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Omissão do Congresso, desprezo dos concessionários

Em debate sobre a regulação da mídia realizado na Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), em Porto Alegre, em 3 de novembro último, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) advertiu:

“Não esperem que os partidos políticos façam algo para enfrentar o atual esquema de poder da mídia. Há muita omissão no Congresso Nacional sobre esse tema. Sou uma voz isolada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Tento apenas incomodar um pouco” (ver aqui).

Se houvesse alguma dúvida sobre a veracidade dessas afirmações – e do quanto elas alcançam para além do Congresso Nacional – a audiência pública da CCTCI realizada na manhã de quinta feira (15/12), constitui uma prova irrefutável.

Convocada por Requerimento da própria deputada Erundina para debater "a prática de subconcessão, arrendamento ou alienação a terceiros promovida por concessionários de serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens sem a autorização competente", a audiência pública foi simplesmente ignorada por deputados econcessionários de radiodifusão.

Dos oitenta deputados titulares e suplentes da CCTCI (ver abaixo relação completa dos seus integrantes), apenas quatro, incluída a autora do requerimento, compareceram, ou seja, 5% do total – Luiza Erundina (PSB-SP); Bruno Araújo (PSDB-PE); Paulo Foletto (PSB-ES) e Sandro Alexis (PPS-PR); o representante do Ministério Público não compareceu; e dos sete representantes dos concessionários convidados –Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), Grupo Silvio Santos, Rede Record, Organizações Globo, Grupo Bandeirantes e MIX e Mega TVs – nem sequer um único compareceu.

Poderia haver atestado maior da veracidade das afirmações da deputada Luiza Erundina do que este?

Breve história da audiência

Em sua intervenção, a deputada Erundina esclareceu que, na verdade, aquela era a terceira tentativa de se colocar a prática ilegal de arrendamento do serviço público de radiodifusão em discussão na CCTCI. A primeira tentativa ocorreu em 2009, quando a OAB Nacional encaminhou à CCTCI parecer sobre a matéria, elaborado pelo jurista Fábio Konder Comparato, solicitando ao seu presidente que o distribuísse aos membros (ver abaixo a íntegra do parecer). O então presidente da CCTCI, deputado Eduardo Gomes (PSDB-TO), não distribuiu o parecer nem colocou o assunto em discussão.

Em 2011 a deputada Erundina apresentou requerimento solicitando a realização da audiência pública que chegou a ser marcada para novembro, mas acabou adiada sine die exatamente porque não se obteve confirmação de presença dos concessionários. Finalmente, ao apagar das luzes do ano legislativo, a audiência pública foi “realizada” no dia 15 de dezembro.

O que está em jogo?

Dados de arrendamento de concessões de três redes de televisão, somente no estado de São Paulo, revelam:

(1)TV Gazeta: arrendamento de 37 horas e 5 minutos por semana, assim distribuídos:
2a a 6ª feiras
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
1h – 2h – Polishop

Sábado
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
23h – 2h – Polishop

Domingo
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
8h – 8h30 – Encontro com Cristo
14h – 20h – Polishop
0h – 2h – Polishop

(2)Rede TV!: arrendamento de 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado), assim distribuídos:
Domingo
6h – 8h – Programa Ultrafarma
8h – 10h – Igreja Mundial do Poder de Deus
10h – 11h – Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma
16h45 – 17h – Programa Parceria5
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

2a e 3ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
1h55 – 3h – Programa Nestlé
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

4a feira
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
5a e 6ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

Sábado
7h15 – 7h45 – Igreja Mundial do Poder de Deus
7h45 – 8h – Tempo de Avivamento
8h – 8h15 – Apeoesp – São Paulo
8h15 – 8h45 – Igreja Presbiteriana Verdade e Vida
8h45 – 10h30 – Vitória em Cristo
10h30 – 11h – Igreja Pentecostal
11h – 11h15 – Vitória em Cristo 2
12h – 12h30 – Assembléia de Deus do Brasileiro
12h30 – 13h30 – Programa Ultrafama
2h – 2h30 – Programa Igreja Bola de Neve
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

(3)Rede Bandeirantes: arrendamento de 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado), assim distribuídos:
2a a 6a feira
5h45 – 6h45 (Religioso I)
20h55 – 21h20 (Show da Fé)
2h35 (Religioso II)

Sábado e domingo
5h45 – 7h (Religioso III)
4h (Religioso IV)

No parecer que elaborou para a OAB em 2009, o professor Comparato concluiu pela completa ilegalidade da pratica afirmando que “o direito de prestar serviço público em virtude de concessão administrativa não é um bem patrimonial suscetível de negociação pelo concessionário no mercado. Não se trata de um bem in commercio. O concessionário de serviço público não pode, de forma alguma, arrendar ou alienar a terceiro sua posição de delegatário do Poder Público. O que o direito brasileiro admite (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) é a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente; sendo certo que a transferência da concessão sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27)”.

O que fazer?

A omissão de parlamentares em relação às políticas públicas de comunicações não constitui novidade. Está no Supremo Tribunal Federal, desde novembro de 2010, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) que pede à Corte que declare “a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em legislar sobre as matérias constantes dos artigos 5°, inciso V; 220, § 3º, II; 220, § 5°; 211; 222, § 3º, todos da Constituição Federal, dando ciência dessa decisão àquele órgão do Poder Legislativo, a fim de que seja providenciada, em regime de urgência, na forma do disposto nos arts. 152 e seguintes da Câmara dos Deputados e nos arts. 336 e seguintes do Senado Federal, a devida legislação sobre o assunto” (ver aqui).

A recusa sistemática dos empresários de mídia em discutir democraticamente questões ligadas ao setor também não constitui qualquer surpresa. Desprezam e se ausentam da CCTCI exatamente como boicotaram a 1ª Conferência Nacional de Comunicação realizada em dezembro de 2009.

Diante disso, ao final da audiência pública do dia 15/12, a deputada Luiza Erundina anunciou que (1) encaminharia à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados proposta de fiscalização e controle para que o Tribunal de Contas da União (TCU) realize auditoria nos contratos de permissões e concessões das empresas de radiodifusão; e (2) ao Ministério Público, representação para que proceda a uma investigação da prática ilegal de subconcessão, arrendamento ou alienação a terceiros, promovida por concessionários de radiodifusão.

Perspectivas

Infelizmente a advertência da deputada Luiza Erundina no debate da Ajuris está correta. Não se consegue debater ilegalidades como esta na CCTCI da Câmara dos Deputados, sua comissão específica.

Além disso, mais um ano termina sem que se conheça o prometido projeto do governo Dilma Rousseff de marco regulatório para as comunicações. Ele necessariamente terá que contemplar questões como a tratada aqui. E, por óbvio, terá que tramitar na CCTCI do Congresso Nacional.

O(a) eventual leitor(a) concordará que as perspectivas confirmam um longo e difícil caminho a ser percorrido no rumo da regulação da mídia para a democratização das comunicações.

A ver.

Venício A. Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011

Por que tanto medo de regular a radiodifusão?

Existe um tabu na imprensa brasileira: ela não gosta de falar sobre a necessidade de um novo marco legal para as emissoras de rádio e TV. Os grandes jornais só entram no assunto muito raramente. Os telejornais, então, quase nunca. Não obstante, estamos falando de um déficit que engessa a nossa democracia. É quase inacreditável que até hoje inexistam regras jurídicas modernas para disciplinar o funcionamento da radiodifusão. E, quanto a isso, a principal manifestação da nossa imprensa tem sido o mutismo.

Há exceções? É evidente que sim. Aqui e ali pipocam referências ocasionais ao tema. Este jornal, por exemplo, às vezes toca na ferida. Agora mesmo, há pouco mais de uma semana, no dia 4 de dezembro, um editorial do Estado reafirmou: "A necessidade de modernização do marco regulatório das comunicações no País, defasado em relação aos avanços tecnológicos das últimas décadas, é absolutamente pacífica". Exceções à parte, porém, o que predomina é mesmo o silêncio.

Não é difícil entrever as razões desse silêncio. Há um receio ancestral, irrefletido, no interior da indústria e do negócio da comunicação. Aos olhos e aos ouvidos desse receio, qualquer proposta de revisão do modelo vigente – que já é bastante precário, todos reconhecem – ameaçaria o status quo e até mesmo a liberdade de imprensa. Além de inconveniente, portanto, essa pauta poderia erguer um palanque para os que querem simplesmente censurar os noticiários. Daí a conclusão – errada – de que é melhor não mexer com isso. Daí, enfim, o tabu, o triste tabu.

Claro que todos nós podemos conviver com tabus, a própria ideia de civilização se vincula à ideia de tabu. No caso presente, contudo, nosso bloqueio não tem nada de civilizado. É bem o oposto: estamos falando aqui de um tabu anticivilização.

Em primeiro lugar, porque é antijornalístico. A imprensa é tanto melhor quanto mais consegue ser independente – inclusive dos acionistas, sobretudo quando eles são medrosos. As boas redações, aliás, educam seus patrões. No entanto, se não souberem dedicar-se ao dever da liberdade, elas se apequenam e, no limite, traem seus públicos e prejudicam os próprios acionistas. Se há um déficit legal no Estado brasileiro, é evidente que isso é notícia. Não por acaso, esse assunto é debatido na imprensa do mundo inteiro. Com o advento das novas tecnologias da revolução digital, os parâmetros dos marcos regulatórios da mídia estão na ordem do dia. Menos no Brasil.

Mais do que antijornalístico, esse é um tabu antidemocrático, regressivo e autodestrutivo. Se o Brasil quer realmente ganhar projeção internacional, precisa estar em linha com o que há de mais avançado na democracia – e, nessa matéria, nossa defasagem é pré-histórica. Não se pode mais esperar que as concessões das emissoras de rádio e televisão ainda sejam ordenadas por um código de 1962, cujas lacunas seriam supostamente sanadas por um cipoal de normas infralegais, formando um Frankenstein incompreensível.

Listemos apenas três imperativos que reclamam a modernização do marco legal:

O Brasil ainda convive com políticos – especialmente parlamentares – que mandam e desmandam em redes ou emissoras, como donos de fato, contrariando clamorosamente o espírito (e o texto) do artigo 54 da Constituição federal, que veda que senadores e deputados mantenham vínculos com empresas concessionárias de serviço público. Até quando?

Vivemos hoje num limbo jurídico. A nossa Constituição impede o monopólio e o oligopólio (artigo 220), mas isso é letra morta, pois não dispomos de lei que estabeleça o que é monopólio e o que é oligopólio. Um novo marco legal deve definir claramente, em números precisos, qual o limite que separa a prática do monopólio, de um lado, e o regime de concorrência saudável, de outro.

O Brasil não pode mais fazer vista grossa à promiscuidade entre igrejas e partidos políticos no interior das emissoras. Em alguns canais que estão aí, no ar, não dá mais para saber onde termina o templo e onde começa o estúdio, o que tem gerado distorções concorrenciais e partidárias no espaço público. Até onde iremos com isso? Nenhuma democracia funciona bem quando essas três esferas se embaralham no nível em que elas se vêm embaralhando entre nós. Igrejas gozam de benefícios fiscais que não podem ser estendidos a emissoras comerciais – isso se pretendermos de fato viver sob um Estado laico, num regime em que a competição comercial seja justa e a disputa política, equilibrada. Para que o direito à informação, a diversidade de opiniões, a liberdade de expressão e a livre concorrência sejam respeitadas, igrejas, partidos políticos e emissoras não se podem misturar.

Citamos aqui três imperativos. Há outros, todos eles enfáticos, mas não precisamos enumerá-los um a um. Os três já bastam para demonstrar que o silêncio em torno do assunto só favorece o atraso, já bastam para esclarecer que esse debate, se bem feito, não diz respeito à censura dos conteúdos, mas apenas à ordenação do mercado. Ao contrário, um bom marco regulatório protege a liberdade.

Repetindo: a reforma da legislação nesse setor é uma necessidade da democracia e do mercado civilizado. Se, a despeito dessa obviedade clamorosa, prevalecer a razão (irracional) do tabu, os caudilhos autoritários – de direita ou de esquerda, dá na mesma – vão monopolizar o tema. Com isso, uma agenda que é do mais alto interesse nacional será sequestrada pelos que não querem modernidade nenhuma.

Por tudo isso, essa pauta precisa de mais visibilidade. O progresso do Brasil depende da construção de um novo marco regulatório que nos atualize em relação às outras democracias e nos destrave o caminho para o futuro. Não dizer uma palavra a respeito é buscar refúgio num atraso insepulto, cujo prazo de validade já venceu faz tempo.

Eugênio Bucci é jornalista e professor da Eca-USP e da ESPM

O capital da convergência

Num seminário do Fórum Nacional para a Democratização das Comunicações (FNDC) que se realizou no Rio de Janeiro em maio passado, lá pelas tantas, depois de estar bem informada, por explanações e discussões, sobre “o que é” a chamada “convergência tecnológica” ou “convergência de mídia”, a arguta e lutadora deputada Luiza Erundina (PSB-SP) indagou: “E o capital? Onde entra o capital nisso tudo?”. Pois é…

A “convergência” costuma nos ser apresentada como uma espécie de panaceia tecnológica que surge entre nós assim como um fenômeno tão natural quanto o morro do Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, e, não raro, apesar do significado inequívoco da expressão, parece querer definir um “novo setor” das comunicações: telecomunicações, radiodifusão… e “convergência”. No imaginário e, ao cabo, nas práticas políticas, “convergência” então acaba confundindo-se com “banda larga” ou “internet”.

Sabemos que os discursos não são neutros. Sempre expressam interesses de grupos de poder ou contrapoder, estratégias interiores daquilo que Pierre Bourdieu designaria “campo simbólico”: algum segmento social com suas regras endógenas de disputa ou manutenção de poder, seus atores na posição e na oposição, logo seus discursos mutuamente legitimadores.

Produção fracionada

O discurso que se constrói sobre uma “convergência” paradoxalmente divergente, não escaparia a essas condições humanas, digamos assim. Omitir o “capital”, consciente ou inconscientemente, visa despolitizar esse debate até para, possivelmente, focar a “política” ali onde os atores hegemônicos situam o seu campo preferencial de disputa, seja por força de suas vivências pessoais, profissionais e políticas, seja, daí, pelos seus hábitos cristalizados de pensar.

Antes de ser explicada tecnologicamente, a convergência (agora sem aspas) precisa ser entendida como um movimento de mudança da lógica de acumulação do capital, seja em seu conjunto, seja no campo específico das comunicações sociais. Assim como o velho modelo radiodifusão/telecomunicações/imprensa é um modelo histórico, construído nas condições econômicas, políticas e culturais das duas primeiras décadas do século 20, logo sujeito a superação como qualquer modelo histórico; a convergência é um novo modelo que se veio construindo a partir dos anos 1980, na esteira das grandes transformações kondratieffianas do capital ao longo da mesma década.

Ela resulta de investimentos do Estado (Estados Unidos, Japão, Eurolândia) e de grandes corporações capitalistas (Sony, Toshiba, Nokia, Phillips, Apple, Microsoft, Intel, IBM etc.), num processo que envolveu muitas disputas e desavenças, ao lado de acordos e alianças, ao longo dos últimos 20 anos. Em geral, esse processo aconteceu nos países capitalistas centrais e nós, brasileiros, à esquerda, no centro ou à direita, ignoramo-lo olímpica e provincianamente.

Essencialmente, nesta nova etapa, o capital iria necessitar de excelentes infraestruturas de comunicação capazes de reduzir a nanossegundos as “transações” financeiras, comerciais, mercadológicas entre qualquer ponto do globo e outro, não importando a distância. Daí as reformas “neoliberais” que tornaram corporações como AT&T, Telefónica, British Telecom, NTT, algumas outras, grandes jogadores globais e detentoras exclusivas das infraestruturas por onde trafegam hoje, no mundo, desde transferências de fundos na casa dos bilhões de dólares, até inocentes “torpedos” entre casais de namorados.

Ao mesmo tempo, para sustentar o processo permanente de produção e expansão do consumo, num mercado que não mais se expande horizontalmente, logo precisa estar sendo constantemente “renovado” (os mesmos consumidores jogando fora coisas “fora de moda” compradas há 6 meses ou 1 ano, para comprar novas coisas), os meios de comunicação precisariam ser completamente reestruturados, visando atender a uma nova realidade sociocultural na qual o consumo “de massa” ia dando lugar ao consumo “segmentado”.

Em síntese, o padrão “fordista”, um padrão tanto econômico quanto cultural, era substituído por um novo padrão, “flexível”, na definição de David Harvey, onde, a um processo de produção fracionado, segmentado, espacialmente descentralizado, conectado pelas redes mas não pelo cara a cara, corresponderia também uma cultura (de consumo) individualizada, atomizada, “customizada”, microidentitária.

Interesses entrecruzados

Desde a década 1980, nos países capitalistas centrais, esse novo padrão de consumo cultural começou a ser atendido por um novo modelo segmentado de televisão: a televisão por assinatura. E os “consumidores” em geral, aceitaram muito bem o novo formato já que correspondia melhor às suas novas “expectativas”. O fim dos monopólios públicos de telecomunicações e de radiodifusão nos países centrais permitiu avançar os novos serviços e, daí, a edificação de novos poderosos conglomerados mediáticos transnacionais, embora sediados em alguns pouquíssimos países, principalmente nos Estados Unidos.

Em pouco mais de dez anos (década 1990), a antiga radiodifusão aberta (representada nos EUA, pelas setuagenárias redes NBC, CBS e ABC; na Eurolândia, pela BBC e suas similares ditas “públicas”; no Japão, pela estatal NHK), perderam o monopólio das audiências que até então detinham, em favor dos novos canais CNN, Fox, Cartoon Network, ESPN etc., etc. Em muitos países, Estados Unidos entre eles, a audiência da TV aberta já não chega a 10% dos lares; em alguns, estatisticamente, caiu a zero. Em todo o mundo, hoje, metade dos lares que têm televisão já estão conectados ao serviço pago, por cabo ou satélite. As famílias preferiram trocar os seis ou sete canais de TV generalista aberta e “livre”, por centenas de canais segmentados ao gosto do freguês, mesmo que pagos.

Ao mesmo tempo, impulsionada pela America Online (AOL), pela Microsoft (Internet Explorer), pela Intel (chips para microcomputadores), tendo por trás os interesses do Estado estadunidense (ICANN), expandiu-se a internet mundo a fora, impulsionando novas práticas socioculturais de produção ou acesso a conteúdos audiovisuais, paralelamente ao desenvolvimento de novos “modelos de negócios” adaptados a essas práticas (Google, iPod-iTunes da Apple, Face-book etc.). Sobretudo as novas gerações são cada vez mais estimuladas, ou midiaticamente educadas, a se constituírem em audiências completamente adaptadas e inseridas nos “jardins murados” que se vão consolidando no controle da internet.

Este amplo universo de produção, programação e distribuição de conteúdo audiovisual é controlado, globalmente, por 10 ou 15 grandes corporações mediáticas, a maioria e as maiores delas centralizadas e sediadas nos Estados Unidos. Na impossibilidade de, num pequeno artigo, apresentarmos todas elas, descrevamos apenas uma: a Time-Warner, cuja sede fica em Nova York.

A corporação controla as seguintes “divisões” (ou “marcas”) produtoras de conteúdos (filmes, séries, programas de auditório, desenhos infantis, jornalismo etc.): HBO, CNN, Time Inc (revistas e jornais), Warner Brothers, Cartoon Network etc. Controla as seguintes “divisões” programadoras de conteúdos (ou “canais de televisão”, “salas de cinema”, “portais de internet”): HBO, TNT, TCM, Cartoon Network, AOL, Cinemax etc. Nos Estados Unidos, detém ainda uma operadora de cabo (TimeWarner Cable) e outros 47 canais “abertos” de televisão.

Como é da “natureza” do capitalismo avançado, a Time-Warner não tem propriamente um “dono”. Seu capital está distribuído por um amplo conjunto de acionistas, centralizados em fundos de pensão, clubes de investimento, bancos de investimento etc. Os principais desses acionistas são: Dodge&Cox (7,14% do capital), AXA (5,79%), Capital Group (4,6%), Fidelity (4,13%), Goldman Sachs (3,25%), Liberty Media (3%), Vanguard (2,95%) etc. Estes e outros repartem entre si os lucros de um faturamento mundial superior a USD 43 bilhões, em 2008.

O curioso é que podemos encontrar esses mesmos grupos financeiros participando no ca-pital das corporações que julgaríamos concorrentes da Time-Warner. O Fidelity, por exemplo, detém 5,5% do capital da Disney (segunda maior corporação global, disputando a liderança cabeça-a-cabeça com a Time-Warner); 11,5% do capital Google; 6,4% do capital da Apple; etc. O AXA também detém 2,9% do capital da Disney; 12,2% do capital da CBS; 1,26% do capital da Microsoft e 3,86% do capital da Apple. O Vanguard também participa do capital da Disney (2,9%), 2,5% do capital da Microsoft… desnecessário prosseguir. Os interesses desses conglomerados são intrinsecamente entrecruzados, inclusive, não raro, será possível identificar as mesmas pessoas ocupando cadeiras em diferentes conselhos e boards.

Heranças do passado

Todas essas grandes corporações midiáticas globais já estão presentes no Brasil, há mais de década. Hoje, em nosso país, cerca de 14 milhões de lares (cerca de 20% do total) já aderiram aos canais TNT, Cartoon Network, CNN, Fox, ESPN, Sony, Warner, HBO etc. Este número segue crescendo. A tendência mundial, tendência do capitalismo, evidentemente avança entre nós – e não poderia ser diferente. No entanto, avança sem que esta realidade presente e futura domine a agenda de debate sobre a democratização das comunicações, ainda presa a um passado em acelerada decomposição.

Mais de 70% dos lares brasileiros de “classe A” (e, no Brasil, qualquer família a duras penas de classe média é considerada “classe A”), já aderiram à TV por assinatura. “Classes B” e “C” acompanham, não raro no “gatonet”. Para eles, o destino da TV aberta já está selado. E o que se decida aí, pouco lhes incomodará. Importante será a “liberdade do consumidor” para cada vez mais informar-se pelo noticiário da CNN, assistir ao show da Oprah, ou acompanhar o Dr. House…

Entendendo que democracia e mercado não são, necessariamente, idéias e práticas complementares, fica a pergunta: como introduzir o debate democrático nessa nova configuração do capital? Enquanto a agenda estiver mais preocupada em resolver heranças de um passado que vai sendo rapidamente ultrapassado, e menos em enfrentar os desafios do presente, dificilmente construiremos respostas. E este novo mundo “convergente” (entre aspas) do capital midiático-financeiro com centros de decisão fora do país, poderá seguir avançando desregulamentado entre nós (diante de um outro que se quer sob “controle social”), produzindo seus indeléveis resultados subjetivos sem que a sociedade sequer venha a se dar conta das teias nas quais se enredou.

Chegará um dia em que sentiremos saudades da Globo…

Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, vice-presidente da União Latina de Economia Política da Comunicação – Capítulo Brasil (ULEPICC-Br)

O direito à comunicação na Conferência da Juventude

[Título original: Direito à comunicação é destaque entre as propostas na Conferência}

Entre as 26 propostas, resoluções e moções aprovadas na 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude destacam-se algumas ligadas ao exercício ao direito humano à comunicação.

No eixo 1, Desenvolvimento Integral, por exemplo, a proposta 6 trata da criação e implementação do Plano Nacional de Comunicação e Juventude que contemple a “criação e ampliação de Centros de Comunicação Popular, Telecentros, pontos de acesso público e o fomento da produção de mídias alternativas como: programas de rádio, TV, mídias impressas, rádios escolares e comunitárias, internet etc., com prioridade para os/as jovens como proponentes e produtores, incentivando preferencialmente mídias produzidas a partir da metodologia de educomunicação, garantindo a expansão do acesso e a inclusão digital no campo e na cidade, ampliando o sinal de internet (banda larga) e telefonia, valorizando a cultura regional e garantindo a formação de educadores da rede pública para tratar dessa questão nas escolas e universidades”.

No eixo 3, Direito à Experimentação e Qualidade de Vida, entre as propostas está “integrar a implementação do programa nacional de banda larga, garantindo o acesso à banda larga gratuita e de qualidade com velocidade mínima de 1 Mega para todo o País, priorizando as comunidades menos favorecidas e a zona rural, garantindo também a capacitação para os que irão utilizar o serviço”.

No documento Para Desenvolver o Brasil, considera-se que as políticas públicas de juventude não estão descoladas do conjunto da sociedade e devem estar conectadas aos desafios atuais que o país enfrenta e que os jovens não pleiteiam somente a resolução de seus problemas. Eles buscam também oportunidades para debater e interferir nas questões mais amplas colocadas na conjuntura e nas definições dos rumos do Brasil.

Por isso, os delegados da Conferência resolvem:

– “democratizar os meios de comunicação, garantindo o amplo acesso à informação e aos meios de comunicação (internet, rádio, TV, jornais e Imprensa Oficial e audiovisual com participação obrigatória das produções independentes, com abertura de editais em apoio à produção artística”.

– Reformar lei de direitos autorais sob a ótica de que o conhecimento é livre: sendo assim, incetivar a utilização de licenças creative commons sob a égide de uma filosofia garantindo o uso, sem fins lucrativos, de produções intelectuais.

– Estabelecer cotas de exibição e programação de 50% para a produção cultural brasileira, sendo 15% produção independente e 20% produção regional em todos os meios de comunicação (TV aberta e paga, rádios e cinemas).

– Criar um novo marco regulatório das comunicações que garanta o controle social sobre as políticas públicas na área, assegurando conselhos de comunicação em todas as esferas e que esses garantam respeito aos direitos humanos com conteúdos não discriminatórios, não machistas e não racistas nas veiculações midiáticas e criação de regras para a concessão de outorgas.

– Garantir o direito à liberdade de  expressão e ao livre acesso à informação e comunicação, previstos na constituição Federal, no uso das mídias, assegurando a pluralidade de idéias e opiniões dos diferentes grupos sociais e cuturais.

– Promover mecanismos institucionais de democratização da distribuição e de aplicação de verbas públicas em publicidade de ações governamentais  em rádios e Tvs comunitárias, bem como a instrumentalização de fundos permanentes de financiamento das atividades de comunicação comunitária  e com finalidade social , bem como a reformulação  da lei 9.61298, garantido a ampliação da pontencia permitida para rádios comunitárias, maior agilidade no processo de concessão descriminalização com anistia e devolução dos equipamentos apreendidos.

– Aperfeiçoar, implementar e garantir a efetivação do controle social em todas as etapas de consolidação do Programa Nacional de Banda Larga (PNBL) – na ótica dos direitos humanos de comunicação e informação – assegurando: a superação das atuais limitações, o acesso gratuito para todas as cidades e áreas rurais, independetemente de densidade demográfica e o aproveitamento das redes de cabo de fibra ótica já instaladas para a transmissão de dados, imagenz e sons, assim como o aproveitamento dos equipamentos de alta velocidade que viabilizarão conexão com redes nacionais de telcomunicação e demais redes no Brasil e no mundo.

No final, a plenária aprovou ainda a moção de repúdio “Contra o fim da classificação indicativa na TV. O Estado deve proteger nossas crianças, adolescentes e jovens!”.

Os avanços de 2011

Mais um fim de ano. Tempo de balanços, de reavaliar metas, de planejar o futuro. Sobretudo, tempo de refletir sobre o que se fez e o que se deixou de fazer no campo das comunicações.

Ao contrário do rotineiro, e para evitar a repetição do já escrito ao longo do ano, arrisco um balanço seletivo de 2011. Sem qualquer ordem de relevância e sem pretender ser exaustivo, registro dez pontos que, numa perspectiva histórica, podem ser considerados como avanço no sentido da garantia democrática de que mais vozes participem e sejam ouvidas no debate público.

Dez avanços

1.Relatório do special rapporteur para a “promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão” do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, tornado público no dia 3 de junho, reconhece o acesso à internet como um direito humano (ver, neste Observatório, “Na pauta da igreja e da ONU ”).

Os últimos dados sobre a internet no Brasil indicam, segundo a agência F/Nazca, que somos 81,3 milhões de internautas (a partir de 12 anos). Para o Ibope/Nielsen, somos 78 milhões (a partir de 16 anos – setembro/2011). De acordo com a Fecomércio-RJ/Ipsos, o percentual de brasileiros conectados aumentou de 27% para 48%, entre 2007 e 2011 (ver aqui ).

Neste contexto, um projeto de lei para definir regras sobre direitos, deveres e princípios para o uso da internet (marco civil) foi enviado pela Presidência da República ao Congresso Nacional em agosto (ver aqui) .

2.O crescimento e fortalecimento dos movimentos pró-criação dos conselhos estaduais de comunicação social (CCS) em vários estados da federação (ver “Onde estamos e para onde vamos ”).

A pioneira Bahia elegeu os representantes da sociedade civil para o CCS-BA – 10 entidades do segmento empresarial e 10 do movimento social – que tomam posse no dia 12 de dezembro, juntamente com os 7 membros indicados pelo governo do estado.

No Rio Grande do Sul, o pleno do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) aprovou, no dia 1º de dezembro, a recomendação ao governador do estado de criação do CCS-RS. Agora será formado um grupo de trabalho composto por membros do CDES e da Casa Civil para elaborar o projeto de lei a ser encaminhado a Assembleia Legislativa.

3.A realização do II Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em Brasília, em junho; e do I Encontro Internacional de Blogueiros, em Foz do Iguaçu, PR, em outubro. Os dois encontros sinalizam a consolidação da organização dos blogueiros progressistas no Brasil e o início de uma articulação internacional.

4.A construção e divulgação da “Plataforma para um novo Marco Regulatório das Comunicações no Brasil”, em outubro. O texto que contem as 20 propostas prioritárias, resulta de um trabalho histórico que convergiu na realização da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e foi inicialmente sistematizado no seminário “Marco Regulatório – Propostas para uma Comunicação Democrática”, realizadopelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e outras entidades nacionais e regionais, no Rio de Janeiro, em maio (ver aqui ).

5. A continuidade das atividades quase heroicas de entidades como a Rede de Educação Cidadã (Recid ) e o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC ) promovendoa comunicação popular e sindical.

A Recid é uma articulação de atores sociais, entidades e movimentos populares, vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República, que desenvolve um trabalho junto a grupos vulneráveis econômica e socialmente (indígenas, negros, jovens, LGBT, mulheres e outros), totalmente à margem da grande mídia. Um exemplo das atividades da RECID foi a realização da IV Ciranda de Educação Popular, em maio (ver “Direito à comunicação: o Fórum e a Ciranda ”). Já o NPC dedica-se à assessoria de comunicação – do jornal impresso à internet, da oratória ao uso do rádio e do vídeo – e oferece, por exemplo, cursos ligados a comunicação sindical e popular e a história dos trabalhadores.

6.Os inúmeros observatórios de mídia, ligados ou não à Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi ), que surgem e se consolidam em vários estados brasileiros, mobilizando grupos de jovens voluntários que trabalham pelo direito à comunicação. Um exemplo: o Observatório da Mídia Paraiban a, um projeto de ensino, pesquisa e extensão, criado em 2010, por iniciativa de estudantes da Universidade Federal da Paraíba, com o objetivo de analisar a mídia do estado.

7.O processo de consolidação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que completou o mandado de sua primeira diretoria e inicia uma nova gestão ampliando a construção e a presença de um sistema público de comunicação no território nacional. Registre-se a continuidade importante de programas como o pioneiro Observatório da Imprensa na TV e o Ver TV, janelas solitárias para a discussão da grande mídia na televisão brasileira, comandados, respectivamente, pelos jornalistas Alberto Dines e Lalo Leal Filho.

8.A criação da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e pelo Direito à Comunicação com Participação Popular (Frentecom ), em abril. A Frentecom, composta por 194 parlamentares e mais de uma centena de organizações da sociedade civil e coordenada pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP) e pelo deputado Emiliano José (PT-BA), tem como objetivo acompanhar os debates sobre direito à comunicação e liberdade de expressão no Estado brasileiro, especialmente na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados e no Ministério das Comunicações.

9.A disponibilização do cadastro dos concessionários de radiodifusão do Ministério das Comunicações (Dados de Outorga) cujo acesso voltou a ser permitido, a partir de 30 de maio, em relação às entidades por localidade aos sócios e diretores por entidad e.

10.A atitude corajosa de membros do Judiciário que, na contramão de instâncias superiores, enfrentam o poder da grande mídia nas suas respectivas áreas de atuação. Dois exemplos ocorridos em outubro: a entrevista do presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e a Ação Civil Pública do Ministério Público da Paraíba, que pede suspensão de programa por exibição de cenas de estupro de menor, cassação da concessão da TV Correio (repetidora da TV Record) e pagamento de indenização de R$ 500 mil à menor, pelo uso indevido da imagem, violação da privacidade e danos morais, além de danos morais à coletividade, no valor de R$ 5 milhões.

“Finalidade sem fim”

Tomo emprestado um pouco da sabedoria e do otimismo do professor Antonio Cândido, em admirável entrevista publicada no jornal Brasil de Fato, em julho. Explicando sua opção socialista, o professor recorre a Kant, via Bernstein, e afirma:

“O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar ao paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.”

A regulação da mídia para a democratização da comunicação parece constituir uma dessas “finalidades sem fim” em nosso país.

Feliz 2012.

Venício A. Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011