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Direito e responsabilidade

A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais da pessoa humana proclamados pela ONU em 1948, sendo enfaticamente referida no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde se diz que “toda pessoa humana tem direito à liberdade de opinião e expressão, incluindo-se nesse direito a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

Para reforço da eficácia jurídica desse direito, e também para deixar expressa a existência de limitações que podem ser consideradas legítimas, bem como para ressaltar que o exercício desse direito implica deveres e responsabilidades, a ONU estabeleceu algumas regras básicas sobre o exercício da liberdade de expressão no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado em 1966. No artigo 19 do Pacto, que está em vigor no Brasil, com força de lei, desde 24 de janeiro de 1992, dispõe-se que o exercício desse direito implicará deveres e responsabilidades especiais, acrescentando-se que ele poderá estar sujeito a certas restrições, “que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas, ou para proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas”. Assim, pois, a liberdade de expressão, aqui incluída, obviamente, a liberdade de imprensa, é um direito fundamental e como tal deve ser assegurado e protegido, mas jamais poderá ser invocado como justificativa ou pretexto para a prática de atos que ofendam outros direitos.

Direito da cidadania

Como tem sido muitas vezes proclamado em documentos internacionais, e é expressamente consagrado na Constituição brasileira, a liberdade de imprensa faz parte do aparato essencial do Estado Democrático de Direito. É de interesse de todas as pessoas e de todo o povo que essa liberdade seja respeitada, mas é absolutamente necessário que ela seja concebida e usada como um direito da cidadania e não como um apêndice do direito de empresa ou como privilégio dos proprietários e dirigentes dos meios de comunicação, ou, ainda, dos jornalistas e demais agentes que atuam no sistema. Fazem parte dessa liberdade o direito e o dever de respeitar as limitações legais e de informar corretamente, o que implica fazer a divulgação de fatos verdadeiros, sem distorções, com imparcialidade e também sem ocultar fatos e circunstâncias que são de interesse público ou necessários para o correto conhecimento do que for divulgado.

Essas considerações tornam-se oportunas neste momento em que um farto noticiário da imprensa informa sobre tremendos desvios éticos, implicando ilegalidades de várias naturezas, praticados sob o comando de um famoso proprietário e dirigente de um poderoso sistema de comunicações, incluindo jornais ingleses de grande circulação e tendo ramificações em muitos outros países.

Abusos de um poderoso

Pelo que já foi divulgado, esse personagem, o australiano Rupert Murdoch, estabeleceu sua base na Inglaterra e, ignorando barreiras éticas e legais, tornou-se verdadeiro chefe de quadrilha, desenvolvendo um conglomerado de “imprensa investigativa”, organizando um sofisticado sistema de invasão de aparelhos de comunicação e de registro de dados confidenciais. E isso vem sendo utilizado há muitos anos para a ampliação de seus negócios, publicando informações escandalosas e confidenciais, conquistando um grande público e, naturalmente, atraindo grande volume de publicidade e também a cumplicidade de grandes empresários.

Levando ainda mais longe o abuso da liberdade de imprensa, Murdoch invadiu também a intimidade de pessoas e famílias, inclusive determinando que seus agentes fizessem a interceptação das comunicações telefônicas da própria família real inglesa, o que foi descoberto e levou um deles à prisão. Mas desse modo, valendo-se do controle de uma grande rede de jornais e penetrando também na televisão, Murdoch acabou criando um aparato de intimidação que lhe deu a possibilidade de exercer muita influência na vida política inglesa, pois, como tem sido noticiado, ele colocou agentes em postos-chaves do governo e assim até mesmo os ocupantes do mais alto posto de governo da Inglaterra, que é o cargo de primeiro-ministro, passaram a temer seu corrupto sistema de imprensa.

Poder implica papel social

Os fatos ocorridos agora na Inglaterra devem servir de advertência. O extraordinário crescimento dos meios de comunicação e de seu potencial de influência social já tem levado a liberdade de imprensa a ser usada como instrumento da corrupção, a serviço dos interesses empresariais e também políticos, ou de ambos conjuntamente. Não há dúvida de que modernamente a imprensa livre é requisito essencial para a existência de uma sociedade livre e democrática, mas o gozo dessa liberdade implica uma responsabilidade social, sobretudo tendo em conta a enorme influência que a imprensa exerce sobre a população. Transmitindo informações, a imprensa pesa muito na formação das convicções e pode ter um papel fundamental tanto para a consagração de posições favoráveis à dignidade e aos direitos fundamentais da pessoa humana, quanto para o estabelecimento e a alimentação de preconceitos, de atitudes discriminatórias ou para a imposição e manutenção de graves injustiças na organização da sociedade e nas relações entre os seres humanos.

A imprensa deve ter o direito de ser livre, a fim de que possa manter o povo informado de todos os fatos de alguma relevância para as pessoas e a humanidade, que ocorrerem em qualquer parte do mundo, sem reservas ou discriminações. Na sociedade contemporânea são muitas as atividades, às vezes de grande importância para muitas pessoas ou para grupos humanos, que dependem de informações corretas, atualizadas e, quanto possível, precisas, cabendo à imprensa um papel relevante no atendimento dessa necessidade social. Bastam esses pontos para se concluir que as tarefas da imprensa configuram um serviço público relevante. E por isso a Constituição proclama e garante a liberdade de imprensa como direito fundamental.

Deveres, não privilégios

Mas é absolutamente necessário ter consciência de que esse direito e essa garantia não são outorgados como um favor ou privilégio aos proprietários dos veículos de comunicação de massa ou aos jornalistas e demais participantes do sistema, mas têm sua justificativa precisamente no caráter de serviço público relevante, da imprensa. Dos mesmos fundamentos que justificam o direito e a garantia de liberdade decorre o dever de informar honestamente, com imparcialidade, sem distorções e também sem omissões maliciosas, sem a ocultação deliberada de informações que possam influir sobre a formação da opinião pública. Assim, a liberdade de imprensa enquadra-se na categoria de direito/dever fundamental para a existência de uma sociedade livre, democrática e justa.

* Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Os limites da liberdade de expressão

Em sua coluna na Folha de S.Paulo do último dia 7 de abril, Hélio Schwartsman, provocado pelas lamentáveis declarações do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), abordou um tema controverso, complexo e, também por isso, muito caro a todos nós. Trata-se da polêmica sempre atual envolvendo o conteúdo e o alcance do princípio fundamental da liberdade de expressão. Sob o título "Uma defesa de Bolsonaro", Schwartsman sentencia, já nas primeiras linhas de seu texto, que ele, "evidentemente", está "entre os que acham que o mandatário tem o direito de dizer o que pensa, por mais politicamente incorretas, ofensivas ou imorais que sejam suas declarações".

Não tenho qualquer coisa nova que valha a pena dizer sobre as palavras do deputado, que, de resto, considero abomináveis. Por isso, vou me restringir a uma leitura mais detida sobre o conceito da liberdade de expressão, procurando refutar o argumento de Schwartsman, utilizando as declarações de Bolsonaro apenas eventualmente como instrumento para ilustrar o meu próprio ponto de vista.

Os contendores em um debate se utilizam de estratégias de argumentação diversas para convencer seus interlocutores e a plateia. A indicação de figuras socialmente reconhecidas como referências em uma área, para o bem ou para o mal, está entre as mais comuns. Assim, no debate sobre a liberdade, a de expressão entre elas, citamos frequentemente Hitler e Stalin, de um lado, e Noam Chomsky e John Stuart Mill, de outro. Mas não nos deixemos enganar, pois os discursos a respeito de um princípio, especialmente nesse caso, são formas de ação política e remontam ao debate que, embora perene, tem capítulos bastante distintos. Há um esforço constante para elaborar argumentos capazes de distinguir entre quais discursos devem e quais não devem ser protegidos de qualquer interferência do Estado – o que não é e nunca foi objeto de consenso, seja nos meios jurídicos ou na teoria política. Para notar essas distinções, não precisamos nos remeter às práticas totalitárias e classificar qualquer opinião que se desvie da compreensão da liberdade de expressão como uma liberdade negativa, como censura ou restrição à liberdade individual.

Anacronismo perigoso

A liberdade de expressão está comumente associada à busca da verdade, à auto-expressão individual, ao bom funcionamento da democracia e a um equilíbrio entre estabilidade e mudança social. Ela não é necessária apenas para que os cidadãos exerçam as suas capacidades morais de ter um senso de justiça e defender uma concepção do bem. Combinada aos procedimentos políticos estabelecidos constitucionalmente, a livre expressão de ideias aparece como uma alternativa à revolução e ao uso da força, que ameaçam sobremaneira as nossas liberdades básicas.

Já no século 17, na Inglaterra, John Milton, no manifesto intitulado Areopagitica, defendia a liberdade de impressão sem prévia autorização estatal. Como bem lembrou Schwartsman, Mill, dois séculos depois, também defendeu a livre expressão de ideias. Mas o alvo deste último era outro e por isso oferecia razões distintas das de Milton. Enquanto este fundamentava a sua defesa na crença de que as opiniões eram constitutivas dos indivíduos enquanto tais, Mill se baseia na ideia de uma relação interna entre liberdade e verdade, em que a primeira se define e se limita pela última.

O que quero dizer é que me parece, para dizer o mínimo, um anacronismo perigoso e sem tamanho buscar em um filósofo inglês novecentista uma discussão sobre a proteção a certos discursos, como o faz Schwartsman em relação ao de Bolsonaro. Questões como a homofobia, simplesmente não faziam parte da agenda. Afora isso, não me parece que de nenhum desses casos se depreenda um argumento a favor do estabelecimento de uma área livre de interferência do Estado e da sociedade sobre a conduta dos indivíduos – isso é fruto de interpretações, a meu ver equivocadas, da obra de Mill.

Propagandas falsas ou calúnias

Sabemos que as liberdades políticas em geral, e a liberdade de expressão em particular, têm tanto uma dimensão defensiva (contra a intervenção indevida do Estado), quanto uma dimensão protetiva (que requer a intervenção do Estado para ser de fato garantida). A questão que se coloca é saber em que medida devem ser defendidas ou quais seriam os limites dessas duas dimensões. Seria possível a restrição de conteúdos específicos, como discursos de incitação ao ódio, de caráter racista, homofóbico etc., sem se restringir demais a liberdade de expressão? Ou devemos dar preferência a regulações neutras em relação ao conteúdo?

Precisamos distinguir, antes de mais nada, entre restrição e regulação das liberdades fundamentais. Autores da tradição liberal, como John Rawls, afirmam que a prioridade dessas liberdades não é ameaçada quando se estabelecem regras, que se combinam em um sistema, no intuito de fomentar as condições sociais necessárias ao seu exercício duradouro. Na definição sobre se e quanto uma determinada política infringe a liberdade de expressão, está certamente incluída, como vimos, uma discussão sobre o conteúdo e o alcance dessa liberdade e sobre o que implica um julgamento a respeito disso.

Admitindo-se que as pessoas em geral, e os mais poderosos especialmente, desejam afastar qualquer crítica e evitar a expressão de posições das quais discordam, podemos ter a impressão de que a regulação de conteúdos pode se tornar um instrumento eficaz para que se impeçam a expressão de críticas e posições contrárias a certas opiniões consideradas em um certo momento politicamente incorretas ou moralmente condenáveis. Uma das presunções contra o controle de conteúdo afirma que ele traz consigo a possibilidade de que se excluam inteiramente certos pontos de vista do mercado de ideias: a regulação de conteúdos representaria uma ameaça maior de que certas ideias sejam impedidas de serem expressas, a despeito do valor que tais ideias possam ter para os próprios falantes ou para a comunidade em geral. No entanto, embora a impermissibilidade de certas formas de regulação de conteúdo tenha um papel importante para a liberdade de expressão, disso não decorre que seja uma questão fundamental e definitiva que qualquer restrição a conteúdos seja indesejável: não creio que muitos de nós viríamos a nos opor à proibição de propagandas falsas ou calúnias.

Regulação de conteúdos ofensivos

Uma leitura corrente, e que me parece combinar-se com a posição de Schwartsman no artigo a que estou me referindo, defende a possibilidade de se usar a própria expressão como forma de combater os custos envolvidos em expressões ofensivas ou condenáveis. Há a presunção de que, já que as pessoas têm a capacidade de mudar as suas opiniões quando apresentadas a novas e distintas razões, basta que sejam formalmente garantidas oportunidades a discursos que se contraponham às expressões racistas, homofóbicas etc. para que a "verdade" seja restabelecida.

No entanto, há discursos cujo conteúdo é incompatível com o axioma da igualdade moral humana, não sendo, também por isso, publicamente razoáveis. Devemos nos indagar, nesse sentido, se seria uma atitude intolerante impedir a expressão de crenças intolerantes. Pelo próprio caráter de indeterminação do que deve ser o sistema de tolerância, não parece fora de questão, mesmo para aqueles que advogam a favor da tolerância, reivindicar que algumas formas de conduta e expressão sejam proibidas no intuito de proteger grupos discriminados.

O professor Joshua Cohen, da Universidade Stanford, argumenta que a regulação em relação a determinados conteúdos ofensivos não contraria uma proteção rígida à liberdade de expressão, desde que os discursos regulados sejam: (a) expressões cuja intenção é insultar e cujos insultos são diretamente endereçados a um indivíduo ou a um pequeno grupo; (b) a ofensa é transmitida através de expressões que estigmatizam características individuais associadas a gênero, raça, etnia etc., as quais não seria possível combater com "mais discurso", pois causam danos direta e imediatamente; e (c) quando as regras destacam uma subcategoria específica e não representam um convite ao balanço entre custos e benefícios do que deverá ou não ser permitido, sendo atentas, antes, à vulnerabilidade dos discursos.

Defesa do espancamento

Herbert Marcuse, teórico alemão da Escola de Frankfurt, reforça que os diversos interesses não se contrabalançam em uma sociedade desigual e na qual a desigualdade permanece e se perpetua, se as coisas são deixadas a correr o seu curso normal. Um dos defensores mais conhecidos de intervenções pontuais e incisivas do Estado sobre a expressão política, Marcuse, não obstante, concorda em grande medida com Mill em relação ao valor epistêmico associado a uma deliberação pública livre e aberta. Marcuse sustenta também a ideia de que a tolerância, entendida como uma restrição à interferência de alguém sobre a expressão de ideias das quais discorda fortemente, é uma das condições que mais favorece a descoberta social da verdade – ainda que uma verdade inatingível. Contudo, a tolerância, por si mesma, não promove a verdade sem que esteja em conjunção com outras condições. Se essa tolerância serve principalmente à manutenção de uma sociedade repressiva, neutraliza-se a oposição e imunizam-se os indivíduos contra outras formas de vida. Repelido pela solidez de uma sociedade governada, o esforço pela emancipação torna-se abstrato, reduzindo-se a facilitar o reconhecimento do que já é sustentado.

Basta uma pesquisa rápida nos últimos meses pelos diários brasileiros para que nos recordemos de escabrosos casos de violência contra negros, homossexuais, nordestinos etc. Não custa lembrar do que houve logo após o segundo turno da eleição presidencial de 2010. Será que "direito de dizer o que [se] pensa, por mais politicamente incorretas, ofensivas ou imorais que sejam as declarações" deve ser estendido a uma Mayara Petruso, ou a quem defenda a ideia subjacente aos espancamentos de negros e homossexuais por bandos de skinheads?

Preconceitos difundidos

Como o próprio Schwartsman admite, é inexoravelmente controverso definir o que constituiria um dano causado por um discurso. Parte do debate contemporâneo sobre a liberdade de expressão vincula-se às interpretações da Suprema Corte norte-americana a respeito da Primeira Emenda à Constituição. A Primeira Emenda é comumente compreendida como uma postulação clássica dos limites à interferência do Estado sobre a conduta individual. A Suprema Corte, no entanto, muitas vezes a tomou menos como uma vedação absoluta à intervenção estatal sobre a liberdade de discurso do que como um dispositivo para estabelecer as fronteiras móveis da atuação do Estado. Em alguns casos, foram levados em conta para a ponderação certas categorias de discurso – hate speech, fighting words etc. – que se permitiria regular sem deixar de proteger a liberdade de expressão.

Owen Fiss, professor de Direito da Universidade Yale, chamou atenção para o papel silenciador de algumas formas de expressão, que podem reforçar e ser reforçadas por preconceitos difundidos na sociedade contra determinados grupos. Dessa forma, quando o Estado adota uma postura positiva no sentido de impedir que se silencie uma parte dos cidadãos, especialmente de grupos mais vulneráveis, ele estaria, antes protegendo a liberdade de expressão do que restringindo-a.

Antes que sejamos acusados de propor ou justificar a censura prévia, cabe um breve esclarecimento: não se trata aqui de estabelecer uma entidade encarregada de analisar caso a caso quais formas e conteúdos podem ser expressos publicamente, mas de estabelecer critérios a partir dos quais possam ser posteriormente julgados e, eventualmente, punidos os responsáveis pela veiculação de discursos cujo conteúdo seja potencialmente ofensivo e reforce a estigmatização de determinados grupos sociais. Na minha opinião, expressões como as do referido deputado não são apenas "politicamente incorretas, ofensivas ou imorais", mas extrapolam o que se pode considerar publicamente razoável. E isto, exatamente por se referir a preconceitos amplamente difundidos na sociedade e em relação a grupos, também por isso, flagrantemente vulneráveis.

*Renato Francisquini possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004), é mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007-2009) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2010-). Atua na área de Teoria Política, com ênfase em Comunicação Política, principalmente nos seguintes temas: teoria democrática contemporânea, entrelaçamentos entre meios de comunicação e democracia, sociedade civil, eleições, estudos legislativos