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O escárnio de Temer com as concessões de rádio e TV

Governo altera regras para outorgas de radiodifusão via MP e retira obrigações básicas das empresas na prestação do serviço. Empresariado comemora

Por Bia Barbosa*

A imprensa toda noticiou e o empresariado de radiodifusão comemorou as mudanças no marco regulatório do setor, publicadas na quarta-feira 29 no Diário Oficial da União. Para a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert), foi “a maior vitória dos últimos 50 anos”.

Quem quiser entender de fato o que mudou nas normas que as concessionárias devem respeitar – as poucas em vigor no país – não vai achar muita explicação nas matérias e reportagens. O discurso que prevaleceu foi o da “desburocratização para apoiar as empresas”.

O ministro Gilberto Kassab falou em “liberdade para os empreendimentos”. E Michel Temer, na cerimônia de sanção da lei no Palácio do Planalto, chegou a afirmar que as novas regras são uma “contribuição à imprensa livre”. Com o perdão do trocadilho infame, só se for “livre de obrigações”.

Uma simples leitura do texto da Medida Provisória sancionada – que agora já é lei – revela o tamanho do escárnio com que este governo passa a tratar o serviço de radiodifusão. Entre o envio para o Congresso Nacional no final de 2016 e a sanção nesta terça-feira, a MP 747 ganhou requintes de crueldade para qualquer um que acredita que o interesse público deveria ser o condutor dos processos de licenciamento das outorgas de rádio e TV no Brasil.

Por incrível que pareça, num país em que as concessões sempre foram usadas como moeda de troca política, foi possível piorar o procedimento das licenças. E agora não é nenhum exagero afirmar que o empresariado da radiodifusão pode fazer o que bem entender com este bem que, vale lembrar, é público.

Vejamos:

1. Anistia nos prazos para renovação

Pelas novas regras, todo concessionário que tenha perdido o prazo para renovar suas outorgas ganha de presente 90 dias para fazê-lo. Não interessa se o atraso foi de um mês ou de dois anos. Todo mundo poderá fazer o pedido agora. Aquelas emissoras que já pediram a renovação, mas o fizeram fora do prazo – inclusive as que o Executivo já tinha revogado a licença justamente pelo atraso na solicitação da renovação –, também ganham mais uma chance para recolocar seus canais em funcionamento, caso o Congresso Nacional ainda não tenha se manifestado sobre o caso.

E, daqui pra frente, se mais alguém se esquecer de pedir para renovar suas outorgas dentro do prazo, caberá ao Estado brasileiro a tarefa de avisar as empresas sobre isso.

Ou seja, em vez de retomar as outorgas que foram abandonadas pelas empresas que não pediram sua renovação e abrir novos processos de licitação, para que outras empresas ou atores possam participar da disputa por um espaço no espectro eletromagnético, o governo Temer “facilitará” a vida de antigos radiodifusores, para que eles voltem a operar, agora “dentro da lei”.

A mesma anistia foi concedida às rádios comunitárias, depois de muita pressão, sobretudo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), porque a proposta inicial de Temer era conceder o benefício apenas às comerciais.

2. Renovação mais do que automática

Foi excluído do texto da lei a previsão de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisito para o direito à renovação das outorgas. Já se sabe que o processo de renovação das licenças de rádio e TV no Brasil é quase automático, sendo necessário o voto aberto de dois quintos dos deputados e senadores, em sessão conjunta do Parlamento, para que uma concessão não seja renovada.

Agora, as obrigações que tinham de ser respeitadas – pelo menos segundo a letra da lei – desapareceram. Se o (antigo) Ministério das Comunicações (hoje Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) já pouco fiscalizava o cumprimento dessas “obrigações legais e contratuais” e nada olhava para o atendimento “ao interesse público” no momento de renovar licenças, agora isso nem mais será solicitado.

Pelas mudanças que entraram em vigor, as empresas também não precisam mais demonstrar ou comprovar que possuem recursos técnicos e financeiros para participar de um edital de concessão de outorgas Tudo em nome da “desburocratização” dos processos…

3. Cotas pra quem quiser

Pela regra em vigor antes da edição da Medida Provisória, qualquer alteração nos objetivos sociais das empresas concessionárias, assim como cessões de cotas e ações que alterassem o controle societário das empresas, deveria ser previamente autorizada pelo Executivo.

Isso porque, em teoria, há (mínimas) regras anti-concentração na propriedade dos canais que devem ser respeitadas no País. Mas isso também caiu com a nova lei de Temer. Agora, basta que as empresas informem o governo sobre as alterações feitas.

A cereja do bolo é que aquelas que fizeram alterações ilegalmente sem a autorização prévia do ministério, quando a lei anterior ainda valia, ganham agora 60 dias para informar o governo das mudanças, sem qualquer prejuízo para continuarem funcionando normalmente.

O que segue dependendo de autorização prévia do Estado é somente a transferência total e integral da concessão para outra empresa, numa prática já bastante conhecida, chamada “comércio de outorgas”. Na avaliação de procuradores do Ministério Público Federal, a venda e transferência total de licenças de rádio e TV para terceiros viola totalmente a legislação brasileira, ao ignorar processos licitatórios e permitir o enriquecimento ilícito de empresários da radiodifusão com a comercialização de um bem (a frequência eletromagnética) que é público.

Mas o governo federal sempre autorizou as transferências diretas e indiretas, e nada nunca foi feito. Isso continua como está, claro. Mas os radiodifusores também ganharam uma ajudinha: a transferência agora está liberada inclusive para as outorgas que estiverem funcionando em caráter precário, ou seja, que ainda não tiverem seus processos de renovação concluídos dentro do Estado brasileiro.

Ação entre amigos

É essa a “liberdade para empreender” que o ministro Kassab defende; é essa “a maior vitória dos últimos 50 anos” para a Abert: oficializar o uso e exploração privada e particular das outorgas por meio do mercado, reduzindo as obrigações que os concessionários devem respeitar, anistiando todos aqueles que não tiveram a mínima capacidade de solicitar a renovação de suas licenças dentro dos prazos e legalizando um verdadeiro balcão de negócios das concessões de rádio e TV.

Para não dizer que não falamos do único veto de Temer às normas que o Congresso pariu a partir de sua MP 747, segue o informe: por orientação da Casa Civil, foi excluído do texto sancionado a autorização para que políticos detentores de foro privilegiado pudessem ser diretores ou gerentes de rádios comunitárias.

Hoje a lei proíbe que eles exerçam essa função em qualquer tipo de emissora. O Congresso queria liberar os cargos em emissoras comunitárias – afinal, várias delas são de propriedade de políticos. O governo não concordou e manteve a proibição para todas, provavelmente atendendo a um pedido de sua aliada de primeira hora, a Abert, que sempre combateu ferozmente a concorrência das comunitárias.

E tem gente que ainda diz que não foi golpe.

*Bia Barbosa é jornalista, mestre em Políticas Públicas (FGV), coordenadora do Intervozes e Secretária Geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.  

Violação do sigilo da fonte: atentado ao direito à comunicação

Condução coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães é o caso mais emblemático das perseguições contra quem tenta exercer a liberdade de expressão

Frente a mais uma violação à liberdade de expressão e ao direito à comunicação, o Intervozes convidou a advogada Tatiana Stroppa para analisar o caso Eduardo Guimarães.

Por Tatiana Stroppa*

Na terça-feira, 21, o blogueiro Eduardo Guimarães, autor do Blog da Cidadania, foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento na Superintendência da Polícia Federal de São Paulo, além de ter computadores e celulares apreendidos por ordem do juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, em inquérito que apura o suposto vazamento de informações da 24ª fase da Operação Lava Jato, deflagrada em março de 2016.

Na época, Eduardo Guimarães antecipou informações sobre a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e acerca de diligências de busca e apreensão na sede do Instituto Lula.

A Justiça Federal no Paraná, como os membros do Ministério Público Federal, que atuam na Lava Jato, emitiram notas para explicar a situação. Segundo a JF, “Eduardo Guimarães não é jornalista e seu blog destina-se apenas a permitir o exercício de sua própria liberdade de expressão e a veicular propaganda político-partidária”; “não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo” e “a proteção constitucional ao sigilo de fonte protege apenas quem exerce a profissão de jornalista, com ou sem diploma”.

Já a nota do MPF menciona que a investigação pretende descobrir “se informações sigilosas foram repassadas a investigados por Guimarães antes de ele ter publicado em seu blog” e que “portanto, a diligência não foi motivada pela divulgação das informações à sociedade.”

Por outro lado, a defesa de Eduardo Guimarães rebateu defendendo que: “condicionar a qualificação de ‘informação jornalística’ ao conteúdo das manifestações não tem outro nome: é censura” e que “é inquestionável que o fato em apuração (divulgação pública de uma informação) foi praticado no exercício de atividade jornalística”.

Essas defesas remetem a um antigo imbróglio: o da regulamentação da profissão de jornalista. Em junho de 2009, o Supremo Tribunal Federal considerou que não era necessária a exigência do diploma de jornalista e a obrigatoriedade de registro profissional para exercer a profissão.

O ministro Gilmar Mendes entendeu que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei 972/1969, baixado durante a ditadura militar, estava em desacordo com a Constituição Federal (CF) de 1988 e que “o jornalismo e a liberdade de expressão são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensados e tratados de forma separada”. Portanto, com a decisão do STF operou-se a desregulamentação da profissão de jornalista e, dessa forma, fixou-se que qualquer pessoa, mesmo sem o diploma, pode exercer a atividade jornalística.

Liberdade de imprensa x liberdade de expressão

O professor Venício Lima discute uma das questões mais polêmicas do atual debate público das comunicações: as diferenças entre os conceitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

A partir da análise de textos históricos sobre o tema, explica que há uma diferença óbvia entre três palavras que não foi preservada em suas traduções: press (imprensa), print (impressão) e speech (fala). Neste sentido, afirma que a liberdade de imprensa não tem hoje o mesmo significado que tinha na Inglaterra do século XVII em que “the press” era apenas a tipografia onde indivíduos livres para imprimir e divulgar suas ideais estariam mais preparados para o autogoverno.

Diante disso, conclui que faz tempo que a velha “imprensa” se transformou em uma poderosa instituição – na mídia, que é o coletivo dos diferentes meios impressos e eletrônicos – e não tem mais qualquer relação direta com a liberdade individual de expressão dos cidadãos.

Assim, não se pode dizer que no Brasil a construção histórica do sistema de mídia, privatizado, concentrado e oligopolizado, apesar da vedação contida na Constituição Federal, tenha contribuído efetivamente para a formatação de uma comunicação democratizada e de um espaço público participativo.

Por consequência, é inegável a contribuição da evolução digital. Abriram-se novos espaços de interlocução na arena pública, permitindo que vozes que antes não tinham espaço nos meios de comunicação convencionais passassem a ter expressão. O acesso à internet – embora ainda limitado – pode permitir às pessoas assumir uma posição ativa na relação comunicacional ao saírem da posição de receptores da informação e passarem à posição de criadoras de conteúdos, os quais podem ser divulgados de maneira instantânea e com acentuada velocidade de propagação.

Segredo x publicidade

A leitura da Constituição Federal revela a preferência pela publicidade e transparência na política de informações, acessível a todos os cidadãos, que permita o controle da atividade governativa e o acompanhamento do exercício do poder. Esse direito, portanto, somente pode ser restrito quando o sigilo for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, conforme incisos XIV e XXXIII do Art. 5º, Art. 37, e inciso IX do Art. 93.

A ideia era vencer a cultura do sigilo, impondo a divulgação das informações de caráter público que estão sob a guarda e gestão de órgãos e entidades governamentais. O acesso é a regra, e o sigilo, a exceção. Aliás, a existência de uma política de informações totalmente transparente e pública é essencial em uma democracia.

O sigilo da fonte é reguardado, por exemplo, quando necessário ao exercício profissional (Art. 5º, XIV). Mas essa garantia precisa ser interpretada a partir de duas mudanças radicais: a) a retirada da exigência do diploma para o exercício da atividade jornalística; b) a utilização dos potenciais democratizantes que a internet oferece para tornar públicas notícias e críticas.

Nesse cenário, deve-se compreender que o que está constitucionalmente protegido é o exercício da atividade jornalística, e não do jornalista. Em outras palavras, o sigilo da fonte é uma garantia fundamental para o exercício do direito à informação e, por isso, estão protegidas tanto a emissão de notícias como as críticas a elas correlacionadas, independentemente do meio utilizado e da forma de recepção das mensagens.

Entendemos também que o sigilo da fonte, além de permitir a ampliação das possibilidades de recolhimento de informação, é uma verdadeira proteção constitucional para pessoa (informante) que revela os fatos e as informações, permitindo que tragam ao conhecimento público acontecimentos que nunca revelariam se soubessem que poderiam sofrer represálias ou ser sujeitos de responsabilidades perante eventuais denúncias.

Portanto, o sigilo da fonte protege tanto o exercício da atividade jornalística ao permitir que aquele que divulgue as notícias e críticas não seja punido por não revelar a identidade da fonte, como garantia para as pessoas que fornecem as informações sob a condição de não serem identificadas.

É evidente que constitucionalização do sigilo da fonte não isenta aquele que exerce a liberdade de informação jornalística de responsabilidade pelo que divulgue, diante da vedação, também constitucional, do anonimato (Art. 5º, IV). Agora, impossível pretender justificar a quebra do sigilo daqueles que estão exercendo atividade jornalística para que as instituições judiciais, administrativas e policiais consigam sucesso em suas investigações, sob pena de assistirmos ao esvaziamento deste direito, com consequências bastante negativas para a própria sociedade, já que tais relativizações afetam o pluralismo de informações e o conhecimento de assuntos de interesse público sem os quais impossível caracterizar uma sociedade democrática.

É preciso avançar na análise e entender a importância do sigilo da fonte para o exercício da liberdade de informação jornalística que não pode ficar dependendo de qualificações arbitrárias sobre o seu significado e a sua abrangência.

Calar jamais

Em tempos de golpe, ameaças e perseguições a comunicadores populares e jornalistas fazem parte da agenda do retrocesso. Na semana passada, o repórter Caio Barbosa foi demitido do jornal O Dia por exigência do bispo Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro. O prefeito desmente o jornalista em nota que mistura, como é sua prática, política e fé religiosa. A convite do Intervozes, Barbosa vai compartilhar seu relato hoje, às 19h, na Casa Pública (Rua Dona Mariana , 81 – Botafogo – Rio de Janeiro), durante o lançamento do relatório Direito à Comunicação no Brasil 2016. O caso se soma a um cenário sombrio que está sendo denunciado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação através da campanha Calar Jamais.

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Nota de esclarecimento da defesa de Eduardo Guimarães

Informamos que o juiz Sérgio Moro acabou de publicar uma decisão por meio da qual reconhece que Eduardo Guimarães é jornalista e, em tom de arrependimento, afirma ser “o caso de rever o posicionamento anterior e melhor delimitar o objeto do processo”.

Como consequência, determinou a exclusão de “qualquer elemento probatório relativo à identificação da fonte de informação”.

Dessa forma, o magistrado voltou atrás e reconheceu a tese alegada pela Defesa desde o início dessa investigação, admitindo ter tomado medidas ilegais.

Após o levantamento do sigilo dos autos, cumpre-nos informar fato extremamente grave. 

Antes de ser conduzido coercitivamente, o jornalista Eduardo Guimarães teve o sigilo de suas ligações telefônicas violado. O magistrado determinou que a operadora de celular informasse seu extrato telefônico, com o objetivo claro de identificar a fonte que teria passado a informação divulgada no blog.

É importante ressaltar que a fonte jornalística foi identificada mediante quebra de sigilo dos extratos telefônicos do Eduardo Guimarães.

Portanto, a decisão não corresponde à realidade ao afirmar que Eduardo “revelou, de pronto, ao ser indagado pela autoridade policial e sem qualquer espécie de coação, quem seria a sua fonte de informação”.

Basta perceber que o próprio juiz Sérgio Moro agora reconhece a ilegalidade das medidas tomadas visando à obtenção prévia da fonte de informação, para concluir que houve nítida coação ilegal no ato de seu depoimento.

Está devidamente comprovado que, na ocasião do depoimento, as autoridades já tinham conhecimento da sua fonte de informação, obtido mediante o emprego de meios que o próprio magistrado agora assume serem ilegais.

Não bastasse tamanha arbitrariedade, a autoridade policial sequer aguardou a chegada deste advogado para iniciar o depoimento.

Assim, é evidente a ilegalidade deste depoimento, cuja anulação será oportunamente requerida pela Defesa, bem como a restituição de todos os equipamentos eletrônicos ilegalmente apreendidos.

Caso se julgue necessário, estaremos à inteira disposição para prestar novos esclarecimentos, pois não há dúvida de que o jornalista Eduardo Guimarães agiu de acordo com a ética de sua profissão.

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*Tatiana Stroppa é doutoranda em Direito Constitucional, professora e pesquisadora do Centro Universitário de Bauru (ITE).democratizaçã

Carne Fraca: porque a grande mídia não se importa com a sua comida

Para além da operação, o agronegócio é um dos maiores causadores de conflitos agrários e má alimentação no mundo, mas mídia ignora o assunto

Por Camila Nobrega*

O tom de “a gente avisou” dominou as redes depois do anúncio da Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, que descobriu um esquema de venda ilegal de carnes por frigoríficos no Brasil.

Desde a sexta-feira 17, as redes sociais se tornaram terreno de disputa. De um lado, vegetarianos e veganos, do outro, pessoas que comem carne.

Memes brincavam com o estarrecimento da maior parte da população brasileira ao descobrir que está comendo carne apodrecida, maquiada por excesso de ácido ascórbico, vulgo Vitamina C.

A operação da PF parece ter deixado o país em estado de choque, ao tocar exatamente no assunto carne, item consumido indiscriminadamente, variando apenas de acordo com a situação socioeconômica de cada família.

No entanto, a situação revelou algo que vai além do esquema de propinas e fraudes. O nível de informação de brasileiras e brasileiros sobre a comida que chega à mesa é irrisório.

E isso se agrava em um panorama mais amplo, pois também é pouco o acesso à informação sobre a dinâmica do agronegócio – ou seja, a produção da pecuária e agricultura em escala industrial – por parte da população a partir dos veículos de mídia tradicionais.

E essa violação no direito à informação e à comunicação tem muito mais a ver com o escândalo dos frigoríficos do que as escolhas individuais de comer ou não carne.

O agronegócio movimenta mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e recebe vultosas quantias de investimento do governo brasileiro.

Não por coincidência, é dono da maior bancada no Congresso, a chamada bancada ruralista, que rapidamente saiu em defesa da indústria nacional e do ministro da Justiça, Osmar Serraglio, flagrado em ligação para um fiscal agropecuário apontado como um dos chefes do esquema de propinas no Ministério da Agricultura.

Tudo isso faz parte de um contexto no qual o Brasil permanece alimentando o robusto mercado interno, já que as pessoas comem mais carne do que o necessário, e mantém a posição de exportador de alimentos e matérias-primas, como minérios, nesse ritmo industrial.

Mas, claro, centralizar o problema do agronegócio mundial no Brasil é miopia e, de fato, tentativa de não deixar o escândalo chegar à fonte do problema.

O que estamos vendo por aqui é conseqüência de um sistema mundial de produção e consumo de alimentos muito danoso, onde quantidade e lucro são lema e a qualidade deixou de ser prioridade faz tempo, combinada com os fatores locais, ou seja, esse imenso poder político do agronegócio.

É inegável que existem, nas atuais denúncias sobre a qualidade da carne dos principais frigoríficos brasileiros, novidades que justificam a enorme repercussão dos primeiros resultados da Operação Carne Fraca.

Entre elas, o envolvimento de fiscais do Ministério da Agricultura que recebiam propina para não fiscalizar carnes de alguns frigoríficos, em um esquema que envolve empresários do agronegócio e partidos políticos – especialmente PP e PMDB, de acordo com a Polícia Federal.

No entanto, por trás da Operação, existe um longo caminho e uma série de informações de interesse público que continuam sendo ocultadas de maior parte da população.

E só por isso o choque foi tão grande, quando as pessoas começaram a ler sobre uso de carnes de baixa qualidade e ácido ascórbico nos alimentos, carcaças de animais, além de entrevistas sobre usos exacerbados de antibióticos, entre outras coisas.

A questão é que a maior parte disso tudo não é surpresa. Muito além de parte das pessoas que não consomem carne dizendo “eu já sabia”, centenas de movimentos sociais e organizações que acompanham há anos o tema na prática, além de alguns veículos de mídias alternativas e comunitárias, travam uma batalha diária para levar informação à população sobre o assunto.

Há décadas já se sabe que a produção de alimentos em escala industrial está afetando a saúde no país. E muito mais do que isso.

O agronegócio, ao lado da mineração, é um dos principais causadores de conflitos agrários no Brasil, que hoje é o país com mais assassinatos de ativistas ambientais no mundo, segundo levantamento da ONG Global Witness, que repercutiu muito no ano passado.

Já de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, em publicação lançada no dia 17 de janeiro de 2017, 59 pessoas foram mortas no Brasil em consequência da atuação em defesa de territórios tradicionais, demarcação de terras, reforma agrária e pelos direitos das populações envolvidas nesses conflitos em 2016.

Segundo o Atlas Global dos Conflitos Ambientais, organizado pela Universidade Autônoma de Barcelona, o país tem o terceiro maior número de conflitos ambientais no mundo, com tendência de crescimento acelerado.

Essas informações costumam ser reportadas de forma pontual na mídia tradicional, de maneira a não constituir um alarde na população.

Vozes dos movimentos e organizações que trabalham com o tema são abafadas, ao contrário de ícones do agronegócio, tais quais o atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, empresário dono de extensa produção de soja, e a ex-ministra Kátia Abreu.

Bom lembrar que a JBS (Friboi, entre outras marcas) e a BRF (incluindo Sadia, Perdigão e Seara) aparecem entre as dez empresas que mais compraram espaço para publicidade na mídia no Brasil, com dados referentes ao ano de 2005, segundo o ranking Agências & Anunciantes.

Personalidades como Fátima Bernardes, Ana Maria Braga, Roberto Carlos e Tony Ramos estão entre os famosos que emprestaram seus rostos – e depoimentos – para gerar confiança nas propagandas destes frigoríficos.

Não à toa, grande parte dos jornais brasileiros têm dado amplo espaço para a defesa das empresas envolvidas no escândalo e para representantes do setor, que se esforçam em tentar convencer a população e os compradores no exterior de que se tratam de casos isolados, o que não parece ter surtido efeito.

Na linha do alarde provocado pela Polícia Federal e sem dar muitas explicações, China e Hong Kong já suspenderam temporariamente a entrada de carne brasileira nos países.

Isso não quer dizer que não exista informação de qualidade sobre o tema sendo produzida. Em 2012, a Repórter Brasil lançou o site Moendo Gente, que denunciava as condições insalubres de trabalho nos frigoríficos brasileiros.

No ano anterior, essas denúncias já haviam sido divulgadas pela mesma instituição através do documentário Carne e Osso.

Foi também naquele ano que o cineasta Silvio Tendler lançou O Veneno Está na Mesa, mostrando o uso de agrotóxicos e suas consequências. Até mesmo a edição II do filme já foi lançada, com grande impacto nacional e internacional.

O Instituto Alana denuncia a relação perniciosa entre publicidade e consumo de alimentos não saudáveis por crianças há quase dez anos, quando lançou, em 2008, o documentário Criança, a Alma do Negócio.

Embora não focasse apenas no consumo de comida (o que veio a acontecer em 2012, com o Muito Além do Peso), o filme mostrava, por exemplo, o quanto a propaganda de alimentos voltada para crianças tem sido eficaz em fazê-las conhecer mais as marcas de comida industrializada do que os nomes de frutas e verduras.

Vale lembrar que desde 2001 tramita na Câmara Federal um Projeto de Lei para estabelecer regras à publicidade voltada para pessoas de até 12 anos e que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em sua Resolução 163, considera que toda publicidade para crianças é abusiva.

Mais especificamente sobre agronegócio, crescem blogs e projetos jornalísticos falando sobre o tema, mas com muita dificuldade de atingir audiência. Um deles é o De Olho nos Ruralistas, que traz a questão política e o poder dos ruralistas no Congresso como elemento central na questão.

Desde os anos 1970, quando a produção industrial de carne foi iniciada no Brasil, organizações e movimentos sociais buscam espaço para conscientizar a população sobre o tema.

Hoje em dia, o Brasil é uma das principais referências mundiais sobre a agroecologia, um movimento que tem como objetivo a transformação do sistema alimentar, a partir do comércio feito em circuitos locais, com valorização de pequenos produtores, sem agrotóxicos e sem o uso de antibióticos e outras coisas nos animais, com o objetivo de garantir uma alimentação saudável e socialmente justa.

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é uma das principais referências no tema, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. Além dela, o Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional (FBSSAN) também tem uma atuação na política nacional, além de produção de informação, assim como na campanha Comida é Patrimônio, que tem o objetivo de informar sobre a perda da diversidade de alimentos, em função da expansão do agronegócio no país.

O Movimento Sem Terra (MST) é referência na garantia do direito à terra como forma também de garantir outros direitos e alimentação saudável no país.

Mas nada disso repercutiu na grande mídia como a Operação Carne Fraca. P

arece que descobrimos só agora o quanto comemos mal, como se a Polícia Federal tivesse se tornado especialista em todos os temas do país.

Seguindo a tendência de cenário quase hollywoodiano para revelar as operações policiais, a mídia esteve a postos, denúncias de corrupção vieram à tona e as pessoas chocadas com a qualidade da carne que compram no supermercado.

No entanto, para além da fraude em si, que essa sim é notícia, continuam preferindo não nos contar que o modus operandi da produção massiva de carne envolve imensas áreas de terra do país, eleva conflitos agrários que levam à morte de ativistas ambientais, especialmente na região Norte, é um dos principais responsáveis pela emissão de gases de feito estufa e é bastante propenso a trazer riscos à saúde.

Com ou sem operação Carne Fraca, essa é a realidade.

E não apenas no Brasil. A produção de carnes da maneira como é feita atualmente é um problema em todo o mundo. Levou às ruas em uma manifestação chamada Wir Haben es Satt 100 mil pessoas na Alemanha em janeiro deste ano contra o agronegócio, não à toa logo no país onde salsicha é componente popular da alimentação desde a Segunda Guerra Mundial. Menos sensacionalismo e mais informação, esse é o maior desafio nessa história. Porque sobre os riscos à saúde, muita gente de fato já sabia.

*Camila Nobrega é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e integrante do Coletivo Intervozes. Colaboraram Marina Pita e Mônica Mourão, jornalistas e integrantes do Conselho Diretor do Intervozes

Protestos contra a reforma da Previdência: o que você não viu na TV

Principais telejornais cerceiam voz dos manifestantes que ocuparam as ruas e focam cobertura nos problemas gerados pelas paralisações de trabalhadores

Por Eduardo Amorim, Oona Castro, Mabel Dias e Bia Barbosa*

Depois deste ano, o 15 março também será marcado como uma data histórica de protestos da esquerda. Lembrado como o dia em que, em 2015, as ruas do país foram tomadas de verde e amarelo pedindo o impeachment de Dilma Rousseff, nesta quinta-feira o mesmo 15 de março virou uma grande onda vermelha contra o governo Temer e suas reformas que retiram direitos.

Mais de 125 cidades, incluindo 25 capitais, registraram grandes manifestações e paralisações de trabalhadores. Os atos foram maiores do que os últimos convocados pelos movimentos sociais contra o golpe, o que indica uma possível retomada das mobilizações populares.

Quem se informou sobre os acontecimentos do dia somente pela televisão aberta, entretanto, ficou sabendo pouco ou quase nada sobre os protestos. Infelizmente, esta é a realidade da maior parte da população brasileira.

De acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia 2016, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, a TV é o principal meio de informação para 63% do País. Se considerarmos o principal ou o segundo meio de informação, o índice sobe para 89% da população, comprovando a força desproporcional deste veículo em relação aos demais tanto para a informação quanto para a formação da opinião pública nacional.

E por isso vale analisar o que foi mostrado – e, principalmente, o que não foi – pelos principais telejornais do País na noite desta quarta-feira. Se por um lado o tamanho e multiplicidade de atos – e a própria crise do governo Temer dentro dos grupos políticos que o alçaram ao poder – impediram que as emissoras silenciassem sobre o que tinha ocorrido durante o dia, por outro, as imagens dos gigantescos atos em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife ganharam visibilidade de fato nas redes sociais.

Nos telejornais noturnos, o tom das matérias foi muito mais o impacto das paralisações – sobretudo dos trabalhadores das redes de transporte – do que os atos em si. Flashes rápidos dos protestos, nenhum número sobre o total de participantes e, principalmente, nenhuma entrevista com os organizadores das manifestações foram a maneira escolhida pela mídia de censurar o motivo que levou milhares de brasileiros e brasileiras às ruas.

Jornal Nacional: o encadeamento perfeito

A manchete principal do telejornal foi a lista de possíveis futuros alvos de inquérito pela Operação Lava Jato. Somente 20 minutos depois do início do programa veio a matéria sobre as manifestações. Em 2 minutos e 40 segundos, a Globo conseguiu relatar atos em mais de dez cidades, mas sem ouvir nenhum porta-voz dos movimentos e dando destaque aos transtornos no trânsito, às escolas e agências bancárias fechadas, ou ao que chamou de “depredação” de prédios públicos.

A sequência do informe-relâmpago sobre os atos foi uma declaração de Michel Temer justificando a necessidade das reformas – reforçando a tese anteriormente já enunciada, em outra matéria, pelo presidente do Banco Central. “Nós apresentamos (…) um caminho para salvar a Previdência do colapso, para salvar os benefícios dos aposentados de hoje e dos jovens que se aposentarão amanhã. Isso, meus amigos (…) será que é para tirar direitos de pessoas? Em primeiro lugar, não vai tirar direito de ninguém, quem tem direito já adquirido, ainda que esteja no trabalho, não vai perder nada do que tem”, afirmou Temer, numa resposta indireta ao que as ruas criticaram.

Mas o encadeamento perfeito da edição global veio mesmo após a fala do presidente. A reportagem seguinte, efusivamente celebrada pelos apresentadores, foi a de que a Agência Moody’s mudou a expectativa em relação à economia brasileira de negativa para estável. Segundo a Globo, a empresa americana melhorou sua análise sobre o País em função das reformas propostas “por um governo preocupado com as contas públicas”. Bingo!

Assim, apesar de não abrir qualquer espaço para a explicação dos motivos das manifestações, duas vezes elas foram rechaçadas por representantes do governo e, depois, deslegitimadas pelo mercado financeiro.

Uma versão editada das imagens, com dois minutos de duração, foi exibida horas depois no Jornal da Globo, antecedidas pelo seguinte comentário do apresentador William Waack:

“Coube aos governos recentes do PT, que hoje protesta contra a reforma da Previdência, levar o Brasil mais rápido ao encontro com uma dura realidade. O descalabro promovido nas contas públicas, a gastança do que não se tinha e nem se podia gastar, tornou mais grave um problema que o nosso país vem arrastando há anos e que explodiu agora. Goste-se ou não do que está na proposta de reforma da Previdência, há um fato do qual não escapamos: ou o Brasil encara o que fazer com essas contas que não fecham mais, incluindo as da Previdência, ou as finanças públicas quebram”. Diversidade de opiniões? A gente não vê por aqui.

Jornal da Record: o problema foi o trânsito

Apesar de ter as manifestações do dia como matéria principal, o Jornal da Record repetiu a tônica da principal concorrente. Novamente, nem em uma só palavra sobre as reformas. O grande motivo para noticiar os protestos, para a emissora de Edir Macedo, foi mostrar os transtornos e “recordes de congestionamento” provocados pelos atos e paralisações dos trabalhadores.

Em São Paulo, onde aconteceu o maior protesto, com mais de 200 mil pessoas, as imagens veiculadas foram de terminais de ônibus, filas, coletivos lotados, estações de metrô vazias e a tão repetida frase “foi preciso muito sacrifício para conseguir embarcar”.

Os entrevistados foram os usuários do transporte público, que diziam por quanto tempo tinham aguardado um ônibus, ou quanto tempo tinham levado para chegar ao trabalho. A Record mencionou até que para muitos a solução foram os aplicativos, que estavam mais caros, e a suspensão do rodízio de veículos.

Ao citar atos em outras capitais, prevaleceram aspectos “negativos” das manifestações. Em Belo Horizonte mostraram os postos de saúde fechados. No Rio de Janeiro, a imagem foi da repressão policial, tratada como “confronto” e justificada pelo fato de “vândalos” terem “provocado um quebra-quebra”.

Sobre as reformas, a matéria exibida foi da reunião de Michel Temer com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Eunício Oliveira. O trecho da coletiva do Temer sobre o assunto também foi transmitido.

Jornal da Band: trabalhador contra trabalhador

O Jornal da Band iniciou com imagens aéreas ao vivo da Avenida Paulista. Duas reportagens sobre as mobilizações foram veiculadas. Na primeira, o repórter afirmou que a paralisação do transporte havia prejudicado os trabalhadores que se dirigiram ao trabalho logo cedo. Entrevistaram pessoas e mostraram metrôs e ônibus sem circular.

Um senhor entrevistado declarou que “os sindicatos têm muito poder e isso tem que acabar”. Nenhum sindicato foi ouvido. Na segunda reportagem, a Band mostrou a adesão à paralisação de professores das redes estadual e municipal de São Paulo, afirmando que a mobilização prejudicava os estudantes. A velha tática foi repetida: colocar trabalhadores contra trabalhadores e não informar a população sobre os motivos das paralisações.

Repórter Brasil: censura?

Na TV Brasil, a confirmação de que as mudanças feitas por Temer na EBC transformaram os canais geridos pela Empresa Brasil de Comunicação de fato em veículos governamentais.

O telejornal da noite desta quarta-feira mostrou um link ao vivo da manifestação na Paulista, mas como o coro de “Fora Temer” ao fundo foi tão alto, o site do canal, que disponibiliza online as matérias do Repórter Brasil, não mostra nesta quinta nenhum arquivo sobre os protestos de quarta.

Uma vez mais, portanto, os principais canais de TV do Brasil perderam a oportunidade de informar a população sobre os embates e disputas em torno das reformas em curso do Brasil, incluindo o recém divulgado posicionamento do Ministério Público Federal que afirma que vários pontos da Reforma proposta por Temer são inconstitucionais.

A opção foi seguir veiculando a cantilena do Planalto de que as mudanças na Previdência são necessárias para o equilíbrio das contas públicas, sem mostrar aos telespectadores as diferentes visões e alternativas que existem em qualquer reforma desta complexidade.

Para a metade da população que tem acesso à internet e que pode ao menos buscar outras fontes de informação, o tema dos protestos e as razões de por que tantos trabalhadores são contra esta reforma foram o centro do debate virtual neste 15 de março.

No Twitter, a hastag #GreveGeral foi a expressão mais comentada ao longo da manhã. Somente na página da Mídia Ninja, que realizou uma ampla cobertura dos protestos, as postagens alcançaram cerca de 24 milhões de pessoas.

Mais de 4 milhões de internautas comentaram e compartilharam os posts. Os sites de notícias, mesmo os vinculados aos grandes grupos de comunicação, também reportaram melhor os atos.

Mas a massa da população, que só tem a televisão para se informar – e que, não coincidentemente, será a que mais sofrerá os impactos desta reforma da Previdência – teve uma vez mais seu direito de acesso à informação violado. Até quando?

* Eduardo Amorim, Oona Castro, Mabel Dias e Bia Barbosa são jornalistas e integrantes do Intervozes.

Apropriação tecnológica é essencial para proteção de mulheres na rede

Orientações restritivas às mulheres limitam o uso das redes e da tecnologia, desencorajando a participação e o empoderamento feminino

Marina Pita*

Um grande amigo tem uma camisa com os dizeres: “código é poesia”. Acho lindo e sempre sorrio pensando que, sim, é mesmo, a depender do uso que se faz da programação – como mudar o mundo, por exemplo. Mas, convenhamos, antes de ser poesia, código é poder.

As habilidades tecnológicas – incluindo a capacidade de compreender e escrever as linguagens de programação – são cada vez mais relevantes à medida que a tecnologia da informação ganha crescente espaço como mediadora de todas as esferas da vida.

Preocupa, portanto, o resultado da pesquisa Parenting for a Digital Future do Departamento de Mídia e Comunicação da Escola de Economia e Ciência Política da Universidade de Londres que investigou como os pais lidam, gerenciam e educam seus filhos para o uso da internet. Foram consideradas duas formas de orientações dos pais, as restritivas e as mediadoras, e identificado que meninas têm mais chance de receber as orientações restritivas como educação para o uso da internet.

A mediação restritiva é composta por lista de proibições, banimento de algumas práticas e obrigação de supervisão. Já a mediação “habilitadora” inclui diálogo, estímulo ao uso de tecnologia ao mesmo tempo em que discute riscos, com algumas restrições, mas sempre considerando que, em geral, a web pode oferecer mais oportunidades que riscos.

A pesquisa é interessante porque nos ajuda a explicar porque muitas de nós mulheres ainda prefere distância da tecnologia e da web. No Brasil, de cerca de 520 mil pessoas que trabalham no setor de tecnologia da informação, apenas 20% são mulheres.

A culpabilização de meninas, adolescentes e mulheres pelo comportamento machista da sociedade também por meio da rede mundial de computadores precisa ser olhada com muita atenção e combatida se quisermos que mais mulheres se apropriem da poesia e do poder que as habilidades técnicas podem propiciar.

Os pais não educam as meninas para temerem as tecnologias e a Internet desejando sua exclusão do mundo digital ou que não tenham acesso às oportunidades que a web oferece. Trata-se de uma tentativa de protegê-las.

Tampouco há má intenção (assim imaginamos) em campanhas sobre privacidade direcionada a adolescentes. Por outro lado, não dá pra negar que, recorrentemente, estas campanhas colocam as meninas e mulheres em posição de responsáveis pela violência que sofrem, já que foram elas que escolheram a exposição na internet. Em ambas as perspectivas há uma enorme culpabilização da mulher.

A orientação para o uso das redes deveria ser em outro sentido, mostrando a elas que existe machismo no mundo, mesmo em pleno século XXI, e que elas precisam, sim, se proteger. Porém esta proteção não deve ser se ausentando das redes e das tecnologias e sim se apropriando delas.

Cenário de desigualdades

Infelizmente, hoje ainda sabemos pouco sobre a desigualdade de gênero no acesso à web e em termos de conhecimento tecnológico, principalmente porque há diversas interseccionalidades que precisam entrar na análise: renda, raça, local de moradia e etc.

Uma pesquisa da Women’s Right Foundation World Wide Web Foundation, de 2015, em áreas pobres urbanas do mundo em desenvolvimento, aponta que as mulheres têm 50% menos chance de se conectar à internet do que homens da mesma comunidade.

As mulheres têm, ainda, 30% a 50% menos chance de usar a Internet para empoderamento econômico e político; 25% menos chance de fazer uso da Internet para procurar emprego do que homens, 52% menos chance de compartilhar opinião controversa online do que homens.

E, um dos dados mais importantes, as mulheres têm 1,6 vezes mais chance de relatar falta de conhecimento como barreira para uso da internet do que os homens.

Ódio e violência nas redes

É preciso esclarecer que a violência de gênero cometida contra mulheres – hoje presente nas redes sociais – não nasceu com o advento da internet.

Se ainda convivemos com o machismo e com a violência é porque nossa sociedade não foi capaz de produzir equidade de gênero e respeito às mulheres na vida fora das redes também.

Então, o mesmo respeito que cobramos garantir no mundo “real” deve ser buscado no mundo virtual – se é que ainda faz sentido distinguir um do outro.

É claro que o medo de mulheres – e de seus familiares – sobre os riscos a que estão submetidas no mundo virtual não é desprovido de embasamento real. São inúmeros os casos já registrados no Brasil e no mundo de pornografia de vingança, por exemplo. O termo é usado quando um ex-marido ou namorado posta vídeos ou fotos íntimas com a intenção e punir a mulher pelo fim do relacionamento.

Além disso, mesmo quando estão exercendo atividades moralmente aceitáveis como escrever uma opinião ou crítica nas redes – e não compartilhando “nudes” de seus corpos – as mulheres são criticadas e expostas de forma diferenciada e terão mais chances de sofrer algum tipo de violência.

Campanha de ONG sugere às pessoas, especialmente às mulheres não enviar nudes.

Uma pesquisa do jornal inglês The Guardian acerca dos comentários nos artigos que publica mostrou que dos 10 articulistas mais ofendidos, oito são mulheres.

Das oito, quatro são brancas, uma é judia, duas são homossexuais e uma é muçulmana. E, enquanto afastamos as mulheres do conhecimento sobre a internet e a tecnologia as amedrontando, cresce o registro de ataques de misocrackers (misóginos que se dedicam a ataques na web), que derrubam sites feministas e invadem contas de mulheres que ousam se posicionar publicamente.

Recentemente, em busca de coletivos hackers do Brasil, me deparei com um coletivo que dizia ser contra as práticas da Cryptorave – evento de 24hs sobre privacidade que o Intervozes ajuda a organizar e que conta com uma trilha apenas para discutir questões de gênero e empoderar mais mulheres no universo da segurança digital.

Ao tentar entender as diferenças, a resposta curta e grossa: “nós não acreditamos em gênero, nós somos hackers”. E aí ficou claro que é preciso disputar o imaginário do hacker – usualmente relacionado a homens que não conseguem/querem se relacionar com mulheres.

Não podemos permitir que se formem mais misocrackers do que hackers feministas. Acabar com a cultura do medo das mulheres à tecnologia é urgente.

Rotas a navegar

A Associação para o Progresso das Comunicações (APC), que tem feito um trabalho muito interessante (vale conhecer) no que diz respeito a gênero e tecnologia/web, listou algumas sugestões para acabarmos com os abusos: informar as mulheres sobre o que fazer em caso de abuso, ensinar as mulheres quais as acusações possíveis e criar serviços de proteção adequados.

É essencial que passemos a monitorar, criar evidências, documentar e analisar a violência contra as mulheres na web. Também é fundamental construir alternativas que permitam discutir e falar sobre obre a violência, o ódio, a perseguição a mulheres na web sem cair na culpabilização ou afastar as mulheres do universo tecnológico/digital. “Meu corpo, minhas regras” também precisa valer para o mundo virtual.

Além de denunciar o machismo e a violência nas redes sociais, é preciso seguir fomentando a construção de lideranças femininas, que sejam capazes de incidir sobre a legislação da rede e das aplicações, de atuar nos serviços de proteção às vítimas, de influenciar na forma como os negócios na internet funcionam.

Por fim, é preciso construir outras rotas de navegação para o empoderamento feminino nas redes. Um deles é justamente a apropriação tecnológica. As mulheres precisam entender e conhecer mais os códigos e as tecnologias que atuam por trás das plataformas digitais.

O uso da criptografia no envio de mensagens pessoais é apenas uma das infinitas possibilidades existentes.

Então, é urgente que ampliemos a formação em tecnologia para mulheres e introduzamos a formação em direitos humanos nos cursos de tecnologia do país.

*É jornalista e membro do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital em 10 de março de 2017.