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A Foxconn e os direitos trabalhistas no Brasil

A Foxconn, empresa de origem taiwanesa responsável pela fabricação de produtos como iPad, PlayStation, Wii e Xbox, além de celulares para diversas marcas, planeja investir US$ 12 bilhões no Brasil nos próximos cinco anos para produzir telas de computador e tablets. A montagem de iPads começaria, por aqui, até o final do ano. O projeto envolveria 100 mil empregos.

A notícia de geração de postos de trabalho, claro, sempre é positiva. Mas estava matutando, procurando saber como o senhor Terry Gou, dono da empresa, e seu parceiro Steve Jobs, pretendem fazer dinheiro por aqui. Nossa legislação ambiental é bem mais rigorosa (no que pesem os esforços do Congresso Nacional de podá-la com motosserra), ou seja, um projeto dessa monta vai ter impactos e, consequentemente, condicionantes e passivos. Isso sem contar que a força de trabalho por aqui é melhor remunerada, com sindicatos mais fortes e uma fiscalização do trabalho mais atuante. Por fim, mas não menos importante, nosso câmbio está valorizado, ao contrário da China – onde a Foxconn tem cerca de um milhão de empregados e uma gigantesca plataforma de exportação.

A entrada de investimentos é alvissareira desde que os parceiros de fora (e seus possíveis parceiros locais – né, Eike?) não pressionem por mudanças nas leis que garantem qualidade de vida aos que moram por aqui. E, acima de tudo, que as respeitem. O Brasil tem conseguido tratar algumas importantes convenções da Organização Internacional do Trabalho como piso e não como teto, em outras palavras, leis nacionais protegem o trabalhador além do mínimo acordado nas Nações Unidas – enquanto a China, entre outros exemplos de crescimento, usam como teto e olhe lá.

No ano passado, a Foxconn, teve – pelo menos – oito casos de suicídio de empregados em território chinês. Por exemplo, um jovem de 21 anos se jogou de um prédio da empresa em Shenzen, um dos pólos tecnológicos do país, por exemplo. Os que defendem a empresa dizem que isso está dentro das taxas de suicídio da sociedade, haja vista o tamanho da gigante de tecnologia. Nada relacionado a longas jornadas de trabalho, pouco descanso, muita cobrança, baixa qualidade de vida, enfim, tudo o que nos enlouquece no dia-a-dia.

Neste ano, o concurso “Public Eye Awards” (algo como o “Prêmio Vigilante Público”) trouxe seis finalistas para serem escolhidas a pior empresa do mundo em se tratando de respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. A Foxconn foi uma delas. De acordo com o concurso, “a indústria de eletrônicos taiwanês Foxconn produz equipamentos de alto tecnologia para marcas como Apple, Dell e Nokia, pagando salários miseráveis. Devido ao controle da força de trabalho ao estilo militar adotado nas instalações da empresa na China, ao menos 18 empregados tentaram suicídio no ano passado”.

A realidade de lá é diferente da daqui, é claro. Mas na toada em que vamos, em que o modelo chinês de desenvolvimento vem se tornando um mantra (nessa hora, ninguém lembra do regime política de lá, né? Uma graça!), é sempre bom manter os olhos naquele mínimo de proteção que a nossa sociedade conseguiu em um século de diálogos e enfrentamentos. Crescer é importante, mas nunca esquecendo para quê.

Alguém vai dizer: “deixa de ser chato, japonês!” Mas para ironizar a Gloriosa: o preço da liberdade é a eterna vigilância (sabia que, um dia, eu usaria essa frase para alguma coisa…)

Gosto de uma história que já contei aqui: Há mais de 50 anos, o “demônio” apareceu para um grupo de operárias que trabalhavam em uma linha de produção de uma fábrica de cerâmica em São Caetano do Sul. Ações modernizadoras aceleraram o ritmo industrial da produção de ladrilhos, sem que isso fosse devidamente informado às trabalhadoras. Com a atualização tecnológica, a seção que escolhia os ladrilhos, excluída das decisões que levaram às mudanças, continuou manual, mas subjugada à nova velocidade do maquinário. Muitos ladrilhos começaram a sair defeituosos, levando tensão às operárias dessa seção, que tiveram dificuldade para cumprir seu serviço. Oriundas de uma comunidade católica, as trabalhadoras creditaram tal fato à presença do diabo na fábrica: o Coisa Ruim teria o jeitão e o sorriso dos engenheiros, que controlavam tudo de cima. Foi demandada uma missa no local e que a máquina de ladrilhos fosse benzida. O diabo desapareceu. Não apenas por conta daquele ato simbólico, mas também pelo fato da máquina ser ajustada para não causar mais problemas…

Essa história foi analisada pelo professor José de Souza Martins em um artigo que se tornou famoso por tratar das conseqüências da modernização industrial. Segundo ele, quando se separa radicalmente o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário pode preencher esse vazio para lhe dar sentido. O demônio apareceu como a figuração da ameaça à humanidade do ser humano pela racionalização do trabalho. Para enfrentar o problema dos suicídios, a Foxconn chegou a chamar monges budistas para realizar cerimônias a fim de mandar os maus espíritos para longe.

Adaptando o professor Martins, chamar monges na China ou padres em São Caetano do Sul tem o mesmo objetivo de tentar restituir as fábricas ao “tempo cósmico e qualitativo que fora banido com a completa sujeição de todo o processo de trabalho ao tempo linear, quantitativo, repetitivo da produção automatizada”.

E quando somos nós mesmos, nosso modelo de desenvolvimento e nossa forma de fazer negócios globalmente que trazem sistematicamente os “maus espíritos”? O que fazer?


Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Já foi professor de jornalismo na USP e, hoje, ministra aulas na pós-graduação da PUC-SP. Trabalhou em diversos veículos de comunicação, cobrindo os problemas sociais brasileiros. É coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

Curso de jornalismo prático: o manual do colunista

Agora que a obrigatoriedade do diploma para exercício da profissão caiu, o Blog do Sakamoto reforça o seu Curso de Jornalismo Prático. Já em sua terceira aula (a primeira e a segunda, sobre o Disk-Fonte: O Jornalismo Papagaio de Repetição, foram um sucesso), o Curso é elaborado em conjunto com amigos que são grandes repórteres e conhecem como ninguém o universo das redações. Para esta aula, um deles foi certeiro na análise do problema, criando um manual que será de grande utilidade aos recém-formados, mas também àqueles com mais quilometragem que querem “chegar lá”.

Quer virar colunista ou editorialista de jornalão impresso, de um telejornal noturno ou de uma revista semanal de grande circulação? Fácil. Basta seguir esse manual. Para cada tema polêmico da atualidade, há um repertório de cinco argumentos que devem ser repetidos ad nauseum, sem margem para hesitação. Pintou o tema, escolha um dos cinco argumentos abaixo e tasque na sua coluna. Se quiser, use mais de um. Você é a estrela.

Uma dica: para sua coluna parecer diversificada, democrática, procure colocar alguns dos argumentos abaixo na boca de “especialistas”. Veja a lista de nossos especialistas no Disk-Fonte e escolha livremente. Se já estiver na hora do fechamento e ninguém atender, ligue para o Demétrio Magnolli, pois esse está sempre à disposição e discorre sobre qualquer assunto. Ele é fera.

E atenção: não se preocupe se o seu concorrente direto anda usando exatamente esses mesmos argumentos há anos. Não importa também se quase todos esses argumentos já foram aniquilados pelos fatos. O importante, em todos os casos, não é citar fatos. O que conta é dar ênfase no argumento. Se você estiver apresentando um telejornal, faça cara de compenetrado. Se for uma coluna, um editorial, carregue no título.

Além da segurança, da facilidade e da comodidade, há várias outras razões para você usar esse manual: 1) você vai parecer erudito; 2) você vai gastar pouco tempo para fechar a coluna; e 3) seu texto irá repercutir muito bem junto ao dono do(a) jornal/revista/TV que você trabalha.

Ao manual:

Se o assunto é: Cotas nas universidades, ação afirmativa, Estatuto da Igualdade Racial

Seus argumentos devem ser:

“Para a biologia, a raça humana é uma só. Logo, não faz sentido dividir as pessoas por raças”

“A política de cotas é perigosa. Irá criar conflitos que não existem hoje no Brasil”

“É uma ameaça à qualidade do ensino, pois os beneficiários não conseguirão acompanhar as aulas”

“Essas iniciativas representam uma ameaça ao princípio de que todos são iguais perante a lei”

“Cotas são ruins para os próprios negros, pois eles sempre se sentirão discriminados na faculdade”

Se o assunto é: Reforma agrária, MST, agricultura familiar

Seus argumentos devem ser:

“Não faz mais sentido fazer reforma agrária no século 21”

“O agronegócio é muito mais produtivo, eficiente, rentável, moderno e lucrativo”

“O Fernando Henrique já fez a reforma agrária no Brasil”

“Se você distribui lotes, o agricultor pega a terra e a vende para terceiros depois”

“O MST é bandido”

Se o assunto é: Bolsa Família

Seus argumentos devem ser:

“O pobre vai usar o dinheiro para comprar TV, geladeira, sofá e outros artigos de luxo”

“O pobre não terá incentivo para trabalhar. Vai se acostumar na pobreza”

“Não adianta dar o peixe, tem de ensinar a pescar”

“O programa não tem porta de saída” (não tente explicar o que é isso)

“O governo só sabe criar gastos”

Se o assunto é: Mortos e desaparecidos políticos, abertura de arquivos da ditadura, revisão da Lei de Anistia

Seus argumentos devem ser:

“Não é hora de mexer nesse assunto”

“A Anistia foi para todos. Valeu para os militares; valeu para os terroristas”

“Não é hora de mexer nesse assunto”

“A Anistia foi para todos. Valeu para os militares; valeu para os terroristas”

“Não é hora de mexer nesse assunto”

Se o assunto é: Confecom, democratização da comunicação, classificação indicativa

Seus argumentos devem ser:

“Qualquer regulamentação é ruim, o mercado regula”

“É um atentado à liberdade de imprensa”

“Querem acabar com o seu direito de escolha”

“Já tentaram expulsar até o repórter do New York Times, sabia?”

“A classificação indicativa é censura. Os pais é que têm que regular o que seus filhos assistem

Se o assunto é: A política econômica

Seus argumentos devem ser:

“O governo deveria aproveitar esse período de vacas gordas para fazer as reformas que o Brasil precisa, cortando custos”

“Os gastos e a contratação de pessoal estão completamente fora de controle”

“O país precisa fazer a lição de casa e cortar postos de trabalho”

“Quem produz sofre muito com o Custo Brasil, é necessário cortar custos e investir em infra-estrutura”

“Só dá certo porque é continuidade do governo FHC”

Se o assunto é: Trabalho e capital

Seus argumentos devem ser:

“O que os sindicatos não entendem é que, nesta hora, todos têm que dar sua cota de sacrifício”

“Os grevistas não pensam na população, apenas neles mesmos”

“Sem uma reforma trabalhista que desonere o capital, o Brasil está fadado ao fracasso”

“A CLT é uma amarra que impede a economia de crescer”

“É um absurdo os sindicatos terem tanta liberdade”