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Nelson Breve e os nós da EBC

A posse do jornalista Nelson Breve na presidência da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi realizada hoje (9), em Brasília, numa solenidade cheia de sinais que ajudam a entender o contexto político em que se encontra a TV Brasil, principal canal de radiodifusão da comunicação pública que propõe o Governo Federal. O próprio discurso de posse do novo presidente apontou para os desafios políticos que enfrentará na gestão da emissora. Entre eles, o de transformar nós da TV Brasil em enlaces e o de fazer da Rede Nacional de TV Pública Digital Terrestre mais eficiente e mais eficaz, como instrumento de comunicação pública, portanto da sociedade.

Vamos por partes. A posse de Nelson Breve ocorreu 40 dias depois da saída de sua antecessora, a primeira presidente da EBC, jornalista Tereza Cruvinel, que não participou da solenidade. Não passou a “faixa”, alegando uma incompatibilidade de agenda. Mandou uma carta, lida pelo cerimonial, em que ressalta as qualidades do seu sucessor que, segundo afirma, teria indicado ao cargo, antes de, segundo afirma, pedir para ser substituída. Um roteiro perfeito para quem ficou com o “filme queimado”, depois de bater de frente com o Conselho Curador da EBC e de receber críticas de entidades representativas como o Coletivo Intervozes.

Abrindo o ato, a presidente do Conselho Curador, a pesquisadora Ima Célia Guimarães Vieira falou com a sabedoria da floresta (ela sabe a que me refiro) e, como num rito de passagem, enalteceu a gestão de Cruvinel, colocando uma “pá de cal” nas polêmicas. Vieira fez um discurso elegante, mas altivo, para o novo presidente, que bem sabe em que “missal” terá de rezar. Inevitavelmente, a questão da laicidade da programação, defendida pelo Conselho, frente à liberdade de expressão de cultos religiosos na TV pública, defendida pela gestão anterior, deverá entrar em pauta mais uma vez, e com resultados que podem influir diretamente nas emissoras da Rede.

Em seu discurso de posse, o novo presidente Nelson Breve também reconheceu o papel de Tereza Cruvinel, nos primeiros quatro anos da TV Brasil. Fez um balanço da trajetória do que há pouco chamávamos de “embrião” de TV pública. Destacou os avanços na quantidade e na qualidade da programação, o título conquistado três anos seguidos (2008, 2009 e 2010) de emissora de canal aberto que mais exibe a produção audiovisual brasileira e o recente prêmio Embratel de telejornalismo na categoria Educação. E falou também do serviço de TV interativa, instalado em São Paulo e Brasília, através de programas disponibilizados pela Previdência Social e Caixa Econômica.

Mas o melhor foram os desafios listados por Breve, e aqui destaco cinco deles. O primeiro é o da eliminação dos preconceitos. “Os nossos e os da sociedade”, afirmou, defendendo que “a EBC é de todos”, é da pluralidade e que, assim sendo, “não deve ter preconceitos com pessoas, religiões, idéias, partidos ou políticos”. Segundo, o de ser exemplo em direitos humanos, principalmente em acessibilidade. Breve referiu-se à massificação do uso da língua brasileira de sinais e da audiodescrição na programação, o que é muito louvável. Não ao conceito amplo, menos analógico e mais digital, de acessibilidade, que deveria ser abraçado, afinal surdos e cegos não querem só ver TV, querem também o direito à interatividade.

Um terceiro desafio listado pelo presidente é o de “fazer diferente, ser complementar (às emissoras privadas ou estatais, certamente), experimentar, ousar”. E o quarto o de “traspassar a cultura das regiões pelas regiões” do país, contemplar todos os sotaques, pois “a fala é a mistura de muitas vozes”. Nestes casos, a sugestão é de que a TV Brasil adote a multiprogramação que, ao lado da interatividade, não parecem ser do interesse das emissoras privadas. Assim, sem grandes perdas na qualidade de áudio e vídeo digitais, seria possível ousar fazer uma TV pública colaborativa e inclusiva, no que se refere à produção de conteúdo, e mais representativa dos Brasis que somos.

O quinto desafio que destaco é o de melhorar a audiência do traço (que não atinge 1% dos telespectadores). Breve esboçou um gracejo diante da triste realidade de que nossa melhor TV pública, financiada com o dinheiro público, praticamente não é vista por ele, não lhe serve como canal público de informação e expressão. Disse que o traço da EBC nas pesquisas é “o que liga as regiões”, e que a emissora tem “um traço diferente” em relação às demais. E, com muita seriedade e serenidade, reconheceu a TV Brasil tem que se encontrar com sua verdadeira vocação de serviço público, o que pode ser o maior nó da sua gestão, afirmando: “Temos que nos fazer necessários”. E completou: “A gente precisa cair no gosto do povo”.

O discurso do novo presidente da EBC/TV Brasil: Clique aqui.

Alberto Perdigão é jornalista, mestre em Políticas Públicas e Sociedade, autor do livro Comunicação Pública e TV Digital – aperdigao@terra.com.br – @FalaPerdigao

Cinqüentenário sem festa

O ano de 2012 será histórico para a comunicação no Brasil. No dia 27 de agosto o Código Brasileiro de Telecomunicações que, apesar do nome, regula até hoje a radiodifusão no pais completa 50 anos. Mas não há nada a comemorar.

Em 1962, a “era do rádio” havia chegado ao fim e a televisão dava os primeiros passos para se tornar o meio de comunicação hegemônico no mundo.

Naquele momento, no entanto, ainda era frágil no Brasil, com imagens em preto e branco, transmissões atingindo distâncias limitadas e um uso ainda incipiente do vídeo-tape, recém chegado ao país.

Mas as perspectivas comerciais e políticas do novo veículo eram percebidas com clareza por empresários e políticos, geralmente as duas coisas ao mesmo tempo. Tanto é que não perderam tempo.

Os que possuíam concessões de rádio obtiveram as de TV sem concorrência, alegando tratar-se apenas de uma extensão tecnológica e não de um novo meio de comunicação. Semelhante ao que ocorreu agora com a distribuição de freqüências digitais para os grupos que já detinham as analógicas.

Na época, como hoje, tudo isso ocorria sob uma fragilidade legal, conveniente para os empresários da comunicação. Sentiam-se poderosos, mantinham governos – o segundo de Vargas e o de Juscelino – sob constante pressão. Não havia motivo para cogitarem de leis reguladoras de suas atividades.

O alerta soou mais forte diante da instabilidade dos sete meses de poder janista e, principalmente, das propostas reformistas de Jango. Os empresários sentiram que as pressões populares poderiam chegar à comunicação e trataram de se antecipar.

Elaboraram um Código de acordo com seus interesses e detendo forte poder no Congresso, como agora, conseguiram aprová-lo. Fizeram uma lei destinada a privatizar o espaço público, perpetuando privilégios e tirando do Estado sua função reguladora.

O presidente João Goulart sentiu o golpe e vetou 52 artigos da lei aprovada pelo Legislativo. A resposta do Congresso foi fulminante: derrubou todos os vetos presidenciais, revelando a força política do empresariado e a falta de sustentação parlamentar do governo.

Em meio às discussões em torno da derrubada dos vetos presidenciais, os radiodifusores reunidos em Brasília fundaram a Abert, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, até hoje zelosa defensora de seus interesses.

“A criação da Abert refletia a mobilização dos empresários do setor, que haviam se organizado em função dos debates acerca do Código Brasileiro de Telecomunicações e, posteriormente, em oposição aos vetos de João Goulart. Posicionavam-se, assim, contrariamente ao fortalecimento da presença do Estado na radiodifusão brasileira” (1), ressaltam Pieranti e Martins em artigo acadêmico sobre o tema.

Cinqüenta anos depois a força da Abert cresceu e o Código, apesar de mutilado, segue em vigor. O principal corte foi realizado durante o governo Fernando Henrique, em 1995, com a retirada da telefonia da lei, separando-a da radiodifusão, ato contrário à tendência global de juntá-las para dar conta do atual processo de convergência dos meios.

A razão desse anacronismo brasileiro estava na urgência de um marco legal para permitir a privatização das telecomunicações sem mexer no vespeiro político-econômico da radiodifusão. Restou-nos uma lei quase caduca para o rádio e a TV, indevidamente chamada de Código Brasileiro de Telecomunicações.

Mas se o problema fosse só titulo, não seria grave. A questão é que trata-se de uma lei formulada segundo interesses privados, elaborada em condições culturais e tecnológicas radicalmente diferentes das hoje existentes.

Em 1962, cerca de 70% dos brasileiros viviam no campo. Hoje, segundo o Censo do IBGE de 2010, apenas 18% seguem na zona rural. A pílula anticoncepcional e a mini-saia ainda estavam por vir e a tecnologia digital disseminada, um sonho. Mas a lei é a mesma.

O pouco dela aproveitável não se cumpre. Como o disposto no Artigo 124 que limita em 25% da programação o tempo destinado à publicidade. Desafiando à lei, emissoras vendem jóias, tapetes e outras mercadorias usando 100% dos seus horários de programação.

Outras fazem o mesmo de forma não tão escancarada. Mas se somarmos o tempo dos anúncios veiculados nos intervalos, com os dos “merchandisings”, poucas ficariam dentro dos limites legais.

Em meio século o setor concentrou-se de maneira brutal exigindo normas modernas para romper com a propriedade cruzada dos meios, talvez o maior obstáculo ao aprofundamento da democracia brasileira.

Confortáveis com a fragilidade legal existente hoje, os radiodifusores até há pouco tempo nem queriam pensar num novo marco regulatório para o setor. Com as teles começando a produzir conteúdos audiovisuais mudaram de opinião e até apóiam uma nova regulação. Mas bem limitada.

Se em 1962 queriam a lei por temer reformas impulsionadas por um governo popular, hoje voltam a apoiá-la acuados pelo poder de fogo das empresas de telefonia. E nada mais.

São insensíveis ao problema da propriedade cruzada dos meios, chegando a dizer em documento recente publicado pela Abert que discutir esse tema “significaria um retrocesso” (2) sem explicar bem porque.

Não querem nem ouvir falar da existência de órgãos reguladores, imprescindíveis para dar cumprimento às leis e estabelecer a ponte necessária entre as emissoras e o público, comuns em vários países.

A existência de uma lei moderna, com a atuação eficaz de um órgão regulador permitiria, por exemplo, a aplicação de sanções em casos de má utilização do serviço público de rádio e TV.

Como ocorreu recentemente, na madrugada de uma segunda-feira, quando a Bandeirantes exibia um clássico de Fellini: “Satyricon”. Sem avisar, cortou a última parte do filme, substituindo-a por um programa de televendas e por um religioso.

Em casa, o telespectador não tem a quem reclamar. E a emissora, certa da impunidade, seguirá com a mesma prática exaltando a terra sem lei em que vivemos. Há quase 50 anos.

Notas

(1) Pieranti, O. P. e Martins, P.E.M. – "A radiodifusão como um negócio: um olhar sobre a gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações" in Revista de Economia Política de las Tecnologias de La Información y Comunicación, São Cristovão, vol.IX, nº 1, jan-abr/2007.

(2) Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão) – Contribuições para o Seminário de Comunicação do PT in Seminário por um novo marco regulatório para as comunicações: o PT convida ao debate – Partido dos Trabalhadores – São Paulo, 25/11/2011.

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

A distinção entre censura estatal e marco regulatório

Tem sido comum encontrar em jornais e revistas matérias ditas profundas sobre este e aquele assunto. Os profissionais da imprensa falam com familiaridade de tudo, estejam ou não entendendo do que estão falando, escrevendo, reverberando, repercutindo. Querem – e com toda a razão – o direito de deitar falação sobre qualquer assunto que esteja piscando em suas telas mentais. O trabalho de explicador ainda é propriedade – não exclusiva, é claro – dos que trabalham com a informação. Daí a necessidade de destrinchar termos acadêmicos, siglas pouco mencionadas, conceitos nebulosos e quase sempre expostos, mas não compreensíveis ao cidadão ou cidadã comum.

Um bom exemplo é explicitar o que seria há menos de três anos o Roadrunner e o significado de um petaflop. Pois bem, em 9 de junho de 2008, a IBM veiculou um press release divulgando um supercomputador ultrarrápido. Como seu nome sugere, o Roadrunner (“corredor de estradas”) é realmente um sistema veloz, processando um petaflop por segundo. O que é um petaflop? Boa pergunta. É um quatrilhão de cálculos por segundo. A IBM percebeu que o número não faria sentido para a grande maioria dos leitores e, então, acrescentou a seguinte descrição:

“Qual é a rapidez de um petaflop? Muitos notebooks. Equivale, aproximadamente, ao poder de cálculo combinado de 100 mil dos notebooks mais rápidos da atualidade. Seria preciso uma pilha de notebooks com 2,4 quilômetros de altura para se igualar ao desempenho do Roadrunner.

“Seria necessário que cada habitante da Terra – cerca de 7 bilhões de pessoas – trabalhasse com uma calculadora, à taxa de um segundo por cálculo, por mais de 46 anos, para fazer o que o Roadrunner consegue processar em um único dia. Na última década, se fosse possível que os carros reduzissem seu consumo de gasolina na mesma proporção que os supercomputadores melhoraram seu custo e sua eficiência, eles hoje estariam percorrendo 85 mil quilômetros com um litro de combustível.”

A opção já é uma escolha

Existem coisas que podem ser explicadas através de raciocínios simples. E não há complexidade que resista a uma boa explicação. E existem inúmeras figuras de linguagem e metáforas que podem fazer um oceano ser contido em simples xícara de chá. Mas existe um assunto que nunca é bem explicado pela mídia, em especial a grande mídia: o que significa mesmo esse tal de Marco Regulatório da Mídia (MRM)?

A julgar pelo que é veiculado sobre o assunto nos grandes jornais – O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo – e através das grandes emissoras de televisão, com a TV Globo à frente, o nome do MRM não é outro que censura em estado bruto, intervenção do Estado na vida da sociedade, uma violência contra um dos mais fundamentais direitos da pessoa humana – o direito à livre expressão. Mas será que é isso mesmo?

A adoção de MRM não seria uma chamada aos carretéis do longo novelo de linha que mistura interesses absolutamente privados dentro de uma fachada francamente favorável ou em benefício da sociedade? Não teria chegado o momento de entender que somos livres a partir do momento em que estamos aptos a aceitar as consequências de nossa liberdade? Será que ser livre não exige que sejamos conscientes de nossas atitudes e escolhas, pois o ato de escolher infere uma consequência e a opção de não escolher – por si só – já é uma escolha? Será que estou me aproximando mais de um petaflop livre, leve e solto, e não de um petaflop devidamente apresentado, contextualizado?

As declarações de Christine Lagarde

Por que é tão difícil entender que existe uma diferença brutal entre censura estatal e a adoção de um marco regulatório da mídia? Porque há muita má vontade de quem se sente no dever e no direito de apontar os erros, pecados, crimes, contravenções, ilicitudes e ilegalidades cometidos por terceiros, principalmente se este for governo ou estiver legitimamente representando algum dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E, também, porque não existe qualquer grama de interesse em mostrar, de maneira clara e transparente, que os veículos de comunicação não existem para manipular a opinião pública, nem para instrumentalizar desejos e benefícios privados. É bem próprio da natureza humana desejar tutelar os demais e resistir a qualquer forma de tutela para si mesmo.

Se os meios de comunicação tratassem seus pares, isto é, os meios de comunicação concorrentes, com o mesmo apetite jornalístico com que trata denúncia de corrupção em uma área governamental, teríamos um debate sobre assunto bastante substancial e a sociedade teria a ganhar com isso. Mas não é assim que as coisas acontecem. O proprietário da revista “A” fecha negócio milionário com o governo do estado “B” e, além das assinaturas vendidas, entrega ao governante uma linha editorial auxiliar em que dará projeção e foco a tudo o que lhe possa melhorar a imagem junto à população que o elegeu, ao mesmo tempo em que varrerá para debaixo do tapete todos aqueles sintomas de corrupção que ele, o meio de comunicação, costuma denunciar com grande estardalhaço se ocorrer nas cercanias do governo do estado “C”.

Reflitamos por alguns minutos sobre o comportamento de nossa grande imprensa na quinta-feira (1/12/2011). Nesse dia, os jornais deram imenso destaque a mais uma denúncia em desabono à permanência de Carlos Lupi à frente do Ministério do Trabalho e Emprego. O assunto que não baixará a poeira enquanto a demissão de Carlos Lupi não for encontrada no Diário Oficial da União, foi manchete na capa do principal jornal do país e continuou a ter destaque na escalada de notícias de nosso telejornal de maior audiência.

É óbvio que o assunto só mereceu este tratamento por clara opção editorial e não, em absoluto, por conter suma importância jornalística. É que no mesmo dia esteve visitando o Brasil a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde. A executiva-mor do sempre combatido FMI se encontrou, em Brasília, com a presidenta Dilma Rousseff e saiu do gabinete presidencial com frases como “o Brasil está mais protegido que outras nações contra a crise econômica”, “a economia brasileira está bastante sólida, o sistema bancário bem capitalizado”, além de outros rasgados elogios à gestão da economia brasileira.

Vindo de quem vem, no momento em que a crise econômica continua atingindo em cheio nada menos que a nata dos países mais desenvolvidos do mundo, incluindo as principais nações europeias e os Estados Unidos, chega a ser inimaginável pensar em relegar tais frases (e em tal contexto) a um segundo plano em qualquer escala disso que chamamos valor-notícia.

Acelerar o debate

Mas isso aconteceu. E continuará acontecendo. E pelo andar da carruagem não tardará o dia em que leremos nos jornais a demissão anunciada, um a um, e com várias semanas de antecedência, de todos os integrantes do primeiro escalão do governo federal. Serão demitidos por vários motivos. E dentre estes devido à baixa resistência da autoridade-alvo ao bombardeio midiático pesado, aquele em que balas de verdade se misturam a torpedos de festim e em que denúncias bombásticas costumam se mostrar completamente infundadas e mesmo assim ainda se mesclam a denúncias que merecem, no mínimo, passar por investigação séria a ser conduzida pelos órgãos competentes.

O curioso é que os meios de comunicação não receberam um mísero voto das urnas, aquele lugar onde a população costuma se expressar na escolha de seus legítimos representantes, mas entende ser seu direito aceitar ou repudiar este ou aquele nomeado por quem de direito – no caso, a presidenta da República – para exercer função elevada na condução dos destinos da nação.

Enquanto alinhavo esses pensamentos, me vêm à mente algumas declarações de Judith Brito, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha, no diário carioca O Globo (18/3/2010):

“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo.”

Feitas essas considerações, expresso estes pensamentos imperfeitos e penso que temos mais é que acelerar o debate sobre a necessidade de um marco regulatório das comunicações no Brasil.

Motivos não faltam.

Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo.

A Classificação Indicativa e o retrocesso brasileiro

O Brasil está diante de um retrocesso histórico. A qualquer momento pode ser votada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a queda de parte de uma das maiores conquistas no que tange à regulação da comunicação no Brasil: a Classificação Indicativa. Na tarde da última quarta-feira (30/11), o STF iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) que pede o fim da obrigatoriedade de horários, em conformidade com as faixas etárias, para a classificação indicativa de programas de rádio e TV. Apesar de a ação questionar especificamente a vinculação da programação aos horários adequados às faixas etárias, como prevê, inclusive, o Art. 220 da Constituição Federal, esta medida coloca em risco a eficácia de todo o processo da Classificação Indicativa para televisão e rádio.

A ação, movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já teve o voto favorável de quatro ministros e não houve continuidade da votação ainda na mesma seção porque o Ministro Joaquim Barbosa pediu vistas ao processo. A ADIN é claramente movida pelos interesses das emissoras de rádio e televisão, que desde a implementação das Portarias que regulamentam a Classificação Indicativa tentam derrubá-la. Vale a pena lembrar da tentativa de mudança do fuso horário do Acre em benefício dessas redes há cerca de dois anos e as propagandas criticando o projeto.

O processo que deu origem ao Manual da Classificação Indicativa e às Portarias (1220/2006 e 1000/2007) que regulamentam a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como o Código Civil, além de outras leis correlatas, foi um processo democrático que contou com a participação de diferentes atores da sociedade. Como resultado deste processo, o Brasil tornou-se referência na regulação de uma classificação etária para conteúdo audiovisual e jogos em todo o mundo.

Explicando rapidamente o processo, visto que até os votos dos Ministros demonstram uma clara incompreensão ou desconhecimento das Portarias, a Classificação Indicativa é uma norma constitucional processual que resulta do equilíbrio entre o direito de liberdade de expressão e o dever de proteção absoluta de crianças e adolescentes. Em vários processos legais que envolvem direitos e deveres, haverá colisões entre eles e a  busca de uma solução para este embate parte da compreensão dos direitos e das liberdades individuais e coletivas, bem como da observância dos deveres para que se possa viver em sociedade. A Classificação Indicativa é o resultado possível de um processo democrático que visa a resolver conflitos.

Neste processo, especificamente, estão envolvidos o Estado, a sociedade (e aqui também as empresas que produzem conteúdos) e as famílias. Se há uma compreensão mundial, inclusive com acordos e tratados assinados pelo Brasil e pela maioria dos países democráticos, de que as crianças e adolescentes precisam de proteção, o Estado deve garantir as condições da sociedade e da família cuidarem desses seres em clara situação de risco e vulnerabilidade. Indubitavelmente, uma das situações em que os pequenos se encontram em vulnerabilidade é no contato com obras culturais e audiovisuais. Frente à crescente importância que estes meios têm na vida e na formação das crianças e dos adolescentes, não se pode expor sem cuidado determinados temas abordados nestas obras.

A decisão é da família

Dentre estes temas e conteúdos, há consenso sobre três questões relativas à proteção das crianças: a exposição às drogas, à violência a ao sexo. São apenas a partir destes três pontos – seus atenuantes e agravantes – que se posiciona a Classificação Indicativa. É com relação ao percentual de sexo, drogas e violência que uma obra é classificada etariamente. Não há em qualquer momento a sugestão de que o autor altere a sua criação, mas apenas a adequação a uma determinada classificação etária.  

E para que serve essa classificação? Ao contrário do que se tenta passar, o Estado não interfere, não dita e não resolve nada do que vai ser visto pelo seu filho ou filha. Esta continua sendo uma escolha da família e somente dela. A Portaria da Classificação Indicativa criou, como resultado de todo processo (do qual participaram advogados, psicólogos, produtores audiovisuais, professores de comunicação etc), o Manual da Classificação Indicativa. O Manual diz respeito a todos os produtos, classificando as obras como “Especialmente Recomendado”, “Livre”, “10, 12, 14,16 e 18 anos”.

Quem faz essa Classificação Indicativa? Em primeira instância sempre o produtor! No caso do cinema e dos jogos eletrônicos, estes produtos são levados ao Ministério da Justiça, que averigua a adequação da obra aos critérios brasileiros. Na grande maioria dos casos, a classificação é adequada e apenas em um percentual muito pequeno existe a solicitação de readequação. Cabe lembrar que os pais podem optar por autorizar seus filhos para que eles vejam filmes com classificação diferente da indicada para sua idade – com exceção apenas dos filmes de 18 anos – ou podem comprar jogos de luta, morte, sexo e drogas para os seus filhotes de 8 anos. A decisão é dos pais! O Estado exige apenas que o produtor classifique e averigua tal classificação, caso isso seja do interesse ou curiosidade dos pais. O produtor, por sua vez, faz seu papel de classificar e submeter à análise do Ministério da Justiça. E à família cabe escolher o conteúdo a que seus filhos vão ter acesso.

Adequação do horário de exibição

No caso da televisão, o produto não passa antecipadamente pelo Ministério da Justiça. Havendo denúncia de inadequação, que pode ser feita pela própria sociedade ou pelos profissionais do Ministério da Justiça que monitoram a programação, o programa é notificado e é solicitada a readequação da classificação sugerida. O que há de diferente para as empresas de rádio e televisão é que a adequação da faixa etária está atrelada aos horários em que as crianças e adolescentes estão expostos à televisão. No caso, os pais que trabalham fora de casa o dia inteiro e que não podem exercer diuturnamente a sua fiscalização, não correm o risco de chegar em casa e saber que seus filhos assistiram na “Sessão da Tarde” um filme com conteúdo de violência, drogas ou sexo inadequado para a idade deles.

O que as redes de televisão querem é a “liberdade” de passar a qualquer hora qualquer classificação e você, que não está em casa o dia todo, ou que se ausentou para ir resolver qualquer problema, ou que estava lavando as roupas, trocando as fraldas ou fazendo o almoço, tenha que lidar com a chance de que seus filhos vejam “Pânico na TV” ou “Cine Prive” à tarde.

O que se está discutindo não é se o Estado vai ou não resolver o que seus filhos vão assistir – já está claro que o papel do Estado não é esse. Ele apenas auxilia para que você saiba o conteúdo e possa escolher, e o que se coloca em questão é justamente a não possibilidade de  que pais, mães ou responsáveis estejam presentes o tempo todo com seus filhos. E a depender do julgamento do STF, é o mercado quem vai decidir o conteúdo ao qual os seus filhos terão acesso. E, como se sabe, se o programa “Pânico na TV” tem elevados índices de audiência passando às 23h, vai ter ainda mais passando às 17h – não restam muitas dúvidas de qual será a opção da emissora. Mas você ainda não chegou do trabalho, ou é a hora de pegar o outro filho na escola… problema seu! É isso que está em jogo. São as leis do mercado se sobrepondo à realidade das famílias brasileiras às leis estabelecidas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Há também que se esclarecer que ao contrário do que declarou em seu voto o Ministro Toffoli, a classificação indicativa é presente sim em muitos países. Os Estados Unidos, a Argentina, o Chile, a Áustria e a França são exemplos de países que têm classificação indicativa (www.midiativa.tv/direitos/classindimundo.doc). Não estamos inventando a roda e ainda estamos muito distantes de países democráticos como a Noruega, o Canadá e tantos outros em que a publicidade para crianças já não existe ou é dirigida apenas aos pais. Isso sim é proteger as crianças, que são o presente e o futuro de um país.
 
Decisões problemáticas

Vale ainda lembrar que esta não é a primeira decisão do STF que privilegia os interesses dos empresários da comunicação, sem que qualquer ação até agora movida contra eles tenha logrado êxito. Há pouco tempo, o Tribunal votou a revogação da Lei de Imprensa, por completo, apesar de a mesma já ter seus piores artigos vetados. Ocorre que até hoje não foi votada no Congresso Nacional a nova Lei de Imprensa e os meios de comunicação estão funcionando sem nenhuma regulação. O mesmo foi feito com a queda da obrigatoriedade do Diploma para o exercício da profissão de jornalista. Sob o argumento de que este seria um empecilho à liberdade de expressão, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto de Relator, tão preocupado com a democratização da comunicação, esqueceu-se também de questionar concentração e os grandes conglomerados de comunicação, estes sim o principal empecilho à liberdade de expressão. A atualização da regulação da profissão, que independe da exigência do diploma, até o momento não aconteceu. Além destas, o Supremo também considerou improcedente a ação contra a consignação de novos canais para os radiodifusores prevista no decreto que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital.

No entanto, outras ações movidas para que o Estado faça cumprir os artigos do capítulo da Comunicação Social presentes Constituição Federal, como a que veta o monopólio e o oligopólio das comunicações, ainda não foram apreciadas pela mesma Corte.

Marina Martins é jornalista, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília. Professora Substituta da UnB e Membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

Volta o debate sobre o diploma de jornalista

Os principais jornais do país reagiram de maneiras diversas à aprovação em primeiro turno, pelo Senado Federal, da Proposta de Emenda Constitucional que recompõe a obrigatoriedade do diploma específico de nível superior para o exercício da profissão de jornalista.

A Folha de S.Paulo, que iniciou a campanha pelo fim da exigência do diploma, por motivos econômicos, nos anos 90, deu maior destaque e espaço ao assunto. O Estado de S.Paulo dedidou ao assunto apenas uma nota de uma coluna e o Globo deu um texto de proporções médias, em três colunas, abaixo da dobra do jornal.

Mas os três jornais manifestam igualmente sua contrariedade com a decisão soberana do Senado, levantando uma suposta divergência entre a deliberação do Legislativo e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que em junho de 2009 considerou inconstitucional a exigência do diploma.

Acontece que uma das motivações do Senado ao rediscutir a matéria é justamente confrontar o Judiciário, reafirmando o papel do Congresso como poder legislativo. Ao optar por uma emenda constitucional, o legislador estabelece o confronto, reafirmando seu papel e desafiando o Supremo Tribunal Federal a avançar em suas atribuições.

O confronto ficou claro na manifestação do senador Demóstenes Torres, líder do partido Democratas, um dos que protestaram contra a decisão do plenário. Torres observou que o STF considera que emendas constitucionais também podem ser declaradas inconstitucionais e que essa certamente será tida como tal.

Provavelmente, o senador oposicionista estava verbalizando uma posição oficial das entidades representativas das empresas de comunicação, que deverão acionar novamente a Suprema Corte, se o projeto for aprovado em segundo turno no Senado e passar também pela Câmara dos Deputados.

Entre os senadores que se manifestaram contra a proposta, os jornais destacam o tucano Aloysio Nunes Ferreira, que repetiu o discutível argumento segundo o qual a exigência do diploma restringe a liberdade de expressão.

Apelando ao Supremo

O texto só foi votado porque o presidente do Senado, José Sarney, passou por cima de um acordo que excluia a matéria das votações desta semana. O líder do PMDB, Renan Calheiros, também protestou contra a decisão de Sarney, mas o discurso mais inflamado partiu do senador e ex-presidente Fernando Collor de Mello. Ele afirmou que as faculdades têm formado “jornalistas analfabetos” e disse que a exigência de diploma é “o embrião daquilo que será o controle social dos meios de comunicação”.

PT, PCdoB, PSB, PSOL, PP, PRB e PR apoiaram a Proposta de Emenda Constitucional e o PSD fechou questão contra, enquanto PSDB, DEM e PTB liberaram suas bancadas para votarem como quisessem. A votação foi de 65 a favor e apenas sete contra.

As entidades que representam empresas de comunicação, evidentemente, protestaram contra a decisão do plenário do Senado, voltando a afirmar que a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício do jornalismo como profissão restringe a liberdade de expressão.

Já as representações dos jornalistas profissionais, como a Federação Nacional dos Jornalistas, comemorou a votação, ainda que parcial, afirmando que demonstra o desejo do Senado de “corrigir um erro histórico do STF contra a categoria profissional dos jornalistas”.

A campanha contra a exigência do diploma foi iniciada pela Folha de S.Paulo nos anos 1990, em função dos custos para a elaboração dos guias de entretenimento, como as listas de programações dos cinemas. Uma queda-de-braço entre o diretor do jornal, Otavio Frias Filho, e o Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo passou rapidamente de reles picuinha a guerra aberta e o diploma se transformou em ponto de honra para a Folha, que levou o tema à Associação Nacional de Jornais e daí para o Supremo Tribunal Federal.

O mesmo STF que decidiu em 2009 contra o diploma dos jornalistas está na iminência de tomar outra decisão polêmica, ao considerar inconstitucional a legislação que prevê punição a emissoras de rádio e TV que exibem programas inapropriados para crianças e adolescentes em horários diferentes dos autorizados pelo Ministério da Justiça.

Para quatro dos dez ministros, os pais é que devem controlar o que seus filhos vêem na TV.

Ou, quem sabe, na impossibilidade de os pais deixarem seu trabalho para conferir o que seus filhos estão assistindo, a formação de nossos jovens e adolescentes talvez deva ser entregue aos programadores dos filmes da sessão da tarde.