Em debate sobre a regulação da mídia realizado na Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), em Porto Alegre, em 3 de novembro último, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) advertiu:
“Não esperem que os partidos políticos façam algo para enfrentar o atual esquema de poder da mídia. Há muita omissão no Congresso Nacional sobre esse tema. Sou uma voz isolada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Tento apenas incomodar um pouco” (ver aqui).
Se houvesse alguma dúvida sobre a veracidade dessas afirmações – e do quanto elas alcançam para além do Congresso Nacional – a audiência pública da CCTCI realizada na manhã de quinta feira (15/12), constitui uma prova irrefutável.
Convocada por Requerimento da própria deputada Erundina para debater "a prática de subconcessão, arrendamento ou alienação a terceiros promovida por concessionários de serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens sem a autorização competente", a audiência pública foi simplesmente ignorada por deputados econcessionários de radiodifusão.
Dos oitenta deputados titulares e suplentes da CCTCI (ver abaixo relação completa dos seus integrantes), apenas quatro, incluída a autora do requerimento, compareceram, ou seja, 5% do total – Luiza Erundina (PSB-SP); Bruno Araújo (PSDB-PE); Paulo Foletto (PSB-ES) e Sandro Alexis (PPS-PR); o representante do Ministério Público não compareceu; e dos sete representantes dos concessionários convidados –Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), Grupo Silvio Santos, Rede Record, Organizações Globo, Grupo Bandeirantes e MIX e Mega TVs – nem sequer um único compareceu.
Poderia haver atestado maior da veracidade das afirmações da deputada Luiza Erundina do que este?
Breve história da audiência
Em sua intervenção, a deputada Erundina esclareceu que, na verdade, aquela era a terceira tentativa de se colocar a prática ilegal de arrendamento do serviço público de radiodifusão em discussão na CCTCI. A primeira tentativa ocorreu em 2009, quando a OAB Nacional encaminhou à CCTCI parecer sobre a matéria, elaborado pelo jurista Fábio Konder Comparato, solicitando ao seu presidente que o distribuísse aos membros (ver abaixo a íntegra do parecer). O então presidente da CCTCI, deputado Eduardo Gomes (PSDB-TO), não distribuiu o parecer nem colocou o assunto em discussão.
Em 2011 a deputada Erundina apresentou requerimento solicitando a realização da audiência pública que chegou a ser marcada para novembro, mas acabou adiada sine die exatamente porque não se obteve confirmação de presença dos concessionários. Finalmente, ao apagar das luzes do ano legislativo, a audiência pública foi “realizada” no dia 15 de dezembro.
O que está em jogo?
Dados de arrendamento de concessões de três redes de televisão, somente no estado de São Paulo, revelam:
(1)TV Gazeta: arrendamento de 37 horas e 5 minutos por semana, assim distribuídos:
2a a 6ª feiras
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
1h – 2h – Polishop
Sábado
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
23h – 2h – Polishop
Domingo
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
8h – 8h30 – Encontro com Cristo
14h – 20h – Polishop
0h – 2h – Polishop
(2)Rede TV!: arrendamento de 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado), assim distribuídos:
Domingo
6h – 8h – Programa Ultrafarma
8h – 10h – Igreja Mundial do Poder de Deus
10h – 11h – Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma
16h45 – 17h – Programa Parceria5
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
2a e 3ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
1h55 – 3h – Programa Nestlé
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
4a feira
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
5a e 6ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
Sábado
7h15 – 7h45 – Igreja Mundial do Poder de Deus
7h45 – 8h – Tempo de Avivamento
8h – 8h15 – Apeoesp – São Paulo
8h15 – 8h45 – Igreja Presbiteriana Verdade e Vida
8h45 – 10h30 – Vitória em Cristo
10h30 – 11h – Igreja Pentecostal
11h – 11h15 – Vitória em Cristo 2
12h – 12h30 – Assembléia de Deus do Brasileiro
12h30 – 13h30 – Programa Ultrafama
2h – 2h30 – Programa Igreja Bola de Neve
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
(3)Rede Bandeirantes: arrendamento de 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado), assim distribuídos:
2a a 6a feira
5h45 – 6h45 (Religioso I)
20h55 – 21h20 (Show da Fé)
2h35 (Religioso II)
Sábado e domingo
5h45 – 7h (Religioso III)
4h (Religioso IV)
No parecer que elaborou para a OAB em 2009, o professor Comparato concluiu pela completa ilegalidade da pratica afirmando que “o direito de prestar serviço público em virtude de concessão administrativa não é um bem patrimonial suscetível de negociação pelo concessionário no mercado. Não se trata de um bem in commercio. O concessionário de serviço público não pode, de forma alguma, arrendar ou alienar a terceiro sua posição de delegatário do Poder Público. O que o direito brasileiro admite (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) é a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente; sendo certo que a transferência da concessão sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27)”.
O que fazer?
A omissão de parlamentares em relação às políticas públicas de comunicações não constitui novidade. Está no Supremo Tribunal Federal, desde novembro de 2010, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) que pede à Corte que declare “a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em legislar sobre as matérias constantes dos artigos 5°, inciso V; 220, § 3º, II; 220, § 5°; 211; 222, § 3º, todos da Constituição Federal, dando ciência dessa decisão àquele órgão do Poder Legislativo, a fim de que seja providenciada, em regime de urgência, na forma do disposto nos arts. 152 e seguintes da Câmara dos Deputados e nos arts. 336 e seguintes do Senado Federal, a devida legislação sobre o assunto” (ver aqui).
A recusa sistemática dos empresários de mídia em discutir democraticamente questões ligadas ao setor também não constitui qualquer surpresa. Desprezam e se ausentam da CCTCI exatamente como boicotaram a 1ª Conferência Nacional de Comunicação realizada em dezembro de 2009.
Diante disso, ao final da audiência pública do dia 15/12, a deputada Luiza Erundina anunciou que (1) encaminharia à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados proposta de fiscalização e controle para que o Tribunal de Contas da União (TCU) realize auditoria nos contratos de permissões e concessões das empresas de radiodifusão; e (2) ao Ministério Público, representação para que proceda a uma investigação da prática ilegal de subconcessão, arrendamento ou alienação a terceiros, promovida por concessionários de radiodifusão.
Perspectivas
Infelizmente a advertência da deputada Luiza Erundina no debate da Ajuris está correta. Não se consegue debater ilegalidades como esta na CCTCI da Câmara dos Deputados, sua comissão específica.
Além disso, mais um ano termina sem que se conheça o prometido projeto do governo Dilma Rousseff de marco regulatório para as comunicações. Ele necessariamente terá que contemplar questões como a tratada aqui. E, por óbvio, terá que tramitar na CCTCI do Congresso Nacional.
O(a) eventual leitor(a) concordará que as perspectivas confirmam um longo e difícil caminho a ser percorrido no rumo da regulação da mídia para a democratização das comunicações.
A ver.
Venício A. Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011