estarem avançando em direção ao caráter libertário do humor, recuam e reforçam justamente o caráter conservador e perverso do riso. Sob a bandeira do combate à hipocrisia tornam-se hipócritas.

Ironicamente, a batalha desses humoristas contra o “politicamente correto” só explicita a necessidade de sua existência. E se a expressão está desgastada e pode soar para alguns como normas impostas que os sufocam, normas estas externas e que minam sua liberdade, pensemos, então, em “eticamente correto” (que é redundante: ou algo é ético ou anti-ético). A ética, por sua vez, é constituída por valores que devem nortear a relação de um indivíduo com os outros, implica responsabilidade e tem seus princípios fundamentais – e deve permear todas as esferas da prática individual.

O riso não pode servir de álibi para uma ação eticamente condenável. E como escreveu Wittgenstein em um dos seus Aforismos, “o humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo”, há de ser contra toda visão de mundo preconceituosa, que segrega e inferioriza. A história deve marchar para frente, avançar guiada pelo princípio ético da igualdade, e em hipótese alguma retroceder – nem se for de “brincadeira”.

*Rodolfo Vianna é jornalista e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

O avesso é a alma do negócio

Já presencie a proposição do fim da publicidade em alguns dos muitos debates sobre comunicação dos quais participei. Apesar de entender as motivações, sempre achei a proposta exagerada. Também já ouvi afirmações de que com o fim do capitalismo a existência da publicidade simplesmente perderia o sentido. Mesmo sendo socialista, não acho que a publicidade tenha que acabar e muito menos considero que ela sumirá com o fim do capitalismo. Mesmo com o fim da venda de mercadorias para a obtenção de lucro, campanhas de vacinação e de prevenção de epidemias continuarão sendo necessárias em meios de comunicação de massa.

Proibir toda e qualquer publicidade não me parece razoável, mas podemos fazer como muitos países civilizados que regularam e regulamentaram a veiculação de publicidade nos meios de comunicação de massa. Proibir a publicidade feita com e para crianças, por exemplo, é algo totalmente factível e razoável e por isso é praticado em vários países tidos como exemplos de desenvolvimento cultural. Entretanto no Brasil os grandes meios chamam isso de atentado a liberdade de expressão quando na verdade não querem dizer atentado a liberdade de exploração. A lei atualmente permite que os canais de TV tenham no máximo 25% de publicidade em sua programação, entretanto não há nada que regulamente o que é publicidade e o que é conteúdo não publicitário. Isso faz com que as insuportáveis merchandisings se proliferem diante de nossos olhos tornando tudo o que se vê e escuta em um catálogo de super-mercado. Não definir o que é publicidade cria aberrações como os canais com 24 horas ininterruptas de tele vendas e mais nada.

Comunicação é persuasão, todo ato de comunicar tenta necessariamente convencer alguém de algo, independentemente das relações entre capital e trabalho, e a publicidade nada mais é do que um ótimo instrumento para falar da forma mais eficiente possível pra muitos e em pouco tempo ou em pouco espaço. Cuba que o diga: "Uma revolução é uma força mais poderosa que a natureza" diz a frase de Fidel na fachada do centro de meteorologia na ilha socialista que tem de enfrentar todos os anos fortes furacões.  Marketing do bom.

O problema é que muitos anos ininterruptos perseguindo o único objetivo de se vender mercadorias fez da publicidade um instrumento que reduz o cidadão a condição de consumidor. Não por acaso, chamamos a publicidade na TV de "intervalo comercial" ou de “comercial”. Esses comerciais muitas vezes criam necessidades que não existiam antes da veiculação da propaganda e agregam características fantasiosas aos produtos os transformado em fetiches. Desta forma, bilhões são gastos para convencer você de que um sabonete é muito melhor que o outro por mais que todos os tipos sejam 98% feitos de banha. Qual das infindáveis estruturas de cabelo recriadas em 3D nas propagandas de condicionador é a verdadeira? Essas propagandas ainda nem são das piores, as que realmente me estarrecem são as que trabalham a alma do negócio capitalista tendo como missão vender a ideia de que o produto é exatamente o seu avesso.

A propaganda do oposto é uma categoria da publicidade que figura entre as mais poderosas formas de persuasão e por isso não são poupados recursos financeiros para a sua realização. Não por acaso também são as mais usadas em campanhas eleitorais. A propaganda do avesso tem que reverter por si só e em poucos segundos a imagem que faríamos de um produto ou de um candidato se o analisássemos com o mínimo de raciocínio e calma. Por isso esse tipo de propaganda usa uma linguagem rápida e emotiva para enfrentar os efeitos de uma análise racional mais aprofundada e cuidadosa. Na luta pela conquista de corações e mentes a vitória sobre o coração pode ser o suficiente.

No Brasil temos exemplos formidáveis dessa categoria no horário nobre da TV. Quem em sã consciência acha de fato que ao se tornar cliente de um banco privado vai ajudar a criar um mundo melhor? Certamente John Lennon se revirou no túmulo ao ouvir sua música Imagine na propaganda do Banco Itaú. Com ela o banco tenta demonstrar que está em harmonia total com seus funcionários (os quais na realidade fazem greves constantemente) e que você pode confiar o seu dinheiro aos acionistas da empresa para criar um mundo melhor. Ora, são justamente os bancos que financiam campanhas eleitorais milionárias para poder cobrar que os candidatos eleitos continuem negando recursos para a saúde e para a educação a fim de garantir seu lucro privado pelo pagamento dos juros da dívida pública. O banco sabe que as pessoas sabem que ele não quer um mundo melhor que signifique a redução do seu lucro e por isso faz uma propaganda dizendo justamente o contrário: “Antes dos meus interesses privados vem o interesse público, vem o interesse comum”.

Pelo mesmo motivo a maior mineradora estatal brasileira, imediatamente depois de ter se desnacionalizado ao se transformar em uma multinacional privada, adotou como slogan: “Vale: uma empresa cada vez mais verde e amarela”. É verdade que para vender a publicidade se vale de sonhos e não da realidade, mas quando o sonho é justamente o contrário do que acontecerá com a aquisição do produto isso é no mínimo propaganda enganosa. Ou seja, quando você assistir uma propaganda de carro dizendo patrioticamente que agora ele é feito no Brasil entenda que agora as remessas de lucro que chegam à matriz da multinacional também partem do Brasil. Se não fosse para consolidar uma imagem vendável que é o avesso da realidade, por que razão gastariam tanto dinheiro pra nos convencer de que um veneno que mata barata, um dos bichos mais resistentes do mundo, não faz mal para o bebezinho que engatinha pelo chão colocando tudo que vê na boca?  Ou por que não contratam atores e atrizes com barriga de cerveja para fazer propaganda de cerveja?

O avesso é a alma do negócio capitalista. A propaganda é apenas publicidade.

Pedro Ekman é militante do Intervozes.

Os limites da liberdade de expressão

Em sua coluna na Folha de S.Paulo do último dia 7 de abril, Hélio Schwartsman, provocado pelas lamentáveis declarações do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), abordou um tema controverso, complexo e, também por isso, muito caro a todos nós. Trata-se da polêmica sempre atual envolvendo o conteúdo e o alcance do princípio fundamental da liberdade de expressão. Sob o título "Uma defesa de Bolsonaro", Schwartsman sentencia, já nas primeiras linhas de seu texto, que ele, "evidentemente", está "entre os que acham que o mandatário tem o direito de dizer o que pensa, por mais politicamente incorretas, ofensivas ou imorais que sejam suas declarações".

Não tenho qualquer coisa nova que valha a pena dizer sobre as palavras do deputado, que, de resto, considero abomináveis. Por isso, vou me restringir a uma leitura mais detida sobre o conceito da liberdade de expressão, procurando refutar o argumento de Schwartsman, utilizando as declarações de Bolsonaro apenas eventualmente como instrumento para ilustrar o meu próprio ponto de vista.

Os contendores em um debate se utilizam de estratégias de argumentação diversas para convencer seus interlocutores e a plateia. A indicação de figuras socialmente reconhecidas como referências em uma área, para o bem ou para o mal, está entre as mais comuns. Assim, no debate sobre a liberdade, a de expressão entre elas, citamos frequentemente Hitler e Stalin, de um lado, e Noam Chomsky e John Stuart Mill, de outro. Mas não nos deixemos enganar, pois os discursos a respeito de um princípio, especialmente nesse caso, são formas de ação política e remontam ao debate que, embora perene, tem capítulos bastante distintos. Há um esforço constante para elaborar argumentos capazes de distinguir entre quais discursos devem e quais não devem ser protegidos de qualquer interferência do Estado – o que não é e nunca foi objeto de consenso, seja nos meios jurídicos ou na teoria política. Para notar essas distinções, não precisamos nos remeter às práticas totalitárias e classificar qualquer opinião que se desvie da compreensão da liberdade de expressão como uma liberdade negativa, como censura ou restrição à liberdade individual.

Anacronismo perigoso

A liberdade de expressão está comumente associada à busca da verdade, à auto-expressão individual, ao bom funcionamento da democracia e a um equilíbrio entre estabilidade e mudança social. Ela não é necessária apenas para que os cidadãos exerçam as suas capacidades morais de ter um senso de justiça e defender uma concepção do bem. Combinada aos procedimentos políticos estabelecidos constitucionalmente, a livre expressão de ideias aparece como uma alternativa à revolução e ao uso da força, que ameaçam sobremaneira as nossas liberdades básicas.

Já no século 17, na Inglaterra, John Milton, no manifesto intitulado Areopagitica, defendia a liberdade de impressão sem prévia autorização estatal. Como bem lembrou Schwartsman, Mill, dois séculos depois, também defendeu a livre expressão de ideias. Mas o alvo deste último era outro e por isso oferecia razões distintas das de Milton. Enquanto este fundamentava a sua defesa na crença de que as opiniões eram constitutivas dos indivíduos enquanto tais, Mill se baseia na ideia de uma relação interna entre liberdade e verdade, em que a primeira se define e se limita pela última.

O que quero dizer é que me parece, para dizer o mínimo, um anacronismo perigoso e sem tamanho buscar em um filósofo inglês novecentista uma discussão sobre a proteção a certos discursos, como o faz Schwartsman em relação ao de Bolsonaro. Questões como a homofobia, simplesmente não faziam parte da agenda. Afora isso, não me parece que de nenhum desses casos se depreenda um argumento a favor do estabelecimento de uma área livre de interferência do Estado e da sociedade sobre a conduta dos indivíduos – isso é fruto de interpretações, a meu ver equivocadas, da obra de Mill.

Propagandas falsas ou calúnias

Sabemos que as liberdades políticas em geral, e a liberdade de expressão em particular, têm tanto uma dimensão defensiva (contra a intervenção indevida do Estado), quanto uma dimensão protetiva (que requer a intervenção do Estado para ser de fato garantida). A questão que se coloca é saber em que medida devem ser defendidas ou quais seriam os limites dessas duas dimensões. Seria possível a restrição de conteúdos específicos, como discursos de incitação ao ódio, de caráter racista, homofóbico etc., sem se restringir demais a liberdade de expressão? Ou devemos dar preferência a regulações neutras em relação ao conteúdo?

Precisamos distinguir, antes de mais nada, entre restrição e regulação das liberdades fundamentais. Autores da tradição liberal, como John Rawls, afirmam que a prioridade dessas liberdades não é ameaçada quando se estabelecem regras, que se combinam em um sistema, no intuito de fomentar as condições sociais necessárias ao seu exercício duradouro. Na definição sobre se e quanto uma determinada política infringe a liberdade de expressão, está certamente incluída, como vimos, uma discussão sobre o conteúdo e o alcance dessa liberdade e sobre o que implica um julgamento a respeito disso.

Admitindo-se que as pessoas em geral, e os mais poderosos especialmente, desejam afastar qualquer crítica e evitar a expressão de posições das quais discordam, podemos ter a impressão de que a regulação de conteúdos pode se tornar um instrumento eficaz para que se impeçam a expressão de críticas e posições contrárias a certas opiniões consideradas em um certo momento politicamente incorretas ou moralmente condenáveis. Uma das presunções contra o controle de conteúdo afirma que ele traz consigo a possibilidade de que se excluam inteiramente certos pontos de vista do mercado de ideias: a regulação de conteúdos representaria uma ameaça maior de que certas ideias sejam impedidas de serem expressas, a despeito do valor que tais ideias possam ter para os próprios falantes ou para a comunidade em geral. No entanto, embora a impermissibilidade de certas formas de regulação de conteúdo tenha um papel importante para a liberdade de expressão, disso não decorre que seja uma questão fundamental e definitiva que qualquer restrição a conteúdos seja indesejável: não creio que muitos de nós viríamos a nos opor à proibição de propagandas falsas ou calúnias.

Regulação de conteúdos ofensivos

Uma leitura corrente, e que me parece combinar-se com a posição de Schwartsman no artigo a que estou me referindo, defende a possibilidade de se usar a própria expressão como forma de combater os custos envolvidos em expressões ofensivas ou condenáveis. Há a presunção de que, já que as pessoas têm a capacidade de mudar as suas opiniões quando apresentadas a novas e distintas razões, basta que sejam formalmente garantidas oportunidades a discursos que se contraponham às expressões racistas, homofóbicas etc. para que a "verdade" seja restabelecida.

No entanto, há discursos cujo conteúdo é incompatível com o axioma da igualdade moral humana, não sendo, também por isso, publicamente razoáveis. Devemos nos indagar, nesse sentido, se seria uma atitude intolerante impedir a expressão de crenças intolerantes. Pelo próprio caráter de indeterminação do que deve ser o sistema de tolerância, não parece fora de questão, mesmo para aqueles que advogam a favor da tolerância, reivindicar que algumas formas de conduta e expressão sejam proibidas no intuito de proteger grupos discriminados.

O professor Joshua Cohen, da Universidade Stanford, argumenta que a regulação em relação a determinados conteúdos ofensivos não contraria uma proteção rígida à liberdade de expressão, desde que os discursos regulados sejam: (a) expressões cuja intenção é insultar e cujos insultos são diretamente endereçados a um indivíduo ou a um pequeno grupo; (b) a ofensa é transmitida através de expressões que estigmatizam características individuais associadas a gênero, raça, etnia etc., as quais não seria possível combater com "mais discurso", pois causam danos direta e imediatamente; e (c) quando as regras destacam uma subcategoria específica e não representam um convite ao balanço entre custos e benefícios do que deverá ou não ser permitido, sendo atentas, antes, à vulnerabilidade dos discursos.

Defesa do espancamento

Herbert Marcuse, teórico alemão da Escola de Frankfurt, reforça que os diversos interesses não se contrabalançam em uma sociedade desigual e na qual a desigualdade permanece e se perpetua, se as coisas são deixadas a correr o seu curso normal. Um dos defensores mais conhecidos de intervenções pontuais e incisivas do Estado sobre a expressão política, Marcuse, não obstante, concorda em grande medida com Mill em relação ao valor epistêmico associado a uma deliberação pública livre e aberta. Marcuse sustenta também a ideia de que a tolerância, entendida como uma restrição à interferência de alguém sobre a expressão de ideias das quais discorda fortemente, é uma das condições que mais favorece a descoberta social da verdade – ainda que uma verdade inatingível. Contudo, a tolerância, por si mesma, não promove a verdade sem que esteja em conjunção com outras condições. Se essa tolerância serve principalmente à manutenção de uma sociedade repressiva, neutraliza-se a oposição e imunizam-se os indivíduos contra outras formas de vida. Repelido pela solidez de uma sociedade governada, o esforço pela emancipação torna-se abstrato, reduzindo-se a facilitar o reconhecimento do que já é sustentado.

Basta uma pesquisa rápida nos últimos meses pelos diários brasileiros para que nos recordemos de escabrosos casos de violência contra negros, homossexuais, nordestinos etc. Não custa lembrar do que houve logo após o segundo turno da eleição presidencial de 2010. Será que "direito de dizer o que [se] pensa, por mais politicamente incorretas, ofensivas ou imorais que sejam as declarações" deve ser estendido a uma Mayara Petruso, ou a quem defenda a ideia subjacente aos espancamentos de negros e homossexuais por bandos de skinheads?

Preconceitos difundidos

Como o próprio Schwartsman admite, é inexoravelmente controverso definir o que constituiria um dano causado por um discurso. Parte do debate contemporâneo sobre a liberdade de expressão vincula-se às interpretações da Suprema Corte norte-americana a respeito da Primeira Emenda à Constituição. A Primeira Emenda é comumente compreendida como uma postulação clássica dos limites à interferência do Estado sobre a conduta individual. A Suprema Corte, no entanto, muitas vezes a tomou menos como uma vedação absoluta à intervenção estatal sobre a liberdade de discurso do que como um dispositivo para estabelecer as fronteiras móveis da atuação do Estado. Em alguns casos, foram levados em conta para a ponderação certas categorias de discurso – hate speech, fighting words etc. – que se permitiria regular sem deixar de proteger a liberdade de expressão.

Owen Fiss, professor de Direito da Universidade Yale, chamou atenção para o papel silenciador de algumas formas de expressão, que podem reforçar e ser reforçadas por preconceitos difundidos na sociedade contra determinados grupos. Dessa forma, quando o Estado adota uma postura positiva no sentido de impedir que se silencie uma parte dos cidadãos, especialmente de grupos mais vulneráveis, ele estaria, antes protegendo a liberdade de expressão do que restringindo-a.

Antes que sejamos acusados de propor ou justificar a censura prévia, cabe um breve esclarecimento: não se trata aqui de estabelecer uma entidade encarregada de analisar caso a caso quais formas e conteúdos podem ser expressos publicamente, mas de estabelecer critérios a partir dos quais possam ser posteriormente julgados e, eventualmente, punidos os responsáveis pela veiculação de discursos cujo conteúdo seja potencialmente ofensivo e reforce a estigmatização de determinados grupos sociais. Na minha opinião, expressões como as do referido deputado não são apenas "politicamente incorretas, ofensivas ou imorais", mas extrapolam o que se pode considerar publicamente razoável. E isto, exatamente por se referir a preconceitos amplamente difundidos na sociedade e em relação a grupos, também por isso, flagrantemente vulneráveis.

*Renato Francisquini possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004), é mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007-2009) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2010-). Atua na área de Teoria Política, com ênfase em Comunicação Política, principalmente nos seguintes temas: teoria democrática contemporânea, entrelaçamentos entre meios de comunicação e democracia, sociedade civil, eleições, estudos legislativos

A barbárie e a estupidez jornalística

Imaginem vocês se um pequeno operativo do exército cubano entrasse em Miami e atacasse a casa onde vive Posada Carriles, o terrorista responsável pela explosão de várias bombas em hotéis cubanos e pela derrubada de um avião que matou 73 pessoas. Imagine que esse operativo assassinasse o tal terrorista em terras estadunidenses. Que lhes parece que aconteceria? O mundo inteiro se levantaria em uníssono condenado o ataque. Haveria especialistas em direito internacional alegando que um país não pode adentrar com um grupo de militares em outro país livre, que isso se configura em quebra da soberania, ou ato de guerra. Possivelmente Cuba seria retaliada e, com certeza, invadida por tropas estadunidenses por ter cometido o crime de invasão. Seria um escândalo internacional e os jornalistas de todo mundo anunciariam a notícia como um crime bárbaro e sem justificativa.

Mas, como foi os Estados Unidos que entrou no Paquistão, isso parece coisa muito natural. Nenhuma palavra sobre quebra de soberania, sobre invasão ilegal, sobre o absurdo de um assassinato. Pelo que se sabe, até mesmo os mais sanguinários carrascos nazistas foram julgados. Osama não. Foi assassinato e o Prêmio Nobel da Paz inaugurou mais uma novidade: o crime de vingança agora é legal. Pressuposto perigoso demais nestes tempos em que os EUA são a polícia do mundo.

Agora imagine mais uma coisa insólita. O governo elege um inimigo número um, caça esse inimigo por uma década, faz dele a própria imagem do demônio, evitando dizer, é claro, que foi um demônio criado pelo próprio serviço secreto estadunidense. Aí, um belo dia, seus soldados aguerridos encontram esse homem, com toda a sede de vingança que lhes foi incutida. E esses soldados matam o “demônio”. Então, por respeito, eles realizam todos os preceitos da religião do “demônio”. Lavam o corpo, enrolam em um lençol branco e o jogam no mar. Ora, se era Osama o próprio mal encarnado, porque raios os soldados iriam respeitar sua religião? Que história mais sem pé e sem cabeça.

E, tendo encontrado o inimigo mais procurado, nenhuma foto do corpo? Nenhum vestígio? Ah, sim, um exame de DNA, feito pelos agentes da CIA. Bueno, acredite quem quiser.

O mais vexatório nisso tudo é ouvir os jornalistas de todo mundo repetindo a notícia sem que qualquer prova concreta seja apresentada. Acreditar na declaração de agentes da CIA é coisa muito pueril. Seria ingênuo se não se soubesse da profunda submissão e colonialismo do jornalismo mundial.

Olha, eu sei lá, mas o que vi na televisão chegou às raias do absurdo. Sendo verdade ou mentira o que aconteceu, ambas as coisas são absolutamente impensáveis num mundo em que imperam o tal do “estado de direito”. Não há mais limites para o império. Definitivamente são tempos sombrios. E pelo que se vê, voltamos ao tempo do farwest, só que agora, o céu é o limite. Pelo menos para o império. Darth Vader é fichinha!

 

* Elaine Tavares é jornalista

A Foxconn e os direitos trabalhistas no Brasil

A Foxconn, empresa de origem taiwanesa responsável pela fabricação de produtos como iPad, PlayStation, Wii e Xbox, além de celulares para diversas marcas, planeja investir US$ 12 bilhões no Brasil nos próximos cinco anos para produzir telas de computador e tablets. A montagem de iPads começaria, por aqui, até o final do ano. O projeto envolveria 100 mil empregos.

A notícia de geração de postos de trabalho, claro, sempre é positiva. Mas estava matutando, procurando saber como o senhor Terry Gou, dono da empresa, e seu parceiro Steve Jobs, pretendem fazer dinheiro por aqui. Nossa legislação ambiental é bem mais rigorosa (no que pesem os esforços do Congresso Nacional de podá-la com motosserra), ou seja, um projeto dessa monta vai ter impactos e, consequentemente, condicionantes e passivos. Isso sem contar que a força de trabalho por aqui é melhor remunerada, com sindicatos mais fortes e uma fiscalização do trabalho mais atuante. Por fim, mas não menos importante, nosso câmbio está valorizado, ao contrário da China – onde a Foxconn tem cerca de um milhão de empregados e uma gigantesca plataforma de exportação.

A entrada de investimentos é alvissareira desde que os parceiros de fora (e seus possíveis parceiros locais – né, Eike?) não pressionem por mudanças nas leis que garantem qualidade de vida aos que moram por aqui. E, acima de tudo, que as respeitem. O Brasil tem conseguido tratar algumas importantes convenções da Organização Internacional do Trabalho como piso e não como teto, em outras palavras, leis nacionais protegem o trabalhador além do mínimo acordado nas Nações Unidas – enquanto a China, entre outros exemplos de crescimento, usam como teto e olhe lá.

No ano passado, a Foxconn, teve – pelo menos – oito casos de suicídio de empregados em território chinês. Por exemplo, um jovem de 21 anos se jogou de um prédio da empresa em Shenzen, um dos pólos tecnológicos do país, por exemplo. Os que defendem a empresa dizem que isso está dentro das taxas de suicídio da sociedade, haja vista o tamanho da gigante de tecnologia. Nada relacionado a longas jornadas de trabalho, pouco descanso, muita cobrança, baixa qualidade de vida, enfim, tudo o que nos enlouquece no dia-a-dia.

Neste ano, o concurso “Public Eye Awards” (algo como o “Prêmio Vigilante Público”) trouxe seis finalistas para serem escolhidas a pior empresa do mundo em se tratando de respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. A Foxconn foi uma delas. De acordo com o concurso, “a indústria de eletrônicos taiwanês Foxconn produz equipamentos de alto tecnologia para marcas como Apple, Dell e Nokia, pagando salários miseráveis. Devido ao controle da força de trabalho ao estilo militar adotado nas instalações da empresa na China, ao menos 18 empregados tentaram suicídio no ano passado”.

A realidade de lá é diferente da daqui, é claro. Mas na toada em que vamos, em que o modelo chinês de desenvolvimento vem se tornando um mantra (nessa hora, ninguém lembra do regime política de lá, né? Uma graça!), é sempre bom manter os olhos naquele mínimo de proteção que a nossa sociedade conseguiu em um século de diálogos e enfrentamentos. Crescer é importante, mas nunca esquecendo para quê.

Alguém vai dizer: “deixa de ser chato, japonês!” Mas para ironizar a Gloriosa: o preço da liberdade é a eterna vigilância (sabia que, um dia, eu usaria essa frase para alguma coisa…)

Gosto de uma história que já contei aqui: Há mais de 50 anos, o “demônio” apareceu para um grupo de operárias que trabalhavam em uma linha de produção de uma fábrica de cerâmica em São Caetano do Sul. Ações modernizadoras aceleraram o ritmo industrial da produção de ladrilhos, sem que isso fosse devidamente informado às trabalhadoras. Com a atualização tecnológica, a seção que escolhia os ladrilhos, excluída das decisões que levaram às mudanças, continuou manual, mas subjugada à nova velocidade do maquinário. Muitos ladrilhos começaram a sair defeituosos, levando tensão às operárias dessa seção, que tiveram dificuldade para cumprir seu serviço. Oriundas de uma comunidade católica, as trabalhadoras creditaram tal fato à presença do diabo na fábrica: o Coisa Ruim teria o jeitão e o sorriso dos engenheiros, que controlavam tudo de cima. Foi demandada uma missa no local e que a máquina de ladrilhos fosse benzida. O diabo desapareceu. Não apenas por conta daquele ato simbólico, mas também pelo fato da máquina ser ajustada para não causar mais problemas…

Essa história foi analisada pelo professor José de Souza Martins em um artigo que se tornou famoso por tratar das conseqüências da modernização industrial. Segundo ele, quando se separa radicalmente o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário pode preencher esse vazio para lhe dar sentido. O demônio apareceu como a figuração da ameaça à humanidade do ser humano pela racionalização do trabalho. Para enfrentar o problema dos suicídios, a Foxconn chegou a chamar monges budistas para realizar cerimônias a fim de mandar os maus espíritos para longe.

Adaptando o professor Martins, chamar monges na China ou padres em São Caetano do Sul tem o mesmo objetivo de tentar restituir as fábricas ao “tempo cósmico e qualitativo que fora banido com a completa sujeição de todo o processo de trabalho ao tempo linear, quantitativo, repetitivo da produção automatizada”.

E quando somos nós mesmos, nosso modelo de desenvolvimento e nossa forma de fazer negócios globalmente que trazem sistematicamente os “maus espíritos”? O que fazer?


Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Já foi professor de jornalismo na USP e, hoje, ministra aulas na pós-graduação da PUC-SP. Trabalhou em diversos veículos de comunicação, cobrindo os problemas sociais brasileiros. É coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.